Calamidade silvestre

09 de dezembro de 2021

Órgão do Ibama, gerenciado pelo governo federal, o Cetas da capital amazonense abriga quase uma centena de animais, muitos deles com marcas de incêndio florestal ou queimados pela fiação elétrica.

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Só há um espaço para receber animais silvestres em funcionamento na capital do Amazonas, o Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), administrado pelo Ibama. E ele está lotado. Segundo apurou a Amazônia Real, há cerca de 80 animais no local. Só de primatas, são cerca de 40; mais de 20 deles são macacos-prego. Amontoados, os primatas acabam brigando entre si por falta de espaço. E, atualmente, é o único local apto para receber os sauins-de-coleira, espécie de primata endêmica de Manaus e criticamente ameaçada de extinção. Por sorte, no momento, há apenas uma jaguatirica no Cetas de Manaus, mas o número de animais recolhidos no local é considerado muito alto para a estrutura disponível.

Com as queimadas e os incêndios florestais, os resgates de animais aumentaram e a solução tem sido devolvê-los ao habitat rapidamente. Apenas os feridos permanecem para serem tratados. Os Cetas são unidades do poder público para receber animais resgatados em situação de vulnerabilidade, em ações fiscalizatórias, ou entregues pela população. No Amazonas, o único Cetas é mantido pelo Ibama, em Manaus.

A cada dois dias um animal silvestre vem sendo resgatado em Manaus, segundo dados disponibilizados pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), órgão do governo do Amazonas. Nos meses de junho a julho foram registrados 51 resgates, animais fora do ambiente natural que são afetados pela expansão urbana ou ação ilegal como desmatamento e queimadas. No entanto, o Ipaam não possui um Centro de Triagem de Animais Silvestres próprio e encaminha os resgatados para o Cetas, do Ibama, ou para outros espaços que recebem animais. O governo do Amazonas mantém uma ação compartilhada com o órgão federal, mas nunca construiu um refúgio para animais silvestres.

São dados preocupantes se levar em conta o boletim diário de queimadas divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Dos dez municípios brasileiros com mais focos acumulados nos últimos cinco meses, dois são do Amazonas: o município de Lábrea está na quarta posição, com 533 focos de incêndio em setembro (até o dia 22) e Apuí encontra-se na sexta posição, com 479 focos.

“Não é incomum, mesmo em uma região extremamente úmida como a nossa, receber um animal no Cetas com marcas de incêndio florestal e queimados. Apesar de que a maior parte dos animais chegam queimados ao Cetas. São por eletrocussão ou o animal tomou um choque elétrico na linha de alta tensão”, observa o biólogo e coordenador do Laboratório de Interações Fauna e Floresta da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Rogério Fonseca. Traduzindo: cada vez mais animais têm fugido para as zonas urbanas, onde acabam sendo eletrocutados.

Administrado pelo governo federal, o Cetas atua em colaboração com o governo estadual, que é responsável apenas pelo deslocamento dos animais silvestres encontrados fora do seu hábitat e removidos pelo Ipaam. Para Rogério Fonseca, a atual estrutura do Cetas, em Manaus, é pequena para a quantidade de animais que chegam. “Existe uma sobrecarga muito grande em cima de uma única instituição que é o Ibama, e essa sobrecarga não tem cooperado para a gente cuidar melhor dos animais que chegam”, alerta.

É o Ipaam que informa que se não estiverem feridos, os animais são devolvidos à floresta. Só aqueles que não estão em condições físicas são encaminhados para o Cetas. A Amazônia Real entrou em contato com o Ibama para saber a quantidade de animais que estavam em reabilitação no centro e como o espaço tem sido gerido, mas até a publicação da reportagem não houve resposta oficial à solicitação.

Um dos animais mais ameaçados é o sauim-de-coleira, espécie endêmica de Manaus e em ao menos três municípios próximos à capital amazonense. O sauim-de-coleira está na lista de animais ameaçados de extinção na lista do ICMBio e a cada ano sua população está ficando mais reduzida. Especialistas afirmam que, sem uma política de proteção, ele poderá desaparecer da natureza em menos de duas décadas.

“Não é incomum, mesmo em uma região extremamente úmida como a nossa, receber um animal no Cetas com marcas de incêndio florestal e queimados. Apesar de que a maior parte dos animais chegam queimados ao Cetas. São por eletrocussão ou o animal tomou um choque elétrico na linha de alta tensão.” Rogério Fonseca, biólogo e coordenador do Laboratório de Interações Fauna e Floresta da Universidade Federal do Amazonas (Ufam)

A urbanização de Manaus

Os danos causados à floresta amazônica têm forçado esses animais a migrarem para a área urbana, em Manaus, onde encontram uma cidade com poucas árvores, sem uma educação ambiental ou um planejamento. “Pegamos os espaços que eram deles, ocupamos edificações e sempre da forma mais inadequada possível”, explica Rogério Fonseca. “Podemos coexistir com animais silvestres em áreas urbanas, mas para que isso aconteça tem que lembrar que as condições de água, de alimento, do acesso e do abrigo desses animais estejam a mais íntegra possível.”

Segundo o biólogo, para entender a situação de Manaus é preciso analisar a última década em que foi iniciada a limpeza de terreno na capital, a zona leste era detentora dos processos de desmatamento em área urbana e posteriormente, a zona norte e, recentemente, a oeste se tornaram zonas em contato com áreas massivas florestais que são lugares de conservação e que conservam grandes animais.

Um dos exemplos visíveis do problema que tem acontecido em Manaus, da presença da fauna silvestre no ambiente urbano, é o caso do periquito-de-asa-branca (Brotogeris versicolurus), que ocupa toda a extensão da Avenida da Efigênio Sales. Para o biólogo Rogério, o que aconteceu ali foi a inexistência de entender como fazer um manejo de fauna.

“Aquilo tem a ver com obras e infraestrutura da Avenida das Torres que dizimou os buritizais que existiam, começavam lá no Aleixo, até o Parque do Mindu. Era uma área de abrigos para todos esses animais, com o desmatamento desses buritizais, os periquitos que estavam ali saíram para lugar nenhum. Eles precisaram ocupar um outro nicho ecológico igual eles tinham, e eles viram coisas semelhantes, as mangueiras e as palmeiras, que tem na Efigênio Salles.”

O deslocamento de centenas a milhares de animais, acuados pelo avanço imobiliário e pela pressão dos desmatamentos e queimadas, gera um sistema cíclico que reduz ainda mais as áreas onde esses animais habitam. Muitos acabam se deslocando e correndo riscos na aproximação com áreas mais urbanas. Esse movimento forçado contribui também com o surgimento de doenças entre as espécies, como explica Silvia Pavan, bióloga e colaboradora do setor de Mastozoologia do Museu Paraense Emílio Goeldi, com sede em Belém (PA).

“O ecossistema como um todo, ele vai sentir, algumas espécies têm o potencial de serem mais rapidamente afetadas ou mais severamente afetadas e dependendo da situação, até localmente extintas dependendo de distúrbios, tipo de espécie, do tipo de área. Um fungo bastante perigoso para os anfíbios no mundo todo está sendo associado à perda de temperatura global”, comenta.

O biólogo Rogério observa que a estrutura urbana de Manaus precisa de readequação, ter uma estrutura menos violenta para buscar uma melhor interação com as espécies que já habitam a cidade. “A própria fiação elétrica é totalmente inadequada para existência de aves, primatas, macacos, em geral. Você vê muitos animais eletrocutados por conta do simples contato com as linhas de transmissão, porque não são adequadas para a região Amazônica ou qualquer região onde tem a floresta.”

Manaus com fumaça

Com o aumento das queimadas no estado do Amazonas, a prefeitura de Manaus lançou a campanha “Manaus Sem Fumaça”, que visa combater o uso do fogo na vegetação e nos resíduos sólidos. As propagandas estão sendo divulgadas desde o mês de junho. Segundo a Secretaria de Meio Ambiente (Semmas), a campanha busca conscientizar sobre as queimadas que ocorrem no mesmo período nos municípios que compõem a região metropolitana de Manaus, “pois potencializam os problemas que comprometem a qualidade do ar no nosso verão amazônico, com riscos de danos à saúde de pessoas e animais e, até mesmo, prejuízos econômicos.”

Mas essas áreas degradadas pelo fogo não estão tendo tempo de se regenerar. As queimadas estão ocorrendo com mais frequência. “Se o fogo está cada vez mais intenso e só temos desmatamentos e só perda e perda e perda de área, a tendência é só uma: é a degradação, é a perda de vários desses componentes”, aponta a pesquisadora do Emílio Goeldi. Sem esse tempo para a recuperação da flora e da fauna, o ecossistema acaba sendo impactado a longo prazo. Até outras espécies que não foram atingidas pelas queimadas, sofrem com as consequências.

A bióloga Silvia Pavan lembra que quanto mais aquecimento, menos ambientes vão ter o potencial de proporcionar esse resfriamento climático. Em sua avaliação, com esse aumento de temperatura que atinge a floresta. “Tem um impacto direto nos animais porque eles já estão acostumados a um determinado clima e algumas espécies podem ser diretamente impactadas simplesmente pela temperatura mais alta.”

De acordo com o Ipaam, em 2019, 658 animais silvestres foram resgatados. No ano passado, esse número caiu para 335 resgates, porém desses dados foram descontados 4 meses por conta da suspensão da atividade em função da pandemia do novo coronavírus. Entre as espécies mais resgatadas pelo instituto estão jiboia (Boa constrictor), iguana (Iguana iguana), mucura (Didelphis marsupialis) e jacaré (Paleosushus trigonatus).

Para a bióloga Silvia, a educação é fundamental quando pensamos nessas ações a curto e a longo prazo. “Deveria ser a ferramenta mais potente para no futuro tentar reverter essa situação de desequilíbrios que a gente está tendo entre exploração e preservação.”

“Todo o ecossistema vai sentir, algumas espécies têm o potencial de serem mais rapidamente afetadas ou mais severamente afetadas e dependendo da situação, até localmente extintas dependendo de distúrbios, tipo de espécie, do tipo de área. Um fungo bastante perigoso para os anfíbios no mundo todo está sendo associado à perda de temperatura global.” Silvia Pavan, bióloga e colaboradora do setor de Mastozoologia do Museu Paraense Emílio Goeldi, com sede em Belém (PA)

Só um centro de triagem

A capital amazonense chegou a contar com um grande centro de reabilitação para animais silvestres, o Refúgio da Vida Silvestre Sauim Castanheira, localizado na zona leste. Mas em 2016 suas atividades foram encerradas, após uma série de furtos de animais terem sido registrados no local. Desde então, a prefeitura não reativou mais o espaço. Para a Amazônia Real, a administração municipal comentou que há apenas a pretensão do retorno da unidade, mas ainda sem previsão para o refúgio voltar a funcionar.

Em nota, a Semmas concorda não ser suficiente a presença de apenas um Cetas na capital, visto que ele tem limitações, e garante que as autoridades estão se organizando para participar “efetivamente da gestão da fauna silvestre no município de Manaus”. A participação efetiva seria o retorno do Refúgio Sauim Castanheira, e que está sendo feita uma revitalização da unidade.

“Será criado o Parque Municipal Sauim-Castanheiras, que será preparado e estruturado nos moldes do Parque do Mindu, no Parque 10, mas com atividades adicionais distintas como a reativação da atuação na fauna silvestre e, provavelmente, mais um horto de produção de mudas para arborização de Manaus”, acrescenta a nota.

Para o biólogo, essas atividades distintas precisam ser verificadas nesse novo projeto prometido pela prefeitura, já que o Parque do Mindu é uma unidade de conservação de proteção integral onde o objetivo é preservação das espécies que estão lá dentro, enquanto um centro de triagem de animais silvestres é temporário. A ideia desses espaços provisórios é “para que os animais fiquem ali para se reabilitar e ser posteriormente soltos, ou destinados para um zoológico, um criador ou conservacionista. Então são objetivos de gestão e gerenciamento muito diferentes um do outro”, afirma Rogério.

O pesquisador alerta que manter animais em reabilitação em um local aberto ao público pode ser preocupante, se esse tipo de atividade se aproximar mais de um espaço como um zoológico. Rogério afirma que o ideal seria, se esta opção for adotada, que seja um espaço de visitação técnica para alunos de veterinária, biologia e profissionais ligados em ciências naturais.

A Semmas informa, ainda na nota, que o espaço vai funcionar num esquema misto, tanto para a questão da fauna como também para receber o público para visitação. “O espaço é duas vezes maior que o Parque do Mindu, terá o espaço para cuidar dos animais, as pessoas não vão transitar nesse espaço específico”, adianta.

CONTEÚDO ORIGINAL PRODUZIDO PELO SITE DA AMAZÔNIA REAL.
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Alicia Lobato / Amazônia Real Paula Seco
Alicia Lobato / Amazônia Real Paula Seco