Céu de fumaça

18 de setembro de 2021

Envolta por centenas de queimadas, Porto Velho foi recentemente encoberta por fumaça. A região comercial e histórica se viu no interior de uma nuvem densa e amarelada. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que, em Rondônia, a capital lidera em focos de incêndios florestais.

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Há alguns dias, Porto Velho foi tomada por uma nuvem densa e amarelada de fumaça. As cenas lembram a de um filme futurista, quando já não há mais um céu azul. Mas as imagens são reais e espelham os cerca de 40% dos focos de queimadas em Rondônia concentrados na capital.  O estado não fica muito atrás, registrando um aumento de 47% nos focos de queimadas entre 1º de janeiro e 24 de agosto de 2021 em relação ao mesmo período do ano passado. De acordo com monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), somente em julho foram 836 focos de queimadas e incêndios, praticamente o dobro do número registrado no mesmo mês de 2020 (428 focos).

Uma das maiores preocupações de ambientalistas, pesquisadores, indigenistas e indígenas é o impacto das queimadas e dos incêndios nas Terras Indígenas e nas Unidades de Conservação (UCs), já bastante pressionadas pelo desmatamento, pelo avanço do agronegócio e pela grilagem. Em 2020, o governo de Rondônia também reduziu áreas protegidas para atender interesses do agronegócio.

O Inpe identificou 62 focos de queimadas na TI Karipuna. O número é muito elevado na comparação com o mesmo período de 2020: foram 24 focos de queimadas. Nos territórios indígenas localizados em Rondônia, foram detectados 180 focos.

A liderança André Luiz Karipuna, cacique da aldeia, afirma que os indígenas sentem medo com a proximidade das queimadas em seus territórios, associadas aos crimes ambientais. “A maioria das queimadas que tem aqui no território é feita pelos invasores de terra, os grileiros”, diz o cacique à Amazônia Real.

Os crimes ambientais não só causam impacto no território, reduzindo a floresta e afetando a fauna e o modo de subsistência, como agora, com as queimadas, não deixam os Karipuna respirarem. “A gente tem uma preocupação muito grande, porque a fumaça prejudica nossa saúde também. Nossos olhos ardem. Aqueles que têm problemas respiratórios como asma e outros fica mais difícil para eles com essa fumaça que sai devido à queimada”, afirma o cacique Karipuna.

Segundo o cacique, se medidas para reduzir o avanço do desmatamento não forem tomadas, com urgência, os impactos serão graves e afetarão toda a população, não apenas a indígena. As queimadas são um sinal de uma destruição maior que está por vir.

“Nossos rios estão contaminados, nossas florestas vão se acabar. Não sei se os rondonienses percebem que de três anos para cá tem aumentado muito o calor. Em outros estados está acontecendo a mesma coisa. O que segurava o calor? Era a floresta que está diminuindo cada vez mais. Eu vejo que em menos de 5 anos a Amazônia vai virar um deserto”, alerta André Karipuna.

MADEIREIROS E GRILEIROS

Há vários anos, o povo Karipuna cobra ações de combate à exploração ilegal de madeira, grilagem e outras ameaças de invasores das terras indígenas. Este ano, eles ingressaram com uma ação na Justiça Federal para garantir proteção.

O líder indígena Awapu Uru-Eu-Wau-Wau afirma que os impactos desses incêndios florestais e queimadas são sentidos em todo o ecossistema e ameaça o bioma amazônico, que até agora concentra 43% dos focos de queimadas no Brasil. A TI Uru-Eu-Wau-Wau registrou 20 focos de queimadas.

“Como no desmatamento aquela mata não vai ser mata mais, também prejudica o local onde os animais vivem, as nossas caças vão embora, os pássaros vão embora. A fumaça também prejudica o ar, pois não vamos mais respirar o ar puro e prejudica a saúde de todos”, diz Awapu Uru-Eu-Wau-Wau.

A TI Uru-Eu-Wau-Wau é alvo constante de invasores de diferentes atividades ilegais: garimpo, grilagem, madeireiros; até mesmo de autoridades públicas estaduais e políticos. Nem mesmo as operações policiais conseguem acabar com as invasões. A situação chegou a um ponto em que são os próprios Uru Eu que têm protegido seu território, apesar dos riscos.

O território tem registro de povos isolados e um longo histórico de violência contra as populações da etnia. Rondônia tem aproximadamente 65 povos contatados e 8 povos isolados, de acordo com a Associação Etnoambiental Kanindé, organização que atua junto aos povos indígenas em Rondônia. Todos eles estão sofrendo com as queimadas.

Uma fonte do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que pediu para não ser identificada, confirmou à Amazônia Real que invasores estão ateando fogo em localidades próximas a terras indígenas, principalmente as que pertencem ao povo Uru-Eu-Wau-Wau.

“Estão botando fogo também nos locais das invasões do Amorim. Esse fogo pode, dependendo do vento, atingir terra indígena (…) Amorim é um cara que já foi deputado federal, prefeito de Ariquemes. ‘Dono’ de muitas terras, garimpeiro etc. Houve uma invasão na área ‘dele’ no ano passado. A Polícia retirou os invasores, e eles voltaram. Lá estão os principais focos de incêndio. Derrubaram a floresta e botaram fogo”, afirma a fonte.

O relato dessa fonte indica a ligação entre as queimadas e pecuaristas. “A maioria é em propriedades particulares, onde botaram fogo em pastagens e perderam o controle”, descreve.

No começo de julho, o governo federal divulgou o início da Operação Samaúma, de combate ao desmatamento e queimadas. O vice-presidente Hamiton Mourão declarou que “cerca de 100 ações preventivas e repressivas contra delitos ambientais foram deflagradas no âmbito da operação”.

A Amazônia Real procurou as assessorias do Ministério da Defesa e do Ministério do Meio Ambiente para saber quais as ações realizadas em Rondônia para combater queimadas e desmatamento. Até o momento, os órgãos não responderam.

GOVERNO ESTIMULA QUEIMADAS

“A vida de todos é afetada. As fumaças prejudicam a respiração. E tem a covid-19. Assim, você tem mais doenças das vias respiratórias, em idosos e crianças”, afirma a fundadora da Associação Kanindé, Ivaneide Bandeira. Para ela, a destruição amazônica tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.

“O discurso do governo e o enfraquecimento dos órgãos responsáveis pela proteção dos territórios têm contribuído para a grande pressão em terras indígenas, provocando mais desmatamento, grilagem e queimadas. A impunidade também é o vetor que promove todos os desmandos”, explica Neidinha.

O monitoramento dos territórios indígenas tem sido constante pela Kanindé. Além das instituições de monitoramento como Inpe, Isa e Imazon, são os próprios indígenas as principais fontes de informação sobre os impactos das queimadas em seu território.

A Reserva Extrativista (Resex) Jaci Paraná foi reduzida por decisão dos deputados estaduais de Rondônia em 90%. A redução já foi sancionada pelo governo do estado. O monitoramento de queimadas do Inpe identificou 286 focos de calor na Resex, ocupando 50% de todo o percentual de queimadas nas áreas de conservação estadual de Rondônia.

Em 2020, a Amazônia Real flagrou vários focos de incêndios florestais e queimadas em áreas próximas de Unidades de Conservação.

“A maioria das queimadas que tem aqui no território é feita pelos invasores de terra, os grileiros” Luiz Karipuna, cacique da Tribo Indígena Karipuna

FUMAÇA SE ESPALHA

O número de focos em Porto Velho durante esse período também já é maior do que o registrado em julho de 2019, quando foram flagradas 295 detecções. Neste ano, o número de incêndios e queimadas aumentou 17 vezes entre junho e julho de 2021 em Porto Velho, chegando a 340 focos detectados.

“Foram 428 focos em julho de 2020 e 836 em julho de 2021. Porto Velho foi o terceiro município com mais focos de calor em julho de 2021”, disse o coordenador do programa de queimadas do Inpe, Alberto Setzer.

Nos últimos dias, a névoa de fumaça das queimadas na vegetação dos diferentes biomas do país se espalhou para além dos estados de origem do fogo, como detectou o Inpe. O tempo seco nesta época do ano favorece os incêndios florestais. “As fontes da fumaça são as queimadas e incêndios espalhados desde o Pará, Amazonas e Acre, passando por Rondônia, Bolívia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraguai, São Paulo, Paraná e Santa Catarina”, disse Setzer à Amazônia Real.

De acordo com o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), a umidade relativa do ar tem variado entre 20% e 30%. De 2 a 23 de agosto, o Corpo de Bombeiros de Rondônia atendeu a 800 ocorrências de combate a incêndios florestais.

A pesquisadora Amanda Michalski, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), diz que em Rondônia, existem 76.537 hectares de desmatamento, segundo os dados do Deter-Inpe coletados entre maio e agosto de 2021.

“As principais áreas desmatadas encontram-se ao norte e noroeste, onde estão localizados municípios como Porto Velho, Candeias do Jamari, Cujubim, Buritis e Nova Mamoré. O que se destaca também é uma ramificação desse fluxo de expansão da fronteira agrícola, que corresponde aos municípios da região do Vale do Guaporé, com destaque aos que estão próximos a RO-429”, relata Amanda Michalski, à Amazônia Real.

IMPACTOS AMBIENTAIS E ECONÔMICOS

Segundo a pesquisa da UNIR, os principais impactos para o meio ambiente estão exatamente vinculados à perda da capacidade de trocas de nutrientes.

“A Amazônia, com sua floresta tropical e densa, apresenta certo grau de fragilidade ambiental, visto que apresenta alta taxa de erodibilidade, a partir do processo de retirada da cobertura vegetal, favorecendo o desgaste do solo, além da perda da fauna e flora”, explica a pesquisadora Amanda Michalski.

Outro ponto destacado por Amanda é a questão hídrica. Ela destaca que a Amazônia concentra 45% da reserva subterrânea potável do país. Quanto mais se desmata, mais se reduz o nível das águas superficiais, já que o processo destrutivo prejudica os mananciais e acelera o processo de assoreamento dos rios e igarapés. Em consequência, explica ela, a capacidade de absorção da água subterrânea é prejudicada, projetando um desequilíbrio do ciclo hidrológico. O que poucos entendem é que o próprio agronegócio sai prejudicado com a redução das águas superficiais.

De acordo com a especialista, como o ritmo de queimadas e incêndios florestais aumenta a cada dia, a regeneração da floresta se torna mais difícil, senão inviável. “A natureza apresenta um alto poder de resiliência, mas resiliência não significa regeneração. Existem estudos que apontam, que a floresta amazônica apresenta um ciclo de possível regeneração entre 150 anos, se o ritmo de degradação for interrompido. Levando em consideração as políticas ambiental e econômica atual, isso não será possível”, diz Amanda.

Para a pesquisadora Amanda, as ameaças e os crimes ambientais não cessam. “O discurso arcaico de progresso e desenvolvimento por meio da exploração e extermínio do bioma e dos povos da floresta se intensificam dia após dia”, reitera. “Mesmo que se traduza, em termos contábeis e racionais o papel da Amazônia como reguladora climática global ou como grande prestadora de serviços ecossistêmicos, isso não parece comover os agentes depredadores em sua sanha por ganhos de curto prazo, combinando mecanismos legais e ilegais.”

Indagado sobre as consequências financeiras causadas pelas queimadas e desmatamento, Luis Garzon, professor da Unir, pesquisador-colaborador do IEA-USP e líder do Grupo de Pesquisa Territorialidades e Imaginários da Amazônia, diz que os “são incalculáveis”.

“O que está sendo destruído é um repositório de sociabilidades alternativas, um patrimônio coletivo mantido milenarmente por povos originários, tão diversos quanto os ambientes que os originaram, de forma entrelaçada”, afirma Luis Garzon, professor da Unir, pesquisador-colaborador do IEA-USP e líder do Grupo de Pesquisa Territorialidades e Imaginários da Amazônia.

“O discurso do governo e o enfraquecimento dos órgãos responsáveis pela proteção dos territórios têm contribuído para a grande pressão em terras indígenas, provocando mais desmatamento, grilagem e queimadas. A impunidade também é o vetor que promove todos os desmandos” Ivaneide Bandeira, fundadora da Associação Kanindé

MAIS INTERNAÇÕES

De acordo com a Secretaria de Saúde de Rondônia, a fumaça causada pelas queimadas tem afetado a saúde principalmente dos portovelhenses. Isso tem refletido no número de internações de crianças e idosos com problemas respiratórios no hospital Infantil Cosme e Damião aumentou 50% desde janeiro.

“Este período seco, quando temos umidade relativa do ar bem baixa, produz uma condição bastante nociva para o aparelho respiratório das pessoas. Aliando a isso temos as queimadas, que jogam no ar poluentes muito nocivos”, explica Daniel Pires de Carvalho, diretor-adjunto do Cosme e Damião. As crianças são mais afetadas, explica Carvalho, por terem um sistema imunológico ainda em desenvolvimento, e os idosos pelas comorbidades. O espaço alternativo, que fica próximo ao aeroporto da capital, é um local de lazer e de práticas de exercícios físicos.

Jeane Cardinali é uma das frequentadoras do local e se queixa do ar carregado. “Fica quase impossível fazer atividade com esse tempo e essa fumaça toda, a gente tá respirando só fumaça”, afirma.

O nutricionista Alex Cunha, que participa de um grupo de treino para triatlo, afirma que a intensidade da fumaça tem sido tão grande que, às vezes, a atividade tem de ser suspensa. “A gente tem uma assessoria que passa para os atletas as informações de que se a fumaça estiver bastante intensa nós interrompemos as atividades”.

O Aeroporto Internacional Governador Jorge Teixeira, de Porto Velho, também enfrenta desafios para manter os voos. “Até o momento não houve cancelamento ou atraso nos voos. No momento de maior incidência de fumaça na pista, felizmente não temos voos”, afirma a gerência operacional da Infraero.

CONTEÚDO ORIGINAL PRODUZIDO PELO SITE DA AMAZÔNIA REAL. GOSTOU DESSA REPORTAGEM? APOIE O JORNALISMO DA AMAZÔNIA REAL AQUI.

Luciene Kaxinawá / Amazônia Real Paula Seco
Luciene Kaxinawá / Amazônia Real Paula Seco
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