Entre a demanda por conservação ambiental e o extrativismo intenso do agronegócio, iniciativa encabeçada por climatologista brasileiro pretende aliar tecnologias da Indústria 4.0 aos conhecimentos tradicionais amazônicos – e transformá-los em produtos de valor agregado para o mercado
Morcegos selvagens transmitem um novo tipo de coronavírus para rebanhos de porcos que, mais próximos dos seres humanos, repassam a eles rapidamente uma doença respiratória semelhante à provocada pelo já conhecido vírus Sars. A transmissibilidade, porém, é maior, embora os sintomas sejam aparentemente mais leves. Em poucos meses, o que era uma epidemia local se espalha para os grandes centros urbanos e, então, para outros continentes, iniciando uma pandemia que, em um período de 18 meses, aniquila 65 milhões de pessoas.
Esse foi o cenário hipotético elaborado pela Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos) em outubro de 2019, na ocasião do Event 201, um exercício realizado periodicamente pelo Center for Health Security (Centro de Segurança Sanitária, em português) da universidade para simular e construir respostas eficazes e rápidas tanto para os impactos econômicos como sanitários de uma “possível” pandemia.
No simulacro – que antecipou em três meses a descoberta do Sars-CoV-2 em Wuhan, na China central –, a doença começava, na verdade, nas florestas do Brasil, “primeiro lenta e silenciosa, depois se espalhando rapidamente”, diz um trecho do contexto imaginário construído para a reunião. Então, “quando começa a ser transmitida de pessoa para pessoa – entre as comunidades pobres e densamente povoadas das megacidades sul-americanas –, a epidemia explode. Chega primeiro a Portugal, aos Estados Unidos e à China em voos comerciais, e então para muitos outros países”.
A suposição da Johns Hopkins se valeu de previsões como a de um artigo publicado por seis cientistas na revista científica Nature “Características hospedeiras e virais preveem derramamento zoonótico de mamíferos” em junho de 2017, que já apontava a floresta brasileira como o local mais provável do planeta para o surgimento de uma nova pandemia – na transmissão de um vírus hospedado em morcegos.
Mas, da mesma forma que as pesquisas científicas ainda apontam a Amazônia como possível epicentro de uma futura e próxima pandemia, há também alternativas para se antecipar a elas – e uma delas está nas mãos do biólogo brasileiro Bruno de Medeiros, PhD em Biologia Evolutiva e Organísmica pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos: por meio de sequenciamento genético com espécies da fauna e da flora que habitam a floresta.
“Nós queremos implementar uma tecnologia que, embora já tenha força em muitas partes do mundo, ainda não chegou para valer à Amazônia – justamente um dos lugares com mais potencial para que a utilização de dados genéticos renda benefícios e, ao mesmo tempo, antecipe contextos críticos como o de uma epidemia”, explica o biólogo. “A curto prazo, nós queremos usar a tecnologia de sequenciamento de DNA para rastrear doenças e até fazer um levantamento mais profundo da flora”.
Medeiros lidera o Laboratório Criativo de Genômica, um dos vários Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs) que fazem parte do escopo da Terceira Via Amazônica, projeto que quer apresentar ao Poder Público e à iniciativa privada os potenciais econômicos da floresta sem que isso signifique destruí-la. O grupo oferece como solução a adoção de tecnologias da Quarta Revolução Industrial (4.0), como drones, redes de comunicação, Inteligência Artificial, Internet das Coisas (IoT) e sistemas ciberfísicos.
“Toda essa tecnologia permitirá que, a longo prazo, a gente gere uma quantidade de dados genéticos significativa para que outros pesquisadores, em diversas partes do mundo, possam cruzar variáveis e descobrir coisas sobre a floresta, como algum tipo de proteína útil de um microrganismo aquático”, comenta o pesquisador.
O aumento significativo das investidas extrativistas nos últimos meses, após um período de queda nas taxas de desmatamento, faz com que seres humanos sejam inevitavelmente colocados cada vez mais perto de patógenos desconhecidos da floresta. É a mesma justificativa que existe, até agora, para o primeiro contato do SARS-CoV-2 (o vírus do covid-19) em seres humanos, em Wuhan. O dilema brasileiro é mais complexo: de um lado, a pressão é para que o Estado aumente gradativamente as áreas de proteção ambiental da floresta, o que, apesar de não significar uma proteção definitiva, torna qualquer presença extratora criminosa. De outro, uma conjunção de fatores legais e ilegais faz com que a Amazônia seja cada vez mais impactada pelas atividades de agropecuária e pela mineração, motivadas pela crescente importância dos produtos agrícolas brasileiros no exterior e, consequentemente, para a economia do País.
Entre agosto de 2019 e julho de 2020, a taxa de desmatamento da floresta cresceu 34%, segundo dados do satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram mais de 9,2 mil quilômetros quadrados de mata derrubada – o equivalente ao território da cidade de São Paulo multiplicado por seis. Em janeiro, o Instituto Imazon divulgou que as derrubadas na Amazônia no ano passado foram as mais intensas em uma década – uma subida de 30% em relação a 2019.
Foi para dar conta desse tipo de dilema que um grupo de cientistas e empresários se uniu há cinco anos em torno do projeto Terceira Via Amazônica. Para além da “primeira via”, que demanda conservação de grandes áreas, e da “segunda via”, que vive da exploração intensa dos minérios da floresta, quando não transformando vastas regiões de mata em pasto, a terceira propõe um novo paradigma de desenvolvimento sustentável.
“Nós propomos uma bioeconomia de floresta em pé que valorize de muitas formas o que já tem ali. A ideia não é extrair produtos primários e exportá-los, mas agregar valor às matérias-primas amazônicas, por meio de uma transformação industrial que esteja em consonância com as tecnologias 4.0”, explica o premiado climatologista Carlos Nobre, que encabeça o projeto.
O conceito de Indústria 4.0 diz respeito à revolução digital e à fusão de tecnologias que diminuem as divisões entre as esferas físicas, digitais e biológicas. É um prolongamento da Terceira Revolução Industrial, quando a produção global passou a usar tecnologia da informação e criar as primeiras fábricas automatizadas.
Segundo Nobre, enquanto a flora brasileira fornece cerca de 240 tipos de plantas como matérias-primas para as indústrias cosmética e farmacêutica, só a flora amazônica possui mais de 450 espécies usadas há muito tempo pelos povos locais, mas ainda sem uma exploração econômica sustentável fora da floresta.
Um exemplo já consagrado desse potencial é o do icônico óleo extraído da madeira do pau-rosa, árvore nativa da Amazônia, que ficou famoso mundialmente por ser o principal ingrediente do perfume francês Chanel nº 5, lançado em 1921. Como esses, diz Nobre, há muitos outros por se descobrir. “As plantas da Amazônia têm segredos bioquímicos, como novas moléculas, enzimas, antibióticos e fungicidas naturais que podem ser sintetizados em laboratório e resultar em produtos de alto valor”, escreveu ele em um artigo publicado na revista Futuribles, junto com o biólogo Ismael Nobre, em setembro de 2019.
Quem faz o mapeamento dos públicos consumidores é o Instituto Conexões Saudáveis (Conexsus), que diz já ter encontrado mais de 80 empresas dispostas a adquirir produtos feitos nos laboratórios da Amazônia. A participação do Brasil no mercado global de produtos desse tipo, no entanto, é pífia: segundo Marina Campos, diretora do instituto, o país exporta hoje cerca de 80 deles – o que representa 0,2% em relação ao jogo global de trocas sustentáveis.
No futuro próximo, Nobre espera ver drones sobrevoando a mata com diversos produtos de valor agregado feitos dentro da floresta, com a ajuda dos laboratórios, chegando até aeroportos da região que, então, conectariam toda a produção com as cadeias de consumo. Bruno de Medeiros, da mesma forma, acredita que em breve conseguirá, de uma tenda no meio da Amazônia, alimentar bancos de dados genéticos acessíveis para pesquisadores de outras partes do País realizarem processamentos.
Até aqui a história da relação entre esse tipo de pesquisa e a população local tem sido muito ruim: eles servem apenas como fornecedores dos seus saberes ou do próprio material genético, sem receber muito mais em troca. “Nós queremos compartilhar esse tipo de informação com eles, mas também explicar o porquê a gente faz esse tipo de estudo ali e, enfim, criar ferramentas práticas que possam ser utilizadas por eles, como encontrar um vírus em um mosquito ou catalogar a diversidade existente em uma reserva”, garante Medeiros. Ele admite, no entanto, que a capacitação de pessoas dentro da Amazônia não será fácil. Segundo o IBGE, quase metade da população do Estado acima dos 25 anos não terminou o ensinou básico. “Este é, talvez, o nosso grande desafio”.
“A próxima década é decisiva para a Amazônia. Precisamos criar desde já uma economia de base florestal que seja importante para o Produto Interno Bruto (PIB) da região”, afirma Marina Campos, do Conexsus. Carlos Nobre também não vê outro caminho, em meio à ascensão de demandas sustentáveis vindas do mercado: “Se a gente não conseguir reduzir o desmatamento, seremos párias ambientais”.