Visão holística do desenvolvimento

12 de julho de 2023

“Destruir florestas virgens, como se tem praticado no Brasil, é um crime horrendo e grande insulto à natureza.” A frase – que se adapta à defesa ambientalista dos dias atuais, data do começo do século 19 – foi dita por José Bonifácio de Andrada e Silva. O político e estudioso de ciências naturais entrou para a história do Brasil como o patriarca da Independência, mas também é considerado um dos primeiros defensores da proteção dos recursos naturais.

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“José Bonifácio criticava a caça predatória da baleia, por julgá-la antieconômica, assim como as grandes propriedades que se dedicavam a monoculturas. Apreciador das matas e madeiras brasileiras, alinhava-se com os estudiosos que, desde a fundação dos primeiros jardins botânicos do século 18, valorizam o plantio de espécies raras”, explica a historiadora Mary Del Priore, autora do livro As vidas de José Bonifácio (Editora Estação Brasil).

Além de estudos sobre ecologia, como o que previa a transformação do País em um deserto caso nada fosse feito para proteger matas e rios, Bonifácio defendia a criação de um departamento no governo que promovesse o desenvolvimento da economia em sintonia com a preservação do meio ambiente. O órgão, que se chamaria “Direção Geral de Economia Política”, foi proposto em 1821, quando o Brasil ainda se encontrava na condição de Reino Unido de Portugal.

“Creio que ele propunha um ministério de planejamento geral da economia em uma relação mais racional com a natureza. Isto é, todas as atividades econômicas estariam conectadas com o objetivo de acabar com a devastação e o desperdício, tratando o mundo natural de forma mais cuidadosa e cientificamente inteligente”, lembra o historiador José Augusto Pádua, professor do Instituto de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é um dos coordenadores do Laboratório de História e Natureza. 

“É uma proposta ainda hoje muito ousada. Mesmo que o contexto atual seja tão diferente, creio que seria um grande avanço se pudéssemos retomar, ou de fato reinventar, esta maneira de ver o cuidado ambiental como eixo de todas as ações de governo em suas relações com as atividades produtivas”, destaca o professor.

A Direção Geral de Economia Política proposta pelo patriarca da Independência nunca saiu do papel, mas pode ser considerada uma das sementes do que hoje chamamos de bioeconomia e agenda ESG (do inglês Environmental, Social and Governance). Isso significa que as empresas e o Poder Público devem procurar, na medida do possível, compatibilizar as atividades econômicas com um agendas de proteção social e ambiental.

As discussões sobre economia sustentável estiveram presentes constantemente nas páginas de Problemas Brasileiros nos últimos 60 anos. Em janeiro de 1984, o geólogo Evaristo Ribeiro Filho levantava a discussão sobre a viabilidade ambiental do Projeto Carajás, em texto publicado na revista. Localizada no Estado do Pará, a Serra de Carajás abriga uma das mais importantes jazidas minerais do mundo. O potencial do maciço montanhoso em plena região amazônica foi descoberto no final da década de 1960. Sua exploração mineral começou no começo da década de 1980, pela antiga Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), atual Vale.

Em outubro de 1985, o articulista de PB Dorival Teixeira Vieira promoveu uma longa discussão sobre geoeconomia, ciência que estuda o complexo casamento entre a economia e a geografia, com destaque para as relações entre a atividade dos habitantes e as áreas em que se encontram os recursos naturais. Vieira relatou toda a história geoeconômica nacional, desde a exploração do pau-brasil no Brasil colônia e suas consequências no meio ambiente e na formação da economia até a forte industrialização nos anos 1980.

“Sessenta anos, em termos de políticas climática e ambiental parece uma eternidade, ainda mais para um país como o Brasil, fundado no desmatamento da madeira que lhe dá o nome. Herdamos esta compreensão de que desmatamento é igual progresso, o que é praticamente uma afirmação colonial”, afirma a cientista social Marina Esteves Vergueiro de Almeida, coordenadora de Projetos em Clima e Meio Ambiente do Instituto Ethos. “Como sociedade, temos dificuldade de nos entendermos como pertencentes à natureza e, por bastante tempo, não conseguimos acreditar nisso. Podíamos extrair da terra sem cuidado e sem ouvir os sinais de descontentamento da Terra”, completa Marina.

LEIS INEFICAZES

A falta de cuidado com a natureza no Brasil nunca foi por carência de legislação ambiental. Uma das primeiras leis de proteção data de 1605, pouco mais de um século após a chegada dos portugueses – e período em que o machado corria solto nas florestas. Era o Regimento do Pau-Brasil, no qual o rei Filipe III, rei de Portugal e Espanha, destacava a necessidade de controle racional da exploração da árvore para evitar extinção da primeira commodity brasileira. Não adiantou, e os exploradores deram de ombros para as obrigações legais, como acontece até hoje em diversas regiões do País.

Outra lei da coroa portuguesa, que entrou em vigor ainda no século 16, protege e regulamenta o corte de madeiras duras, como a peroba, utilizada em embarcações. Os serradores eram obrigados a conservar os paus reais, surgindo daí a expressão “madeira de lei”. Mais recentemente, alguns regulamentos mais atrapalhavam do que necessariamente garantiam a preservação. O consultor e ambientalista Fabio Feldmann cita como exemplo desta miopia legal o Código Florestal de 1965, que estimulava a substituição da floresta nativa por plantada, por meio de incentivos fiscais.

Deputado federal por três mandatos consecutivos e secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo nos anos 1990, Feldmann afirma que a grande “virada de chave” nas discussões sobre a questão ambiental no mundo todo ocorreu a partir da década de 1970, principalmente após a Conferência de Estocolmo, realizada em 1972 com o objetivo de alertar as nações para a redução dos danos ecossistêmicos em escala global, medida essencial para garantir a sobrevivência das gerações futuras.

Na época, o governo militar chegou a adotar uma posição crítica às recomendações da Conferência de Estocolmo, alegando que preocupações excessivas com a preservação ambiental eram obstáculos ao desenvolvimento. “Esta oposição [dos militares], contudo, foi mais retórica do que real”, observa José Goldemberg, ex-ministro do Meio Ambiente e presidente do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).  Goldemberg cita como exemplo duas decisões importantes em prol da proteção ambiental tomadas em plena ditadura: a criação da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), em 1968, e a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981).

“A questão ambiental no Brasil e no mundo passou por uma radical transformação nestas últimas décadas, de uma visão míope que valorizava a exploração de recursos naturais sem qualquer limite para uma abordagem mais holística de sustentabilidade, incorporando a necessidade de garantir o uso perene dos recursos e com menor impacto ambiental”, diz Feldmann.

“Como sociedade, temos dificuldade de nos entendermos como pertencentes à natureza.” Marina Esteves Vergueiro de Almeida, coordenadora de Projetos em Clima e Meio Ambiente do Instituto Ethos

BIOMAS DEGRADADOS

A presidente da Fundação SOS Mata Atlântica, Marcia Hirota, explica que, nos últimos 60 anos, a preocupação com as preservações da natureza, das florestas naturais e da biodiversidade ganharam escala no País. Segundo ela, houve importantes avanços na governança, como a criação do Sistema Nacional de Meio Ambiente, incremento das políticas de manejo das florestas e na gestão das águas e melhorias na legislação ambiental e nos marcos legais. Também houve, segundo Marcia, grande progresso científico e ficou cada vez mais evidente a importância da conservação para garantir o bom futuro climático do planeta.

“Entretanto, os resultados ainda estão muito aquém das nossas ambições e necessidades. Além da luta pelo desmatamento zero, é importante promover a restauração e a regeneração do bioma”, destaca a presidente, que lidera um dos principais movimentos em defesa do primeiro grande bioma a ser explorado de maneira predatória desde o início da colonização europeia.

A Mata Atlântica cedeu espaço para os grandes ciclos econômicos nacionais, como o do pau-brasil, que deu início à exploração predatória dos nossos recursos naturais, da cana-de-açúcar e do café. Depois, veio a urbanização e a industrialização intensas em diversas áreas metropolitanas, como a Grande São Paulo. Atualmente, o território da Mata Atlântica abriga a maioria das capitais brasileiras, inclusive as duas maiores regiões metropolitanas do País (São Paulo e Rio de Janeiro), e concentra cerca de 70% da população brasileira.

“Depois de sucessivas crises hídricas afetando dezenas de cidades ao longo da Mata Atlântica, é preocupante ver a capacidade de fornecimento de serviços ambientais deste bioma ser continuamente fragilizada”, adverte Luís Fernando Guedes Pinto, diretor-executivo da SOS Mata Atlântica. “A preservação do que restou do bioma e a restauração em grande escala são essenciais para conservarmos alguma resiliência da região quanto à dupla ameaça da crise climática e à crescente irregularidade do regime de chuvas, decorrente do desmatamento da Amazônia”, ressalta Pinto.

O estresse hídrico também pode ser verificado no Pantanal, que registrou, em menos de 40 anos, uma queda de 76% das áreas úmidas (alagáveis), de acordo com dados do MapBiomas.

Na Amazônia, a grande preocupação é com o desmatamento crescente nas últimas décadas. Em 37 anos, entre 1985 e 2021, a Amazônia brasileira perdeu quase 10% da vegetação natural. Segundo o MapBiomas, em 1985, apenas 6% – cerca de 50 milhões de hectares – do bioma localizado em território nacional havia sido transformado em áreas antrópicas, como pastagens, lavouras, garimpos ou espaço urbano. Em 2021, a área quase triplicou, chegando a 15%. Em outros países que integram a Amazônia na América do Sul, a destruição da mata nativa em seus territórios foi bem menor: 1,6% de floresta total destruída no Suriname e na Guiana Francesa.

No Brasil, o índice total de destruição da Amazônia é calculado entre 15% e 17%, aproximando-se do que os cientistas chamam de “ponto de não retorno”, em que o bioma não conseguirá mais recompor o seu ecossistema. “Entre 1985 e 2020, a Amazônia, que cobre 47% da América do Sul, já perdeu mais vegetação nativa do que nos 500 anos anteriores, desde a colonização europeia”, destaca Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas, que também chama a atenção para a devastação em outros biomas, como a Caatinga, na Região Nordeste, e os Pampas, na Região Sul. Neste último, a perda de vegetação nativa em 36 anos (1985-2021) foi de 3,4 milhões de hectares, equivalente a 70 vezes a área da cidade de Porto Alegre.

Para se ter uma ideia do estrago que tudo isso provoca, basta conferir os números colossais da Amazônia, que cuja fauna é composta por um número impressionante de seres vivos, conforme registro na obra de Oliveira Costa, Uma história das florestas. São 1,3 mil espécies de aves, 427 de mamíferos, 378 de répteis, 3 mil de peixes, 400 de anfíbios e mais de cem tipos de animais invertebrados, além de 40 mil espécies vegetais. Em torno de 15% de toda a biodiversidade do planeta se encontram na região, cuja ameaça de destruição se acentuou nos últimos anos, com aumento recorde do desmatamento, exploração ilegal de garimpo, biopirataria e exploração de animais e peixes, entre outros problemas.

Em entrevista publicada edição 454 da PB, em outubro de 2019, o cientista Carlos Nobre, pesquisador sênior no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) e um dos mais respeitados climatologistas do País, explicou as consequências climáticas caso a Amazônia atinja o ponto de não retorno, calculado entre 20% e 25% da destruição total.

“Quando isso acontecer, provavelmente entre 50% e 70% da floresta podem se transformar em uma savana tropical degradada”, explica Nobre. “Haveria uma perda considerável de biodiversidade para o planeta, considerando que a Amazônia é a floresta mais rica em espécies. Quanto aos riscos da crise climática, a savanização de mais de 50% da Floresta Amazônica significaria uma emissão de mais de 150 bilhões de gás carbônico para a atmosfera, tornando muito mais difícil atingir o Acordo de Paris de manter o aumento de temperatura do planeta abaixo de dois graus Celsius”, completa o cientista.

O caminho para a reversão deste quadro de degradação ambiental passa, como já defendia José Bonifácio há mais de 200 anos, pela conciliação entre o desenvolvimento econômico do Brasil e a preservação da biodiversidade nos principais biomas: Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal, Caatinga e Pampas. Diante do modelo de exploração adotados nos últimos cinco séculos, trata-se de uma missão difícil, mas não impossível. “É factível conciliar os desenvolvimentos econômico e social nacionais com a preservação da biodiversidade. O conceito e os experimentos do progresso sustentável em prática no Brasil são a prova disso”, explica Oliveira Costa, do IEA-USP.

O aumento da produtividade do campo sem a necessidade de expansão das culturas em novas áreas é um dos pontos destacados pelos pesquisadores. Marina Almeida, do Instituto Ethos, lembra que, na primeira década de 2000, o Brasil viveu um boom de commodities agrícolas e grande desenvolvimento do setor agropecuário, ao mesmo tempo que registrava queda recorde nos índices de desmatamento da Floresta Amazônica e aumento da participação do agronegócio no Produto Interno Bruto (PIB) nacional. “Isso demonstra que não há exclusividade entre estas duas modalidades [agronegócio e preservação ambiental]”, complementa.    

“Há um enorme espaço para aumentar a oferta e atender à crescente demanda por alimentos sem expandir o desmatamento na Amazônia e no Cerrado”, ressalta Nobre. Na visão dele, o maior potencial da região ainda está escondido em sua imensa biodiversidade. “Precisamos desenvolver uma nova bioeconomia de floresta em pé, com uso de modernas tecnologias para aproveitamento sustentável da biodiversidade.”

“Políticas de manejo das florestas, e melhorias na legislação ambiental são alguns dos avanços dos últimos 60 anos.” Marcia Hirota, presidente da Fundação SOS Mata Atlântica

SETOR PRIVADO

Na esteira das oportunidades e mudança de visão em relação à sustentabilidade – a partir Conferência Rio-92 –, um grupo de empresas criou, em 1997, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), um movimento de incentivo à prática de atividades empresariais sustentáveis.

O objetivo do CEBDS é a geração de novos negócios com foco em bioeconomia. Atualmente, participam do movimento mais de cem negócios de grande porte, entre bancos, consultorias, tradings do agronegócio e multinacionais em vários segmentos, como indústrias de bens de consumo e energia.

“Os tempos mudaram, e os negócios também vêm passando por transformações. A agenda ESG se impõe, de modo que as empresas começam a perceber a importância de não só mitigar riscos e impactos sociais e ambientais, mas sobretudo gerar impactos positivos para as pessoas e o planeta”, explica a presidente do CEBDS, Marina Grossi. Segundo ela, os negócios são parte da solução, e a Amazônia não poderia ser mais estratégica. “Conservar a floresta e seus modos de vida é bom para o Brasil e para o mundo”, completa. Dentre as metas do CEBDS para a Amazônia, onde vivem cerca de 30 milhões de pessoas, estão a destinação de linhas de crédito de pelo menos R$ 100 milhões para cooperativas e agroindústrias sustentáveis da região.

A agenda ESG turbinou o conceito de responsabilidades social e ambiental, que, no passado, estava mais ligado à imagem institucional das empresas. Hoje, a adoção de práticas sustentáveis faz parte da estratégia do negócio. Trata-se de medidas importantes para ampliar, ou pelo menos não perder, mercados consumidores internos e externos cada vez mais exigentes em relação a boas condutas. “O papel das empresas, atualmente, é importantíssimo, e a maioria delas já entendeu que o crescimento e o desenvolvimento econômicos dependem da conservação da natureza e dos recursos naturais, que lhes garante água e outros serviços ecossistêmicos”, diz Marcia, da SOS Mata Atlântica.

Mesmo com todos os problemas, os atuais avanços ocorridos nas discussões e ações na área ambiental provavelmente chamariam a atenção de José Bonifácio, na avaliação de Augusto Pádua, da UFRJ. “Esta é uma diferença importante do passado em comparação ao momento atual. A preocupação ambiental, no século 19, foi cultivada por intelectuais e cientistas nos seus espaços restritos de debate acadêmico. Não existiam forças na sociedade que pressionassem pelas reformas ambientais que os intelectuais discutiam.” Se a medida já funcionou em partes, o caminho que o conhecimento científico deve trilhar vai ao encontro da sociedade. Afinal, a chave do desenvolvimento sustentável é responsabilidade é de todos.

Marcus Lopes Folhapress Débora Faria
Marcus Lopes Folhapress Débora Faria