Rotas possíveis para o transporte público

11 de agosto de 2022

Ao passo que tendências, como avanço do trabalho remoto e uso de aplicativos de mobilidade, provocam erosão de passageiros, especialistas apontam soluções para garantir sustentabilidade nos sistemas públicos de condução.

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As restrições de locomoção durante o auge de casos de covid-19, exigindo medidas de isolamento social, afetaram diretamente o transporte coletivo no País. A redução do número de passageiros nos sistemas chegou a 80%, segundo Estudo elaborado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Apesar da diminuição do número de infecções e mortes pelo vírus nos últimos meses e da retomada presencial gradual das atividades econômicas, a mobilidade urbana enfrenta velhos e novos desafios para garantir a sustentabilidade das atividades nos próximos anos. A começar pela recuperação da baixa financeira: os impactos da crise sanitária computam prejuízos totais de cerca de R$ 25,7 bilhões ao setor, entre março de 2020 e fevereiro de 2022.

Os dados da pesquisa da NTU, chamada Transporte Público por Ônibus – 2 anos de Impactos da Pandemia de Covid-19, também mostram que a maior parte dos deslocamentos diários das pessoas em cidades com mais de 60 mil habitantes é feita a pé: 39%. Em seguida, vêm transporte coletivo (28%), automóvel (26%), motocicleta (4%) e bicicleta (3%). Dos deslocamentos realizados por transporte coletivo, 85,7% são por ônibus e 14,3%, por trilhos e outros meios, como lotações. A frota brasileira de ônibus é composta por 107 mil veículos, que realizam cerca de 27 milhões de viagens por dia.

“O setor de transporte urbano precisa se reinventar. É um serviço que nunca vai voltar aos níveis pré-pandemia, tanto pelo aumento do trabalho remoto como pela consolidação dos serviços de mobilidade por aplicativos”, diz Dario Rais, doutor em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ele classifica o estrago causado no setor nos últimos dois anos como “amplo, geral e irrestrito”, comprometendo a saúde financeira das companhias prestadoras de serviços e eliminando milhares de empregos diretos e indiretos.

Ainda de acordo com a NTU, foram extintos 92.581 postos de trabalho nesse período, o equivalente a 22,7% da mão de obra nas empresas de ônibus antes da pandemia. Em razão das dificuldades de caixa, 55 empresas suspenderam a prestação de serviços ou encontram-se sob intervenção ou recuperação judicial, prejudicando milhares de passageiros todos os dias, em diversas cidades do Brasil.

“Foram dois anos muito difíceis e que geraram passivos muito altos nas empresas. Hoje, nossa avaliação é que é impossível ter de volta o mesmo número de passageiros do período anterior, por causa do teletrabalho e da crise econômica”, afirma Francisco Christovam, presidente-executivo da NTU. Christovam destaca outros problemas recentes, como a alta do preço do diesel, segundo item mais relevante do custo de produção das viações, atrás apenas da mão de obra.

VIAS DE SAÍDA

Para contornar o problema, a NTU defende uma política de preços específica para o diesel consumido pelo transporte público, como ocorre com as embarcações pesqueiras, beneficiadas pela Lei Federal 9.445/97. “O consumo de diesel pelo transporte público por ônibus, nas cidades e regiões metropolitanas, é de apenas 5% a 6% do total do consumo nacional, o que possibilita a adoção de medidas diferenciadas para esse segmento sem impactos significativos na política de preços de combustíveis”, defende.

Como solução aos preços dos combustíveis, uma das alternativas seria a substituição gradual da frota por veículos elétricos em larga escala. “Acredito que seja necessário investimento em alternativas mais econômicas, como a utilização de ônibus elétricos. Mas isso demandaria um alto investimento e não aconteceria da noite para o dia”, pondera o engenheiro Rodrigo Siviéri, professor da Trevisan Escola de Negócios.

Outro caminho, já adotado por muitas prefeituras e governos estaduais, são os subsídios concedidos aos sistemas de transporte para reduzir o preço da passagem final de todos os passageiros, além de bancar gratuidades, como as passagens de idosos, desempregados e estudantes. Os municípios pressionam o governo federal para ajudá-los a dividir a conta. Uma das vitórias recentes foi a aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei 4.392/21, que institui o Programa Nacional de Assistência à Mobilidade de Idosos em Áreas Urbanas (PNAMI). O projeto, que precisa ser aprovado na Câmara dos Deputados, prevê repasses de R$ 5 bilhões por ano da União aos municípios, para financiar a passagem das pessoas com mais de 65 anos.

“O setor de transporte urbano precisa se reinventar. É um serviço que nunca vai voltar aos níveis pré-pandemia, tanto pelo aumento do trabalho remoto como pela consolidação dos serviços de mobilidade por aplicativos.” Dario Rais, doutor em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie

Durante a pandemia, prefeituras destinaram recursos para manter o preço das passagens ou mesmo evitar paralisações nos sistemas e garantir transporte à população. Pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), concluída no começo deste ano, traz que 122 cidades brasileiras pagaram cerca de R$ 2,8 bilhões em subsídios às empresas para garantir a continuidade dos serviços, frente à queda no número de passageiros durante o período. Em Santos (SP), por exemplo, a prefeitura destinou R$ 800 mil por mês ao sistema de transporte municipal para evitar reajuste das tarifas.

ANTIGOS PERCALÇOS

Os números assinalam, porém, que os entraves no setor começaram bem antes da crise sanitária. A NTU informa que, entre 1994 e 2012, houve queda de 24,4% na demanda por transporte público nas cidades brasileiras. Entre 2013 e 2019, essa queda foi ainda maior: 26,1%. “O setor enfrenta agora uma crise aguda (pandemia) dentro de uma crise estrutural (que vem ao longo dos anos)”, conclui a pesquisa da entidade.

Na ótica de Rais, do Mackenzie, as medidas para melhorar o transporte urbano devem partir de três grandes frentes. A primeira é a integração maciça entre os diversos modais, como pneus e trilhos; a segunda, uma nova política de financiamentos do sistema, como cobrança maior para o uso do transporte individual (pedágio urbano, por exemplo) e uma taxa para ampliar subsídios e financiamentos para o sistema.

Em relação ao financiamento, o professor cita o modelo adotado na França desde 1972, chamado de Taxa de Contribuição para o Transporte (Taux du Versemente Transport – TVT). Trata-se de um imposto pago pelas empresas públicas e privadas, que tenham mais de nove funcionários, destinado ao financiamento do sistema de transporte público nas cidades francesas. Com o subsídio proveniente do imposto, o passageiro arca com cerca de 40% do custo total do sistema de transporte local.

A terceira medida, prossegue o especialista, é uma discussão complexa que ocorre há muitos anos: a reorganização do uso do solo das cidades, de forma a reduzir os deslocamentos da população e aproximar a moradia do trabalho. “É muito importante entender que estamos em outro cenário. Deve ser pensado um serviço [de transporte] com menos clientes e numa situação em que a sociedade cobre compromissos com meio ambiente, transparência e medidas, como garantia sanitária nos serviços de transporte”, resume Dario Rais. Para ele, “o redesenho operacional é muito mais que uma readequação de sistemas, mas uma nova forma de prestação de serviço”.

Marcus Lopes Paula Seco
Marcus Lopes Paula Seco
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