Ao passo que tendências, como avanço do trabalho remoto e uso de aplicativos de mobilidade, provocam erosão de passageiros, especialistas apontam soluções para garantir sustentabilidade nos sistemas públicos de condução.
As restrições de locomoção durante o auge de casos de covid-19, exigindo medidas de isolamento social, afetaram diretamente o transporte coletivo no País. A redução do número de passageiros nos sistemas chegou a 80%, segundo Estudo elaborado pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Apesar da diminuição do número de infecções e mortes pelo vírus nos últimos meses e da retomada presencial gradual das atividades econômicas, a mobilidade urbana enfrenta velhos e novos desafios para garantir a sustentabilidade das atividades nos próximos anos. A começar pela recuperação da baixa financeira: os impactos da crise sanitária computam prejuízos totais de cerca de R$ 25,7 bilhões ao setor, entre março de 2020 e fevereiro de 2022.
Os dados da pesquisa da NTU, chamada Transporte Público por Ônibus – 2 anos de Impactos da Pandemia de Covid-19, também mostram que a maior parte dos deslocamentos diários das pessoas em cidades com mais de 60 mil habitantes é feita a pé: 39%. Em seguida, vêm transporte coletivo (28%), automóvel (26%), motocicleta (4%) e bicicleta (3%). Dos deslocamentos realizados por transporte coletivo, 85,7% são por ônibus e 14,3%, por trilhos e outros meios, como lotações. A frota brasileira de ônibus é composta por 107 mil veículos, que realizam cerca de 27 milhões de viagens por dia.
“O setor de transporte urbano precisa se reinventar. É um serviço que nunca vai voltar aos níveis pré-pandemia, tanto pelo aumento do trabalho remoto como pela consolidação dos serviços de mobilidade por aplicativos”, diz Dario Rais, doutor em Engenharia de Transportes pela Universidade de São Paulo (USP) e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ele classifica o estrago causado no setor nos últimos dois anos como “amplo, geral e irrestrito”, comprometendo a saúde financeira das companhias prestadoras de serviços e eliminando milhares de empregos diretos e indiretos.
Ainda de acordo com a NTU, foram extintos 92.581 postos de trabalho nesse período, o equivalente a 22,7% da mão de obra nas empresas de ônibus antes da pandemia. Em razão das dificuldades de caixa, 55 empresas suspenderam a prestação de serviços ou encontram-se sob intervenção ou recuperação judicial, prejudicando milhares de passageiros todos os dias, em diversas cidades do Brasil.
“Foram dois anos muito difíceis e que geraram passivos muito altos nas empresas. Hoje, nossa avaliação é que é impossível ter de volta o mesmo número de passageiros do período anterior, por causa do teletrabalho e da crise econômica”, afirma Francisco Christovam, presidente-executivo da NTU. Christovam destaca outros problemas recentes, como a alta do preço do diesel, segundo item mais relevante do custo de produção das viações, atrás apenas da mão de obra.
Para contornar o problema, a NTU defende uma política de preços específica para o diesel consumido pelo transporte público, como ocorre com as embarcações pesqueiras, beneficiadas pela Lei Federal 9.445/97. “O consumo de diesel pelo transporte público por ônibus, nas cidades e regiões metropolitanas, é de apenas 5% a 6% do total do consumo nacional, o que possibilita a adoção de medidas diferenciadas para esse segmento sem impactos significativos na política de preços de combustíveis”, defende.
Como solução aos preços dos combustíveis, uma das alternativas seria a substituição gradual da frota por veículos elétricos em larga escala. “Acredito que seja necessário investimento em alternativas mais econômicas, como a utilização de ônibus elétricos. Mas isso demandaria um alto investimento e não aconteceria da noite para o dia”, pondera o engenheiro Rodrigo Siviéri, professor da Trevisan Escola de Negócios.
Outro caminho, já adotado por muitas prefeituras e governos estaduais, são os subsídios concedidos aos sistemas de transporte para reduzir o preço da passagem final de todos os passageiros, além de bancar gratuidades, como as passagens de idosos, desempregados e estudantes. Os municípios pressionam o governo federal para ajudá-los a dividir a conta. Uma das vitórias recentes foi a aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei 4.392/21, que institui o Programa Nacional de Assistência à Mobilidade de Idosos em Áreas Urbanas (PNAMI). O projeto, que precisa ser aprovado na Câmara dos Deputados, prevê repasses de R$ 5 bilhões por ano da União aos municípios, para financiar a passagem das pessoas com mais de 65 anos.
Durante a pandemia, prefeituras destinaram recursos para manter o preço das passagens ou mesmo evitar paralisações nos sistemas e garantir transporte à população. Pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), concluída no começo deste ano, traz que 122 cidades brasileiras pagaram cerca de R$ 2,8 bilhões em subsídios às empresas para garantir a continuidade dos serviços, frente à queda no número de passageiros durante o período. Em Santos (SP), por exemplo, a prefeitura destinou R$ 800 mil por mês ao sistema de transporte municipal para evitar reajuste das tarifas.
Os números assinalam, porém, que os entraves no setor começaram bem antes da crise sanitária. A NTU informa que, entre 1994 e 2012, houve queda de 24,4% na demanda por transporte público nas cidades brasileiras. Entre 2013 e 2019, essa queda foi ainda maior: 26,1%. “O setor enfrenta agora uma crise aguda (pandemia) dentro de uma crise estrutural (que vem ao longo dos anos)”, conclui a pesquisa da entidade.
Na ótica de Rais, do Mackenzie, as medidas para melhorar o transporte urbano devem partir de três grandes frentes. A primeira é a integração maciça entre os diversos modais, como pneus e trilhos; a segunda, uma nova política de financiamentos do sistema, como cobrança maior para o uso do transporte individual (pedágio urbano, por exemplo) e uma taxa para ampliar subsídios e financiamentos para o sistema.
Em relação ao financiamento, o professor cita o modelo adotado na França desde 1972, chamado de Taxa de Contribuição para o Transporte (Taux du Versemente Transport – TVT). Trata-se de um imposto pago pelas empresas públicas e privadas, que tenham mais de nove funcionários, destinado ao financiamento do sistema de transporte público nas cidades francesas. Com o subsídio proveniente do imposto, o passageiro arca com cerca de 40% do custo total do sistema de transporte local.
A terceira medida, prossegue o especialista, é uma discussão complexa que ocorre há muitos anos: a reorganização do uso do solo das cidades, de forma a reduzir os deslocamentos da população e aproximar a moradia do trabalho. “É muito importante entender que estamos em outro cenário. Deve ser pensado um serviço [de transporte] com menos clientes e numa situação em que a sociedade cobre compromissos com meio ambiente, transparência e medidas, como garantia sanitária nos serviços de transporte”, resume Dario Rais. Para ele, “o redesenho operacional é muito mais que uma readequação de sistemas, mas uma nova forma de prestação de serviço”.