Sem combustíveis fósseis até 2050

14 de março de 2024

A Dinamarca se comprometeu a reduzir 70% das emissões de carbono em uma década, com o prazo terminando em 2030, e pretende se tornar o primeiro país do mundo 100% livre de combustíveis fósseis, meta para 2050. Para isso, está atuando em várias frentes: possui um megaprojeto de usina eólica no mar e, atualmente, está construindo um reservatório de gases no fundo do oceano (ao invés de soltar no ambiente os poluentes). Para além dessas grandes obras, há mudanças culturais no dia a dia das pessoas comuns.

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Aos 80 anos, a professora aposentada Inga Wolf tem carro e carta de motorista, mas só os usa quando vai viajar para fora da capital, Copenhague. Para se deslocar dentro da cidade, usa metrô, ônibus e balsa, todos movidos a energia elétrica, ou caminha. Por trás da decisão, há uma parcela de consciência sobre a importância do transporte coletivo, mas pesa principalmente um viés prático: “É normal levar 30 minutos procurando vaga para estacionar. Não vale a pena. Minhas filhas, genro e netos só andam de bicicleta”, conta ela.

A frota municipal é composta por veículos elétricos, mas, para um visitante, o que mais chama a atenção é a preferência dada às bicicletas, que são onipresentes. Nos últimos dez anos, foram investidas cerca de 84 milhões de coroas anuais (cerca de R$ 60 milhões) nas iniciativas de ciclismo. A cidade tenta deixar as viagens mais confortáveis com “ondas de semáforos verdes” nas vias das bicicletas e apoios para os ciclistas descansarem os pés nos cruzamentos.

Como resultado, 35% dos 600 habitantes da capital se deslocam diariamente para o trabalho ou escola de bicicleta, mesmo durante o inverno, com temperaturas abaixo de zero. Além das ciclovias por toda Copenhague, a cidade se liga a municípios vizinhos por “superestradas”, para os ciclistas trafegarem entre eles com mais segurança, sem disputar espaço com os carros.

Inga, que já andou muito de bicicleta, conta que, atualmente, acha perigoso por causa do risco de quedas. Mas mantém incorporadas ao seu dia a dia uma série de pequenas atitudes verdes – como andar com sua própria garrafa de água para não precisar comprar uma de plástico na rua e produzir lixo – que pode ser tomada por pessoas de todo o mundo. Outros comportamentos, contudo, só são possíveis por ela morar na Dinamarca. Por exemplo, “antes de ligar a máquina de lavar louça ou roupa, entro num aplicativo no celular para ver a tarifa no momento. Se estiver alta, eu espero um horário melhor”, diz.

O preço dinâmico varia em tempo real de acordo com o consumo e com a quantidade de produção de energia elétrica no momento. É uma forma de evitar os picos de consumo e equilibrá-lo com a geração de energia do país, que se baseia fortemente na eólica.

Embora a transição energética tenha significado, em alguma medida, renunciar a confortos, as pessoas sentem melhorias palpáveis no meio ambiente, que influenciam positivamente sua qualidade de vida. Um exemplo disso é a limpeza da água dos canais da cidade, porque “hoje as pessoas podem nadar nos canais no verão. Quando me mudei para Copenhague, há 60 anos, era algo impensável”, lembra Inga.

Panorama energético mundial

Os esforços do país vêm sendo reconhecidos internacionalmente. No Índice de Desempenho das Alterações Climáticas (Climate Change Performance Index, CCPI na sigla original), a Dinamarca foi a nação que melhor pontou em 2023. O caminho para a sustentabilidade, no entanto, teve início após a crise do petróleo da década de 1970, quando o governo percebeu que precisava de outras fontes de energia – em 1972, o petróleo representava 92% do consumo de energia nacional.

“A crise energética global foi devastadora para o país. A economia sofreu e o desemprego disparou. Aquele colapso foi um alerta para as autoridades dinamarquesas. As medidas corretivas governamentais a curto prazo incluíram os chamados domingos sem carro. O planejamento e a política energética a longo prazo foram então iniciados”, cita Katinka Johansen, do Danish Building Research Institute (BUILD). Num estudo sobre o sistema de aquecimento público do país – há centrais que distribuem água aquecida por tubulações para dois terços das residências dinamarquesas, com um funcionamento semelhante aos sistemas de água e esgoto.

Depois de alguma hesitação sobre quais as melhores opções para substituir os combustíveis fósseis, em 1985, o governo vetou usinas nucleares, voltando suas apostas para os ventos. Em 1979, a primeira grande turbina eólica comercial havia entrado em operação. Em 2022, a energia movida por ventos gerou 50% do consumo de eletricidade do país. A Dinamarca se abastece também de outras energias renováveis, como a solar e a biomassa, esta última aproveitada, sobretudo, nos sistemas de aquecimento residencial, que ficaram mundialmente reconhecidos por suas turbinas, exportadas pela pioneira Vestas.

Com isso, “em 1990 o governo dinamarquês publicou o Plano de Ação Energia 2000, a primeira estratégia de transição energética de baixo carbono no mundo”, destaca Katinka. Segundo ela, as experiências históricas e culturais coletivas motivaram o apoio tanto político quanto social à busca por alternativas de menor impacto ambiental.

Nessa onda, o centro de estudos EnergyLab Nordhavn uniu governo, universidades e empresas para desenvolverem, juntos, soluções sustentáveis, respondendo a demandas reais e específicas. Por exemplo, como fazer com que uma rede de supermercado aproveite o calor gerado pelos motores das geladeiras e congeladores para aquecer a água das torneiras.

Uma das frentes de batalha contra a emissão de carbono tem como meta promover, cada vez mais, edificações com eficiência energética – o setor de construção civil é responsável por quase 40% das emissões de CO₂ do mundo, segundo a ONU. Nesse quesito, o estado dinamarquês estabeleceu códigos rígidos, com exigências de métodos de construção ecológica, fora isso, tem feito um planejamento urbano “à prova de futuro”, ao criar uma rede de escoamento de água de chuva ou maré alta para uma série de pequenos reservatórios que, quando secos, servem como parque e áreas de lazer.

Além disso, quase todas as residências – 98% do total – estão hoje conectadas ao sistema de aquecimento urbano. Do outro lado do termômetro, há esforços para melhorar o resfriamento dos locais fechados. Numa cidade cercada de mar e repleta de canais, várias construções têm aproveitado a água dos canais em seus sistemas de ar condicionado.

O principal exemplo de grandes dimensões é o complexo de salas de espetáculos Skuespilhuset, que tem seu sistema de temperatura ligado às águas marinhas – são três salas, com capacidades somadas de 1.100 lugares. A obra fez parte de um projeto financiado pela União Europeia. Mas um terço dos quartos de hotel da cidade – mais de 8.000 – são resfriados da mesma forma. De acordo com a empresa de energia Hofor, esse tipo de resfriamento representa uma redução de emissão de CO₂ de até 70% em comparação com os condicionadores de ar padrão.

Por mais encantadores que tenham sido os progressos da Dinamarca, as metas que o país se propõe não estão garantidas, defende Henrik Lund, pesquisador da Universidade de Aalborg. “Uma transição verde da economia e da sociedade dinamarquesa é exequível, economicamente responsável, e também realista dentro de um prazo suficientemente ambicioso. No entanto, isso não implica necessariamente que acontecerá”, alerta ele.

O país precisa continuar investindo coletivamente para esse propósito nos próximos anos – e também seria importante expandir boas práticas para além das fronteiras locais, diz o pesquisador. “Cumprir a meta exige investimentos públicos decisivos a longo prazo em todo o sistema energético, e ainda é necessário que o setor privado seja encorajado a seguir o exemplo e decida fazê-lo. Outro desafio é coordenar as muitas iniciativas, privadas e públicas, grandes e pequenas, para se tornarem verdes. Por fim, era importante a descarbonização não só do sistema energético dinamarquês, mas, sim, do europeu”, afirma.

Literal e metaforicamente, a Dinamarca não é uma ilha. Tem seu território numa pequena península, com tamanho aproximado do Estado do Rio de Janeiro, com uma população menor do que a da capital fluminense. Portanto, seu impacto direto nas emissões mundiais é pequeno. O país pode, sim, servir de exemplo para as demais nações.

“Em um país pequeno, plano, com muito vento: eles identificaram uma oportunidade e avançaram, ao passo que em outros países ainda estão patinando. Tiveram a criatividade para organizar uma sociedade dependente de energias renováveis.” José Goldemberg, presidente do Conselho de Sustentabilidade da FecomercioSP

Exemplo para o Brasil?

“Cada país tem de desenvolver o melhor possível o que estiver à sua disposição – e isso a Dinamarca faz muito bem”, avalia o professor José Goldemberg, presidente do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). “Em um país pequeno, plano, com muito vento: eles identificaram uma oportunidade e avançaram, ao passo que em outros países ainda estão patinando. Tiveram a criatividade para organizar uma sociedade dependente de energias renováveis”, afirma.

Essa inovação ajudou a contornar os problemas, que inevitavelmente aparecem numa busca pela sustentabilidade. Com a necessidade de ter mais turbinas eólicas, e sabendo que seu barulho constante incomoda se estiver num ambiente próximo às pessoas, a sociedade encontrou como solução instalar novas turbinas no oceano. Ações que conjugaram vantagens ambientais e econômicas. “A Vestas se tornou pioneira em aerogeradores, ainda hoje é uma das líderes mundiais, exportando para o resto do mundo”, ressalta Goldemberg.

Embora o modelo dinamarquês não possa ser transplantado para o Brasil, deve servir de lição para que o País aproveite seus potenciais. “O Brasil, na mesma época em que a Dinamarca passou a investir no eólico, aproveitou o etanol, ao passo que outros países nem pensavam nisso – os EUA entraram nesse mercado só 25 anos depois. Mas o governo não promoveu comercialmente o etanol em outros países, porque era um combustível que não tinha a simpatia das empresas de petróleo. Foi um sucesso que se perdeu pelo caminho”, lembra o professor.

Luciana Alvarez Annima de Mattos
Luciana Alvarez Annima de Mattos
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