Afonso Ribeiro, personagem pouco lembrado na enciclopédia brasileira, foi um degredado que acompanhou Caminha na primeira visita às nossas terras e acabou sendo obrigado a ficar. Ribeiro viveu entre os índios até 1502, quando finalmente foi recolhido pela esquadra capitaneada por Américo Vespúcio.
O ponto zero da história do Brasil é um encontro, assim narrado na carta de Pero Vaz de Caminha:
“Mandou o capitão [Pedro Álvares Cabral] um mancebo degredado, criado de d. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro para andar lá com eles e saber de suas maneiras”.
Afonso Ribeiro embarcou e foi para a terra. Viu e contou. Pero Vaz de Caminha foi mandado numa incursão para fazer o mesmo. O que mais chamou sua atenção foi narrado em seu estilo descritivo e pouco empolado:
“Andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”.
A nudez olhada com julgamento crítico sobre o pecado – sem que as observadas perdessem o ar inocente – foi o ponto central de inquérito e debate na frota. E do debate veio uma sentença do capitão que traçaria o destino de Afonso Ribeiro:
“Melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixamos”.
Afonso Ribeiro e um degredado não nomeado ficaram em terra por ordem superior. Dois outros grumetes [jovens aprendizes que faziam tarefas diversas nas embarcações], depois de pesarem entre as misérias da vida a bordo e as belezas da terra, atiraram-se ao mar por decisão própria e, também, ficaram.
Assim começou o que por muito tempo foi o tema central de uma vivência que daria para mim o sentido para pensar um objeto chamado “Brasil” – e Afonso Ribeiro é o personagem que funcionava como fundador mítico da vivência neste objeto.
Sua trajetória é a do viajante para quem o caminho leva a um novo destino – e o homem que cruza o ponto de transposição de um destino para outro pode ser entendido a partir da ligação do verbo “empreender” com o substantivo “Brasil”. Sendo história, vale a pena partir do sentido primordial do verbo, que é diverso do atual. Na edição de 1813 do Dicionário da língua portuguesa, de Antonio de Moraes Silva, o sentido de “emprender” [grafia da época] é esse: “determinar-se a fazer alguma ação laboriosa, e difícil; v.g. emprender a conquista, o descobrimento, a guerra da Ásia, uma jornada; emprender qualquer justo perigo; expor-se”.
Afonso Ribeiro tem a ver com a definição de agente de conquista: na terra existia um povo pronto para ser tomado pela empreitada da fé. Para dar início à obra da empresa estatal da fé, Cabral ordenou a jornada na terra aos dois degredados. Eles foram obrigados a desembarcar, e deixados para sobreviver às próprias custas no local, contra sua vontade.
Mas existe também outro empreendimento sendo narrado. Esse não depende da pressão da autoridade nem se encaixa em grandes planos de Estado. Pelo contrário: o sentido da ação é dado por decisões individuais no sentido inverso da obediência aos desígnios do alto: fugir do coletivo, escapar da autoridade. Contrariando a ordem representada pelo capitão, dois grumetes se arrojaram em terra por sua conta.
Remar para terra era empreender em outro sentido, o de “determinar-se a realizar uma tarefa”. No caso, cortar as amarras com a vida pregressa, abandonar tradição, autoridade e religião, buscar um novo caminho não previsto para a vida – atirando-se ao chamado de um povo desconhecido, mas atraente em sua nudez.
Esse último impulso de mudança, a aceitação de uma tarefa própria na vida, tornou-se uma marca definitiva na vida dos grumetes – e de todos que seguiram o mesmo chamado. Está por trás de cada ato posterior de mesma natureza de pessoas que se estabeleceram na terra por vontade própria. Define o Brasil como um território para onde valia a pena se mudar – e criar um destino diverso daquele dado pelas condições de nascimento. Nesse sentido de empreender, trata-se, claro, de realizar uma mudança de caráter voluntário, cujo resultado era primordialmente um ganho individual do migrante.
Já nos primeiros anos seguintes à notícia da terra, enquanto ela ganhava o nome de Brasil sobreposto ao nome oficial de Terra de Santa Cruz, atiraram-se a chamado empreendedor levas seguidas de portugueses, espanhóis, franceses e holandeses. Deixaram para trás o mundo feudal com sua ordem tradicional, para ter uma vida cujo sentido era dado por uma jornada em busca do novo, uma vida construída pelas próprias capacidades.
E todos, voluntários ou mandados, viveram inicialmente em torno do julgamento marcado no olhar de Caminha: a nova terra seria o lugar das pessoas que atraem pela nudez e a inocência ou o lugar que precisa ser reduzido pela conquista?
A maioria tinha ambição por dinheiro – mas uns poucos também empreendiam uma jornada espiritual de outros moldes. Para aqueles que se deliciam com boa História, existe o clássico de Sergio Buarque de Holanda, intitulado Visão do Paraíso. Sem tirar o gosto da maravilhosa leitura, alguns trechos do livro mostram que os nativos da América provocaram evocações positivas em muitos viajantes, a começar por Cristóvão Colombo:
“Colombo não estava tão longe de certas concepções correntes durante a Idade Média acerca da realidade física do Éden que descresse em sua existência em algum lugar do globo. E nada o desprendia da ideia, verdadeiramente obsessiva em seus escritos, de que precisamente as novas Índias, para onde o guiara a mão da Providência, se situava na orla do Paraíso Terreal”.
A fonte que assegurava a possibilidade era a própria Bíblia:
“O ponto de partida encontra-se no Gênesis, onde se narra como o Senhor Deus, tendo criado o homem (…) plantou para sua habitação um horto ‘da banda do Oriente’. Ali espalhou plantas agradáveis à vista e boas para a comida; no meio destas achava-se a árvore da vida, cujos frutos dariam vida eterna, e a da ciência da vida e do mal, única expressamente defesa ao homem, sob pena de morte. Do mesmo horto sairia um rio, que se dividiria, ao deixá-lo, em quatro cabeças”.
O livro de Sergio Buarque narra em detalhes como foram necessárias centenas de tentativas para chegar lá em mais de dois séculos. Apenas para ficar numa delas, Antônio León Pinello publicou, em 1650, a descrição de um círculo de 160 léguas (aproximadamente mil quilômetros) de diâmetro, com formato de coração, e que seria o Paraíso. Prova disso seria um lago (hoje conhecido como Pantanal), do qual nasceriam os quatro rios bíblicos: Fison (o Prata), Gion (o Amazonas), Madalena (associado ao Tigre) e Orenoco (que seria o Eufrates).
Por muito tempo acreditei que o dilema entre a inocência da nudez (ou a busca do paraíso) e a conquista violenta fossem o Alfa e o Ômega da vida brasileira. Durou até 2015, quando a grande escritora Beatriz Bracher me enviou o texto do romance Anatomia do paraíso. Foi um choque.
O romance entre um estudioso de Paraíso perdido, de John Milton, e uma anatomista-legista se passa no Rio de Janeiro contemporâneo. Só esta situação mostra, pelo registro do inesperado, que sempre se deve estar aberto a novidades para se entender o Brasil. Uma alternativa histórica me escapara: a vertente da negação teológica da possibilidade do paraíso terrestre.
O próprio enredo do romance me levou à leitura do poema de Milton, publicado em 1667, já no fim do período de pesquisa da hipótese terrestre na América. Traz uma forte revalorização do pecado original como centro da condição humana – uma ruptura completa com a possibilidade de que a natureza e a vida espiritual humana formassem um contínuo (ainda que problemático) expresso pelo paraíso terrestre.
De Milton, resolvi ler antes a obra de João Calvino. Bastou o título de um dos capítulos de A Instituição da religião cristã para me mostrar o tamanho da ruptura com a busca espiritual dos primeiros brasileiros: ”Que todo o gênero humano esteja sujeitado à maldição e decaído desde os primórdios de sua origem pela queda e expulsão de Adão”. Nele é feita uma associação ao pecado original na qual a possibilidade da inocência paradisíaca na Terra desaparece:
“Dado que, em vista de sua culpa, afluíra de baixo ao alto e de alto a baixo a maldição que grassa por todos os recantos do mundo, não seria estranho que fosse propagada por toda sua descendência”.
Essa maldição central não se limita ao humano, mas se estende bem além dele:
“Tal é a corrupção hereditária, que os antigos chamam de ‘pecado original’, entendendo pela palavra ‘pecado’ a depravação da natureza, até então pura e boa”.
Aqui, no lugar do conflito entre natureza e espírito, homem e paraíso, existe uma ruptura absoluta, uma distância intransponível: a natureza não é nunca o lugar da inocência, mas exclusivamente da depravação. Assim a pergunta original que sempre me fiz – Afonso Ribeiro estava atrás do paraíso ou da conquista? – como aquela que daria sentido para a vida neste espaço tropical ganha outra forma em tempos de queimadas. Que Afonso Ribeiro me ajude a respondê-la.