2013 – 2023

01 de junho de 2023

Já era noite de 17 de junho de 2013 quando, depois de passar boa parte da tarde na praça que conforma a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, uma multidão rompeu o cordão de isolamento feito pela polícia, correu pelos acessos laterais do Congresso Nacional e alcançou o teto do edifício.

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A imagem correu o mundo instantaneamente: centenas de sombras com braços levantados, eufóricas, sobre as luzes do parlamento. A ocupação do prédio era a metáfora inequívoca de manifestações que, dez dias antes, lotavam as ruas das principais cidades do País. O sentimento expresso era difuso, dificultava a compreensão dos analistas e confundia tanto a cobertura da imprensa quanto a postura do governo.

Dois dias antes, a seleção brasileira de futebol masculino, uma entidade nacional, ganhara do Japão na abertura da Copa das Confederações, na mesma Brasília, em um evento-teste da Fifa pré-Copa do Mundo do ano seguinte. Antes da partida, a presidente Dilma Rousseff fora vaiada por quase todo o estádio durante o protocolo oficial, na sua apresentação ao lado do então presidente da federação de futebol, o suíço Joseph Blatter. A reação da torcida serviu de termômetro da opinião pública para a chefe do Executivo. 

Alguns dias depois, em 20 de junho, uma quinta-feira, mais de 1 milhão de pessoas engrossou as manifestações em quase 400 cidades brasileiras — muitas delas com cartazes em que se via escrita a frase que ajudaria a explicar (ou não) o que estava acontecendo: “O gigante acordou”.

Naquele instante, as ruas do País estavam repletas de camisas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), à venda em lojas ou nos varais dos ambulantes — ou então vestindo torcedores que se deslocavam pelos estádios. O assunto dominava dos grandes jornais às conversas de padaria e pontos de taxi das metrópoles. “Não é usual que o uniforme do Brasil tenha se tornado já ali um símbolo dos protestos anti-PT que tomariam as ruas de junho de 2013 em diante. Havia uma disponibilidade da camisa da seleção para ser usada tanto para ir aos jogos como para protestar”, observa a socióloga Ângela Alonso, que se debruçou sobre a ebulição daquele mês e, hoje, é uma referência nos estudos a respeito do fenômeno.

“Mas não é só isso: a própria ocasião do campeonato, com a presença da imprensa internacional, o burburinho da véspera da Copa do Mundo, as críticas às cobranças que a Fifa fazia ao Brasil acerca da organização, tudo aquilo compôs o caldo do que aconteceria em seguida”, completa ela. Mais do que isso, a camisa da CBF também expressaria a narrativa que saiu vitoriosa de junho de 2013: a dos “patriotas”, como os próprios passaram a se chamar desde então.

De acordo com várias pesquisas realizadas nos anos seguintes, as pessoas que estavam nas ruas, em junho de 2013, eram parte de classes médias urbanas, escolarizadas e cujo modelo de expressão política remetia ao movimento Caras Pintadas, do começo dos anos 1990, quando essas mesmas classes médias haviam protagonizado, ainda jovens, a última manifestação popular do Brasil — e daí a busca por algo que as vestisse de verde e amarelo novamente.

Dentre as poucas pautas claras, estavam segurança da propriedade privada (que resvalava em políticas de redistribuição de terra e em demarcação de territórios indígenas, por exemplo) e diminuição de impostos. A demanda que deu origem ao movimento — a redução ou eliminação do preço das tarifas do transporte público em São Paulo — ficou logo em segundo plano.

Seria o uniforme da seleção de futebol, então, o símbolo definitivo de um mês que, como se tornou comum dizer, nunca mais terminou. Por quê?

JUNHO QUE PERMANECE

De acordo com Angela, que lançou recentemente a série ‘O começo do avesso’ ao lado do documentarista Paulo Markun, a resposta principal está na sensação de crise política que permeia o horizonte brasileiro até hoje. “Ali foi o momento em que ela foi detectada. De lá para cá, essa percepção não se perdeu mais”, analisa.

É nesse cenário que a socióloga enxerga temas que, emergidos de junho, permaneceram no dia a dia nacional, como a violência (urbana, mas também política) e a corrupção, sempre alçando os próprios atores. “A moralidade pública, sobretudo, exerceu um papel importante na vida política brasileira pós-junho, sem deixar de notar que os anos de Jair Bolsonaro no poder também foram marcados pela ascensão de uma moralidade privada”, continua a socióloga, lembrando dos debates que, na esteira da chegada do empresário Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, foram chamados de “guerras culturais” ou “pautas de costumes”.

Um terceiro elemento, segundo Angela, se aprofundou depois daqueles protestos: o retorno dos militares às decisões políticas. Esse processo começou a acontecer ainda durante a administração de Michel Temer, quando o Ministério da Defesa passou a ser comandado por um militar após anos em comandos civis.

Um estudo recente realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que o número de membros das Forças Armadas em cargos do governo federal triplicou em um intervalo de nove anos. Em 2021, eram 1.085 funcionários alocados em postos públicos — alta de 193% em comparação a 2013. “De um lado, parte do campo patriota já desejava que os militares retornassem à política. De outro, eles se aproximaram dela, de fato, quando o governo Dilma tematizou outra vez a Comissão da Verdade”, relembra ela, referindo-se ao grupo que se formou para investigar crimes cometidos pelas Forças Armadas durante a ditadura.

A permanência mais relevante de junho de 2013 no horizonte brasileiro, na visão do filósofo José Costa Jr., professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), por sua vez, foi uma politização profunda da população, baseada no ressentimento e na indignação. É isso que explica a voracidade dos ataques de 8 de janeiro deste ano, por exemplo.

A ação aconteceu não apenas pela temperatura do ambiente à época, mas também pela possibilidade de inserir narrativas políticas em circulação com uma rapidez assustadora por meio das redes sociais. “Todas as esferas da vida foram absolutamente politizadas. Vemos isso hoje na divisão das cores das roupas das pessoas, nos adesivos dos carros, que já situam quem é quem. Esse debate político não passou a acontecer com leveza ou cordialidade, como uma visão romantizada do Brasil sugeria. Ao contrário, ele é tenso e perigoso.”

Entremeadas nessa politização estão outras heranças sociopolíticas, como a fixação por narrativas à direita, com grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL). Ao apresentar força semelhante, pautas identitárias ganharam espaço no debate público. “Os protestos também foram um momento para as pessoas expressarem as experiências sociais, muitas delas ligadas às pautas identitárias. Essas exigências indignadas dos movimentos sociais e representativos podem ser vistas agora, por exemplo, na montagem dos ministérios do governo Lula”, afirma o filósofo.

O legado dos protestos ainda está em disputa — tal como era quando as pessoas começavam a sair às ruas —, na opinião do sociólogo Breno Bringel, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), outro estudioso do fenômeno de 2013. “O que confundia os analistas do momento era, justamente, a confusão de demandas em meio às várias nuances ideológicas de quem estava nos protestos. Junho não foi nem de esquerda nem de direita. Ele foi tudo.”

Assim, para entender o que aconteceu naqueles dias, Bringel recorre ao período posterior e encontra discussões cordiais e traumas na mesma intensidade. “Muitos ativistas observam ali uma renovação radical dos movimentos e coletivos sociais do Brasil, que se concretizaram em iniciativas político-institucionais interessantes, como os mandatos coletivos em parlamentos País afora. Mas é um fato que a direita saiu fortalecida daquele processo.”

O sociólogo também considera junho a ruptura definitiva da Nova República, regime político-social iniciado em 1988 com a Constituição. “O problema é que ainda não sabemos o que veio depois — isto é, o que estamos vivendo hoje”, avalia ele, lembrando de outros choques políticos que vieram na sequência, como o impeachmentde Dilma Rousseff, a crise entre os poderes e o galope de Jair Bolsonaro, então um deputado do baixo clero, à presidência.

O PRODUTO BOLSONARO

O diagnóstico de que Jair Bolsonaro seja o produto mais consumado de junho de 2013, aliás, nunca foi consensual entre quem estuda o que aconteceu naquele mês. Embora haja uma percepção clara de que o ex-presidente aproveitou a esteira de indignação e de busca por mudanças que as ruas demandavam naquele momento, também existe um cuidado em não canalizar aquele fenômeno em uma única explicação histórica. “Havia gente nas ruas no mundo inteiro. A Primavera Árabe ainda não tinha acabado e, logo em seguida, muitos outros protestos parecidos foram acontecendo. No Brasil, essa tendência global encontrou as próprias tensões políticas. Um dos caminhos que ela construiu foi a via extrema direita”, analisa José Costa Jr, da IFMG.

Ângela Alonso lembra que os protestos de 2015, já direcionados à gestão petista, foram maiores do que junho de 2013 em termos quantitativos — embora não tenham obtido o mesmo efeito. Ali, o bolsonarismo ainda não era um fenômeno social tão definido, embora já apresentasse facetas que o tornariam palpável nos anos seguintes, como uma releitura à direita do passado do Brasil e a própria pauta de costumes. “Sempre que uma crise surge, ela vem acompanhada de uma procura por entender a nação e por quem a representa. Neste caso, era uma busca por saber quem eram os ‘verdadeiros brasileiros’”, analisa.

Bringel é mais contundente: não existe uma relação de causa e efeito entre as ruas de 2013 e o bolsonarismo. “Em junho, as janelas de oportunidades políticas estavam abertas — e elas foram ainda mais abertas quando as ruas foram tomadas. O antagonismo que veio depois é que se inclinou à direita, chegando, então, a Bolsonaro.”

JUNHO QUE VIRÁ?

Se há um consenso sobre 2013, porém, é que ele não acontecerá de novo. Talvez resida nisso o seu caráter histórico: a quase impossibilidade de se repetir. É um diagnóstico ainda mais complexo ao se observar, da mesma forma, que as contradições que permitiram que os brasileiros tomassem as ruas das cidades pedindo tantas coisas ao mesmo tempo não foram solucionadas. Muitas delas, ao contrário, se aprofundaram. “Daquele jeito não se repetirá, mas é um fato que a oposição à direita do governo Lula estará muito mais organizada e bem financiada do que nos primeiros mandatos dele”, afirma Alonso. “Nós estamos vendo como esses movimentos já estão unidos na contestação, embora isolados no campo ‘patriota’. Dependendo dos caminhos da administração atual, outras redes podem ser ativadas.”

Para Bringel, acontecimentos como junho de 2013 são difíceis de se repetir porque uma mobilização daquele tamanho, marcando uma inflexão histórica entre um antes e um depois, é rara. “Costuma acontecer uma vez a cada três ou quatro décadas”, calcula.

No entanto, o argumento principal para essa não repetição é outro: para que pudesse acontecer outro junho de 2013, o Brasil não deveria estar tão polarizado — já que só com uma certa totalização social seria possível fazer aquilo ser viável novamente. O caso do Chile, em 2019 [quando a população tomou as ruas da capital, Santiago, em protestos contra uma mudança na regra previdenciária], é quase didático nesse sentido. “Hoje, vivemos em um país dividido. As mobilizações ficaram mais fortes, mas, ao mesmo tempo, mais divididas.”

Do ponto de vista existencial, não existirá nada parecido, na visão de Costa, ao menos na intensidade, porque faltam protagonistas empolgados com uma mudança. “Os jovens de hoje estão muito descrentes, e quem era jovem naquela época vive em grandes dificuldades hoje, não encontrando soluções emancipatórias na política. A rua se tornou um desafio para eles. É um niilismo mesmo.”

Se é comum olharmos para anos importantes da história (1945, com o fim da Segunda Guerra, ou 1968, com as manifestações em Paris) como eternos, é fato que o Brasil pós-2013 é outro. O que ainda não sabemos é que país nasceu ali.

Vinícius Mendes Maria Fernanda Gama
Vinícius Mendes Maria Fernanda Gama