Em meados da década de 1980, o movimento Diretas Já reuniu partidos políticos e instituições da sociedade civil. Ali nascia o embrião de uma importante mudança no comportamento dos cidadãos brasileiros: a fiscalização sobre o trabalho dos representantes que a sociedade elegeu
Em fevereiro de 1984, o movimento nacional suprapartidário Diretas Já instalou na Praça da Sé, no Centro de São Paulo, um painel de 348 metros quadrados com os nomes de todos os deputados federais em exercício no País e o posicionamento deles em relação à emenda constitucional que propunha eleições diretas, no ano seguinte, para a Presidência da República: a favor ou contra.
A proposta constitucional, que ficou conhecida como “Emenda Dante de Oliveira”, foi rejeitada pelo Congresso Nacional em abril de 1984 – mas o Diretas Já teve influências mais longevas. “O movimento de fiscalização e controle da sociedade sobre o trabalho dos políticos foi motivado pelo processo de redemocratização e pela experiência participativa do processo constituinte”, explica o cientista político Humberto Dantas, diretor do Movimento Voto Consciente e coordenador do blog Legis-Ativo: a Ciência Política e um olhar sobre os Legislativos, publicado no portal do jornal O Estado de S. Paulo.
Criado por um grupo da sociedade civil na capital paulista, em 1987, o Movimento Voto Consciente nasceu das necessidades de cobrar e acompanhar o trabalho dos políticos eleitos. No início, monitorava os vereadores paulistanos, mas o movimento cresceu, marcando presença na elaboração da Lei Orgânica do Município de São Paulo, aprovada em 1990. Daí, passou a acompanhar a Assembleia Legislativa, espalhando-se por outras cidades paulistas e para os Estados do Rio de Janeiro, de Rondônia, de Minas Gerais e do Ceará.
Segundo Dantas, que também é o coordenador da pós-graduação em Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), o controle da sociedade civil no trabalho dos governantes ganhou novo impulso com os atos realizados em 2013.
Os manifestantes das Jornadas de Junho, como ficaram conhecidos os protestos por todo o País, contaram com uma importante aliada: a tecnologia, essencial para aprimorar o monitoramento da sociedade sobre o trabalho dos políticos. “A segunda grande onda de olhar sobre o Legislativo [a primeira ocorreu no Diretas Já] existe por causa dos novos atributos que a tecnologia trouxe”, explica Dantas.
Segundo Armando Luiz Rovai, advogado e professor de Direito Público da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o momento de forte polarização política em que vivemos torna ainda mais importante a participação da sociedade na consolidação do sistema democrático. “Quanto maior for a transparência dos agentes públicos e a fiscalização por parte da população, melhor será o regime democrático. Quem está na vida pública tem de acatar essa fiscalização por parte da imprensa e da população”, afirma.
Foi com um pensamento semelhante que Mario Mello, engenheiro civil que fundou, em 2018, a associação Poder do Voto, entidade apartidária e sem fins lucrativos que acompanha o trabalho dos parlamentares no Congresso para reforçar a conexão com o cidadão. Por meio de um aplicativo, o usuário pode acompanhar, gratuitamente, os principais projetos de lei em discussão, seguir o trabalho do político que elegeu e mandar recado aos seus representantes, mostrando se é a favor ou contra um determinado projeto.
“O acesso transparente à informação e ao processo decisório é fundamental para os aumentos da credibilidade e da atuação da população em geral. Seguindo os princípios do Poder do Voto, as soluções tecnológicas de acompanhamento devem ser imparciais, com isenção de posicionamento e altos graus de automação, confiabilidade e transparência, bem como devem ser comprovadamente seguras”, completa Mello.
Presente em 150 cidades de 17 Estados, o sistema Observatório Social do Brasil (OSB), associação sem fins lucrativos de voluntários sem filiação partidária, analisa editais de licitações das prefeituras para checar aspectos legais e preços, enviando ofício ao executivo municipal solicitando as devidas correções, em caso de irregularidades. Entre 2013 e 2019, o sistema OSB calculou que tais ações permitiram economia de mais de R$ 4 bilhões aos cofres.
Para o monitoramento do Legislativo, o OSB usa a plataforma MonitLegis, na qual são registrados os gastos dos vereadores e a sua produção legislativa, com base nas atas das sessões da câmara. “Pelos gráficos comparativos, é possível mostrar aos vereadores o quanto estão se distanciando das suas promessas de campanha, o quão relevantes são suas propostas e onde podem economizar recursos”, afirma Belonice Sotoriva, empresária e presidente do OSB.
Em Minas Gerais, o Instituto Cultiva criou uma metodologia de avaliação dos serviços municipais pelos cidadãos. O projeto Gestão em Rede realiza visitas domiciliares nas quais os técnicos colhem a opinião dos munícipes sobre itens como coleta de lixo e atendimento à saúde, gerando relatórios a cada 60 dias. Os dados são encaminhados aos secretários municipais, sendo que as respostas são devolvidas aos moradores em boletins eletrônicos e reuniões virtuais.
A fiscalização dos agentes do Executivo e do Legislativo também é importante para garantir a inclusão social das classes menos favorecidas, segundo Socorro Leite, diretora-executiva da Habitat para a Humanidade Brasil. Ela cita como exemplo o Fórum Nacional de Reforma Urbana, que tem ação neste sentido, a De Olho no Seu Voto. “Após as eleições, a fiscalização é essencial para garantir que os eleitos cumpram com os compromissos que firmaram durante a campanha e avancem por políticas de inclusão. O controle social é fundamental, e a sociedade civil precisa estar ativamente engajada em fiscalizar o trabalho de ambos, tanto do Legislativo como do Executivo”, diz Socorro.
A fiscalização e a busca por transparência nas ações dos servidores eleitos pela população já fazem parte da cultura de diversos países. Na Alemanha, desde 1993 a ONG [Organização Não Governamental] Transparência Internacional (TI) trabalha “por um mundo no qual os governos, as empresas, a sociedade civil e a vida das pessoas sejam livres de corrupção”. Presente em mais de cem países, entre eles o Brasil, a TI fiscaliza e monitora a administração pública, denunciando irregularidades que ponham em risco o bem-estar da população.
Trabalho semelhante é desenvolvido pela Open Knowledge Foundation, também da Alemanha. A entidade possui um “braço” no Brasil e tem atuado fortemente pela transparência de informações do Poder Público – em todas as esferas – durante a pandemia causada pelo coronavírus.
O Banco Mundial também mantém um departamento de busca por transparência de informações do Poder Público à sociedade no mundo inteiro, o Open Government Partnership (OGP). O comitê do OGP realiza contato com ONGs internacionais dedicadas à transparência e à fiscalização de ações de chefes tanto do governo como dos parlamentos.
Na América do Sul, há organizações que se dedicam a fiscalizar as ações dos governantes locais. Uma delas é a Fundación Éforo, na Argentina, que mobiliza os cidadãos argentinos para cobrar transparência nas ações dos agentes públicos, do Executivo e do Legislativo.
Na Colômbia, o trabalho da ONG Bogotá Cómo Vamos é combinar, analisar e divulgar indicadores técnicos que permitam ao cidadão conhecer melhor os impactos da gestão pública na qualidade de vida da população.
Para o professor Rovai (Mackenzie), a fiscalização feita pelo povo sobre os agentes públicos é fundamental para a cidadania e deve ser exercida de maneira permanente. “A democracia só funciona quando é utilizada pelas pessoas. Senão, é como um músculo do corpo: quando não utilizado, acaba atrofiando.”