Cartórios a um passo da digitalização

27 de maio de 2022

Texto que prevê interligação eletrônica dos registros até janeiro de 2023 passou na Câmara e está no Senado. Setor defende modificações em prol da segurança jurídica, da proteção de dados e da fiscalização do Poder Judiciário.

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Está em tramitação no Senado a Medida Provisória 1085/21. Editada pelo governo no final de dezembro de 2021, a MP cria o Sistema Eletrônico de Registros Públicos, (Serp) para promover a digitalização dos cartórios de registro, a interconexão destas instituições, a interoperabilidade de seus bancos de dados e o atendimento remoto aos usuários por meio da internet.

Aprovada em 5 de maio de 2022 na Câmara dos Deputados, a norma vale para os cartórios de registros de imóveis, de títulos e documentos, e os civis de pessoas naturais e jurídicas. Nesta semana, a votação, que estava marcada para quarta-feira (25), foi adiada. De acordo com o relator, senador Weverton (PDT-MA), em declaração à Agência Senado, há muitas emendas ao texto, e é preciso negociar com os senadores e com a Câmara uma solução, já que mudanças feitas no Senado fariam o texto voltar à análise dos deputados. O prazo da medida vence no dia 1° de junho.

Na avaliação do secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Pedro Calhman, o sistema vai beneficiar cidadãos e empresas ao modernizar os serviços, evitando deslocamentos aos cartórios e filas. “Haverá um ponto de acesso centralizado em ambiente eletrônico”, diz. Pela MP, a implantação do Serp deve ocorrer até 31 de janeiro de 2023.

A iniciativa pretende viabilizar também a recepção e o envio de documentos e títulos, fornecimento de certidões, intercâmbio e armazenamento de documentos, divulgação de indicadores estatísticos e consultas sobre a situação de bens imóveis e móveis registrados. Tudo de forma eletrônica.

A MP prevê ainda casos em que o registro poderá ser feito com base em extrato eletrônico, sem necessidade de apresentação do documento original, como um contrato. O acesso aos sistemas poderá ser feito por meio de assinatura eletrônica avançada a partir da plataforma gov.br.

Crédito

Para o governo, o sistema vai aumentar a segurança jurídica e a transparência dos atos, dar maior agilidade aos processos, reduzir a burocracia e, indiretamente, os custos com serviços cartoriais. “Vai melhorar o ambiente de negócios”, observa Calhman.

De acordo com o subsecretário de Política Microeconômica do ministério, Emmanuel Sousa de Abreu, ao possibilitar consultas nacionais aos registros de bens móveis e imóveis, o sistema facilitará o oferecimento de garantias e sua aceitação por instituições financeiras. Com isso, o governo espera que haja ampliação da oferta e redução do custo do crédito. O sistema promete interligar os cerca de 13 mil cartórios do País.

Segundo Abreu, a MP se insere num conjunto de quatro medidas, que têm como metas aumentar a oferta e reduzir o custo do crédito. As outras são o Projeto de Lei 4188/21, que cria um novo marco legal das garantias; a MP 1103/22, conhecida como “Marco da Securitização”; e a MP 1104/22, que modifica a legislação de garantias do crédito agrícola.

Todas tramitam em regime de urgência na Câmara e são prioridades do governo este ano, em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) tentará a reeleição.

Imóveis

O setor imobiliário comemora a MP. O presidente do Conselho Jurídico da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Gama, afirma que a MP “representa uma virada de mesa nos trâmites cartoriais”. “Saímos da era analógica (papel) para a era digital”, observa.

Para ele, entre os principais benefícios estão a redução de prazos e custos e a simplificação de procedimentos. Gama diz, por exemplo, que pela nova regra, o prazo para registro de escritura cai de 30 dias para 5dias úteis. A emissão de uma certidão de inteiro teor de imóvel por meio eletrônico será reduzida de 5dias úteis para 4horas.

“Para a iniciativa privada, tempo é dinheiro. Imagine quanto a economia do nosso País não poderá ganhar com a agilização dos registros de propriedades de imóveis”, declarou Gama. “Como, no Brasil, só é dono quem registra, o cidadão de posse da matrícula do seu imóvel poderá oferecê-lo em garantia de empréstimo com taxas de juros mais acessíveis”, destaca.

Gama refere-se não ao financiamento imobiliário tradicional, mas aos empréstimos com garantia de imóveis, modalidade conhecida como “home equity”. É uma alienação fiduciária, mas, neste caso, o tomador pode usar o dinheiro para qualquer coisa. Em tese, os juros são mais baratos, e os prazos, mais longos.

O presidente da Associação Nacional dos Registradores e Notários do Brasil (Anoreg/BR), Cláudio Marçal Freire, afirma que a MP “é voltada quase que exclusivamente ao registro de imóveis”. “As mudanças estão relacionadas a esta especialidade”, ressalta.

Segundo ele, a digitalização dos serviços de notas e registros no País “já se encontra em estágio extremamente avançado, com a existência de plataformas de serviços digitais e mais de 95% dos atos podendo ser realizados de forma eletrônica”.

Cronograma

Sobre o prazo de implementação do Serp, Freire ressalta que, no Brasil, há realidades muito distintas. “Portanto, um prazo gestado sem levar em consideração as peculiaridades do País pode sofrer com intercorrências”, declara.A Lei 11.977, de 2009, já previa a criação de um sistema eletrônico nacional interligando os cartórios, mas não atingiu seus objetivos.

O executivo acrescenta que 2.640 cartórios são deficitários. “Não possuem renda para sobreviver adequadamente, por estarem em municípios muito pequenos e realizarem diversos atos gratuitos”, pontua Freire.

Embora tenha sido aprovada na Câmara sem alterações, a MP recebeu mais de 300 emendas, e novas intervenções estão ocorrendo no Senado.

A MP prevê que o Serp será criado e mantido por meio de um fundo financiado pelos oficiais de registros públicos. A norma delega à Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a definição do cronograma de implantação do Serp, a regulamentação do fundo e do funcionamento do próprio sistema.

Embora tenha sido aprovada na Câmara sem alterações, a MP recebeu mais de 300 emendas, e novas intervenções estão ocorrendo no Senado. O texto estabelece, por exemplo, que o Serptenhaum operador nacional constituído na forma de pessoa jurídica de direito privado.

“A expectativa é que a MP seja aprovada com as correções necessárias em prol da segurança jurídica do sistema, dos dados do cidadão e da fiscalização do Poder Judiciário”, destaca Freire.

Proteção de dados

Entre os opositores, o deputado Henrique Fontana (PT-RS) criticou o modelo. O político defende que um sistema centralizado, como o Serp, deveria ter gestão pública. “Para que o cidadão tenha mais segurança de que ela (a gestão do Serp) vai responder por crimes, por exemplo, de vazamento de informações de todos nós”, declarou ele, segundo comunicado da bancada do PT na Câmara. O partido votou contra a medida.

Docente em Proteção de Dados na Universidade Goethe de Frankfurt, na Alemanha, o advogado Ricardo Campos, sócio do escritório Opice Blum, Bruno e Vainzof, afirma que a criação de uma entidade de direito privado para esta função não tem previsão na Constituição: “O desenho constitucional do regime de serventias (cartórios) é voltado para pessoas físicas.”

Além disso, Campos ressalta que o Serp poderá atuar como banco de dados centralizado, o que potencializa riscos de vazamentos e contraria a legislação de proteção de dados. Neste caso, as boas práticas recomendam a descentralização.“Não houve um estudo do impacto destas medidas.”

Ele acrescenta que o registro com base em extratos eletrônicos sem “um terceiro desinteressado”, para atestar a veracidade da operação,gera insegurança jurídica; e ainda, que o uso da assinatura eletrônica representa uma “fragilização” em comparação com a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), sistema de emissão de certificados digitais adotado no País.“Ninguém quer ficar usando papel, mas precisamos nos preocupar em ter um modelo seguro”, afirma.

Campos critica também a excessiva responsabilidade de regulamentação dada à Corregedoria do CNJ: “O CNJ é um órgão fiscalizador. A arquitetura do sistema deveria ter sido feita de forma mais clara.”

Para o advogado, a MP “soa” como uma tentativa de replicar no Brasil o sistema norte-americano de registro eletrônico de hipotecas. Ele é gerenciado por uma entidade privada, a MortgageElectronicRegistrations Systems (MERS), criada por instituições financeiras.

Campos critica ainda a introdução do tema por meio de MP, em vez de por projeto de lei. “O cenário ideal é colocar todos os interessados para discutir o tema”, avalia.

Alexandre Rocha Paula Seco
Alexandre Rocha Paula Seco