Às vésperas de completar 35 anos, a Constituição de 1988 tem suas contradições e limites revelados por sucessivos embates entre os poderes. Mas como chegamos à sua gênese na década de 1980?
Marcada pelo paradoxo de esboçar um Estado de bem-estar social incompatível com o pífio desempenho econômico verificado no período, nossa Carta Magna, saudada na época de sua promulgação como a Constituição Cidadã, foi desfigurada por mais de cem emendas. Uma delas, a que permitiu a reeleição para o Poder Executivo nos três níveis, abalou ainda mais o precário equilíbrio do chamado “presidencialismo de coalizão”, lastreado por uma miríade de partidos capturados pelo poder econômico, que trocam seu apoio ao governo de turno por cargos e verbas.
Esse pântano tragou o mandato de dois presidentes da República por impeachment e provocou a hipertrofia do Poder Judiciário, chamado a exercer um protagonismo político e legislativo que não é o seu.
Para entender em quais contextos surgiram as sete constituições brasileiras, revisitamos da história institucional do Brasil, suas circunstâncias e características.
Após a Independência, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, convocada por D. Pedro I, reuniu 90 representantes para debater um projeto de constituição logo apelidado de Mandioca, por causa do critério censitário estabelecido para o direito de voto: só poderia ser eleitor ou candidato a deputado quem tivesse renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha de mandioca. Assim constituído, a 3 de maio de 1823 surgia o parlamento brasileiro.
À frente dessa elite agrária se situava, porém, um pensador imbuído das ideias do Iluminismo: José Bonifácio de Andrada e Silva. O Patriarca da Independência se preocupava com questões que ainda hoje aguardam resposta, como educação, reforma agrária e construção de uma sociedade civil participativa. Sua proposta de proibição do tráfico de escravos e eliminação gradativa da escravidão foi ignorada, como de resto todo o trabalho da Constituinte, dissolvida pelo imperador, irritado pelos rumos que apontavam o predomínio do Poder Legislativo sobre o Executivo.
Enquanto José Bonifácio seguia para o exílio, D. Pedro I encarregou uma comissão de elaborar a Constituição, à semelhança de outras da época, como a da França, que acabara de restaurar o poder do rei Luís XVIII. Outorgada e jurada em 25 de março de 1824, nossa primeira Carta tratava apenas dos limites e das atribuições dos poderes políticos e dos direitos e garantias individuais. Além da clássica divisão dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, instituiu o Poder Moderador, que só existiu no Brasil e reservava enorme protagonismo ao imperador, diferenciando-nos das demais monarquias constitucionais, subordinadas ao Parlamento. A religião católica apostólica romana era a única reconhecida oficialmente, e suas ordens eclesiásticas se responsabilizavam por instrução pública, registro civil e administração dos cemitérios, além de casamentos e batismos.
Para evitar fracionamentos como ocorrera na América Espanhola, o Estado imperial era centralizado política e administrativamente, com os governadores de província nomeados pelo Poder Central, o que provocou a Confederação do Equador, em Pernambuco, em 1824, e o ciclo de revoltas das regências na década de 1830, após a abdicação do imperador.
Somente com a maioridade de D. Pedro II e o estabelecimento do Parlamentarismo – que a Constituição inicialmente não previa – que o País alcançou estabilidade. Liderados por um presidente do conselho de ministros, que ora saía do Partido Conservador, ora do Liberal, revezaram-se 36 gabinetes até 1889. Nesse período, marcado pela Guerra do Paraguai e pela Abolição da Escravidão, o Poder Moderador dissolveu a Câmara 13 vezes, o que não podia ser feito com o Senado, composto por membros vitalícios indicados pelo imperador. Revogada pela República depois de 65 anos em vigor, a Carta de 1824 era a segunda Constituição escrita mais antiga do mundo, superada, apenas, pela dos EUA.
Ao cair da noite de 15 de novembro de 1889, Rui Barbosa começou a redigir os decretos de institucionalização do novo regime que o primeiro presidente, Marechal Deodoro da Fonseca, deveria assinar. Também foi da lavra de Barbosa a redação final da Constituição de 1891, que marcou a separação entre a Igreja e o Estado, além de introduzir o registro civil de nascimentos, casamentos e mortes. Única entre as nossas constituições votadas por representantes do povo a não mencionar Deus em seu preâmbulo, ela garantiu a liberdade religiosa, extinguiu a vitaliciedade do Senado e aprovou o sufrágio universal, restrito, porém, aos brasileiros adultos, do sexo masculino, que soubessem ler e escrever.
Inspirado nas Cartas de EUA, Argentina e Suíça, o texto estabeleceu, além dos Três Poderes tradicionais, um regime presidencialista e federativo do tipo norte-americano, explícito até na designação adotada para o País: Estados Unidos do Brasil. Como nos Estados Unidos da América, havia senados estaduais (abolidos após 1930) e o presidente da República podia vetar projetos apenas no todo (o veto parcial foi admito por emenda em 1926). Copiava também dos EUA a regulação do impeachment do presidente nos crimes de responsabilidade e crimes comuns, em moldes que até hoje são os mesmos.
A limitação dos poderes do presidente da República representou a derrota dos positivistas, que defendiam uma “ditadura científica” baseada nas ideias de Augusto Comte, que, entretanto, ficaram plasmadas no lema “Ordem e Progresso” de nossa bandeira. Aproveitando-se da grande autonomia estadual consagrada pela Constituição de 1891, o figurino positivista prevaleceu apenas no Rio Grande do Sul, onde – ao contrário da União e dos demais Estados – a reeleição para o Executivo era permitida, o habeas corpus não existia e as profissões liberais podiam ser exercidas livremente (sem prova de habilitação técnica).
Revogada pela Revolução de 1930, a primeira Carta republicana foi violada em seu alvorecer pelo Marechal Floriano Peixoto, vice-presidente que assumiu após a renúncia de Deodoro e se manteve no cargo, ignorando o dispositivo constitucional que determinava a convocação de eleições. Em seus 40 anos de vigência, as eleições “a bico de pena” (fraudadas) chancelavam o comando do País por paulistas e mineiros, que se revezavam no poder, alternância conhecida como Política do Café com Leite.
As greves gerais em São Paulo e no Rio de Janeiro, o ciclo de revoltas tenentistas e a crise mundial de 1929 puseram fim ao regime oligárquico da República Velha, inaugurando uma era que faria o Brasil trocar três vezes de Constituição no curto espaço de 12 anos, sob o impacto da figura controversa de Getúlio Vargas.
No primeiro semestre de 1932 – antes, portanto, da chamada “Revolução Constitucionalista”, iniciada a 9 de julho daquele ano, em São Paulo –, o governo provisório de Vargas baixou por decreto um código eleitoral com pontos que até hoje norteiam as votações no País: a Justiça Eleitoral, o voto secreto, a representação proporcional e o sufrágio feminino.
A eleição da Assembleia Nacional Constituinte marcada para o dia 3 de maio de 1933 trazia, porém, uma inovação que se tornou fato isolado em nossa história: a participação de 40 deputados classistas (representantes de associações profissionais de patrões e empregados) ao lado dos 241 parlamentares eleitos pelo voto popular, incluindo pela primeira vez uma mulher, a médica Carlota Pereira de Queirós.
Inspirada nas Cartas alemã de Weimar (1919) e da República espanhola (1931) a Constituição promulgada em 16 de julho de 1934 não ignorava as questões sociais, como suas predecessoras. Embora com menos detalhes do que fariam as Cartas de 1946 e 1988, o texto lançava as bases do Brasil contemporâneo em matérias como funcionalismo público, família, cultura e ensino. O capítulo sobre as ordens econômica e social colocava limitações à propriedade privada, previa assistência aos pobres e assegurava aos trabalhadores autonomia sindical, salário mínimo, jornada de oito horas, férias remuneradas, repouso semanal obrigatório e indenização por dispensa sem justa causa.
Além disso, introduzia o tema da segurança nacional, que se tornaria dominante durante a Guerra Fria, na segunda metade do século 20. Por pressão católica, a menção a Deus voltou ao preâmbulo e o casamento passou a ser considerado indissolúvel até a Lei do Divórcio, na década de 1970. Garantia-se a liberdade de culto e as associações religiosas adquiriam personalidade jurídica nos termos da lei civil.
Apesar de seus méritos – ou por causa deles –, essa seria a mais efêmera de nossas constituições. Em 1935 foi suspensa pela decretação do Estado de Sítio e, em 1937, quando deveria ocorrer eleição direta para a substituição de Getúlio Vargas, foi por ele rasgada.
Durante a ditadura do Estado de Novo (1937-1945), vigorou a Constituição de contornos fascistas que passou à história como Polaca. Seu autor, Francisco Campos – que mais tarde também prestaria serviços à ditadura militar de 1964 elaborando atos institucionais –, teria copiado da Constituição da Polônia de 1935 o modelo que dissolvia a Federação (as bandeiras dos Estados foram queimadas) e concentrava no Executivo a faculdade de elaborar as leis. Essa segunda Carta outorgada previa um plebiscito para sua legitimação jamais realizado.
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, Vargas foi deposto e o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, presidiu a eleição dos deputados e senadores que elaboraram a Constituição de 1946, tida por inúmeros juristas como das mais adiantadas e liberais do mundo. A forma federativa e as liberdades previstas em 1891, somadas à proteção aos trabalhadores e às ordens econômica e social construídas em 1934, foram plenamente restauradas.
Na escolha dos constituintes, pela primeira vez os eleitores representaram mais de 10% da população, o que se refletiu em avanços como a participação dos empregados no lucro das empresas. O direito de voto foi estendido aos jovens maiores de 18 anos, mas os analfabetos continuaram impedidos de votar, o que só seria admitido após 1988.
As principais fragilidades da quinta Constituição brasileira foram, porém, a não incorporação dos trabalhadores do campo à legislação trabalhista e as possibilidades de interferência do “partido fardado”, que, desde a inauguração da República, insistia em determinar os seus destinos. Isso causou a Emenda Parlamentarista, aprovada em 1961 para possibilitar a posse – após a renúncia do presidente Jânio Quadros – do vice João Goulart, que os ministros militares vetavam.
Após o golpe civil-militar de 1964 e os atos institucionais que o seguiram, Marechal Castelo Branco entregou, em 1967, a um Congresso desfigurado pelas cassações de mandatos e suspensão de direitos políticos, uma Constituição elaborada por sua ordem, que estabelecia a eleição indireta do presidente da República. Esse sistema excludente do voto direto (que valeu também para os governadores e, a partir de 1977, para um terço do Senado), perdurou até que, valendo-se do colégio eleitoral da ditadura, Tancredo Neves e José Sarney fossem eleitos. A Carta de 1967, que a partir de 1969 incorporou nova redação outorgada por uma Junta Militar, manteve os princípios da liberdade de imprensa, imunidade parlamentar, independência do Judiciário e habeas corpus. Mas nada disso valeria após a edição do AI-5, em 13 de dezembro 1968, concentrando poderes absolutos nas mãos do general-presidente de turno.
Ao expressar seu “ódio e nojo à ditadura”, tendo em mãos a Constituição atual de 250 artigos (mais 98 nas disposições transitórias), seu principal artífice, Ulysses Guimarães, resumia as aspirações da sociedade brasileira em se livrar do entulho autoritário e instituir, de acordo com seu preâmbulo: “Um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Ponto culminante da passagem do Estado Liberal, delineado em 1824 e 1891, para o Estado Social, construído a partir de 1934, a Constituição de 1988 nasceu inviável, de acordo com a crítica de dois de seus elaboradores, insatisfeitos com o resultado final. Mistura de “dicionário de utopias e regulamentação minuciosa do efêmero”, resumiu Roberto Campos. “Não cabe no PIB”, sentenciou Delfim Netto.
Responsável por dotar o Poder Judiciário de uma independência que o capacita a julgar e até anular atos do Executivo e do Legislativo, a Carta vigente padece, entretanto, de um vício de origem. Elaborada por um Congresso constituinte eleito de acordo com regras remanescentes da ditadura, seus sistemas político, eleitoral e partidário foram desenhados para propiciar a reeleição dos parlamentares e a perenidade de seus caciques, até hoje vitoriosos em obstruir qualquer tentativa de reforma que altere seus privilégios. O que só parece possível por meio de uma Constituinte exclusiva, com a tarefa de restabelecer a soberania popular sobre a representação política.