Passe livre para a desinformação

14 de outubro de 2021

O Projeto de Lei 3.227/21, do Poder Executivo, altera as regras de moderação de conteúdo e de perfis em redes sociais. O texto reproduz integralmente a Medida Provisória 1.068/21, que foi devolvida pelo Congresso Nacional. A proposta em tramitação sugere alterar o Marco Civil da Internet a fim de impedir que as plataformas cancelem perfis ou retirem conteúdos que venham a ferir seus termos de serviço, exceto se houver “justa causa”.

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Após sofrer derrota e não conseguir manter a validade de uma MP (Medida Provisória) que limitava a remoção de conteúdos em redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro decidiu enviar ao Congresso o PL (Projeto de Lei) 3.227, que assume o mesmo objetivo. Segundo a secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, o projeto surge com a missão de “garantir direitos dos brasileiros nas redes”. “As provedoras das plataformas terão de apresentar justa causa para excluir e remover conteúdos e usuários”, afirma o órgão. A secretaria frisa que a medida não impede a remoção de conteúdos e perfis, “apenas combate as arbitrariedades e as exclusões injustificadas e duvidosas, que lesam os brasileiros e suas liberdades”, e que a meta é evitar que “perfis idôneos recebam, de forma injusta, o mesmo tratamento de criminosos”.

A MP 1.068 assinada por Bolsonaro na véspera do feriado do 7 de Setembro alterava o Marco Civil da Internet (MCI) para impedir que as redes sociais decidam sobre a exclusão de contas ou perfis apenas com base nas próprias políticas de uso. A medida foi duramente criticada por entidades, partidos políticos e especialistas, chegando a ser invalidada pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber. A suspensão dos efeitos do texto aconteceu após a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e partidos políticos recorrerem à Corte. Para a Ordem, a estratégia “viola as liberdades de expressão e informação, as garantias da livre iniciativa e livre concorrência, bem como contribui para a disseminação de desinformação e discursos que atentem contra a democracia”. O texto foi publicado em uma edição extra do Diário Oficial da União. Posteriormente, a medida foi rejeitada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Já o texto do PL que se sucede à tentativa frustrada visa igualmente prevenir que as redes excluam conteúdo ou cancelem usuários sem “justa causa”. Caso passe a valer, toda e qualquer exclusão sem justificativa será tida como ilegal. Embora proteger a liberdade de expressão seja importante, a suposta solução prevista soa como perigosa. Ao passo que as plataformas digitais fiquem proibidas de remover publicações sem que haja uma determinação judicial, isso pode favorecer a disseminação de desinformação, notícias falsas, discurso de ódio e assédio, que circulariam sem filtros nesses ambientes. O governo propõe que qualquer rede social com mais de dez milhões de usuários no Brasil não tenha autonomia de moderação. Dentre os motivos que configuram justa causa estão nudez, violação de direitos autorais, pedofilia, terrorismo ou violência explícita, por exemplo. Discurso de ódio e fake news ficaram de fora.

A OAB observou que o texto da MP replicado pelo PL indica a ausência de requisitos de relevância e urgência. Ressalta ainda a inconstitucionalidade, perante o Marco Civil, de proibir as plataformas de atuarem espontaneamente no combate à desinformação, à disseminação de informações inverídicas relacionadas a questões de saúde pública e a discursos tendentes a fragilizar a ordem democrática e integridade do processo eleitoral brasileiro. De acordo com a Ordem, o projeto, ao impedir os provedores de moderar os conteúdos em suas plataformas, demonstra a unilateralidade e a imposição de regras arbitrárias, sem o necessário debate legislativo e democrático.

Rodrigo Vieira, professor de direito e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), concorda que o texto ignora que o MCI já atribuiu papéis e deveres a diferentes agentes para tornar o ambiente digital democrático. “Não se trata apenas de uma tarefa unilateral do Estado”, sublinha. “Claramente, há uma instrumentalização do Estado para que o atual governo dite às plataformas o que pode ou não ser moderado, deixando em aberto várias hipóteses que requerem atenção dessas empresas às iniciativas ilegítimas para propagação e proliferação de discursos de ódio e notícias falsas, continuando a trazer de forma permanente riscos sistêmicos à democracia brasileira.”

Segundo a camara-e.net (Câmara Brasileira da Economia Digital), a mudança poderá fazer o País retroceder na garantia de direitos e liberdades para os usuários da rede. Na perspectiva da entidade, as alterações podem tornar a internet brasileira “mais tóxica e menos segura e vulnerável a ciberataques”. Isto, porque os provedores teriam menor margem de ação para coibir eventuais abusos, como conteúdos que coloquem as pessoas em risco, spams, fraudes e ataques virtuais. “Para que este tipo de mercado possa subsistir e continuar a crescer no País, os esforços de segurança devem ser constantes e ágeis, principalmente diante da velocidade e volume das operações transacionadas diariamente no Brasil. Estes requisitos simplesmente não podem ser cumpridos caso os atos dos prestadores de serviços financeiros tenham de ser previamente chancelados pelo Poder Judiciário”, declara a entidade.

“Claramente, há uma instrumentalização do Estado para que o atual governo dite às plataformas o que pode ou não ser moderado, deixando em aberto várias hipóteses que requerem atenção dessas empresas às iniciativas ilegítimas para propagação e proliferação de discursos de ódio e notícias falsas, continuando a trazer de forma permanente riscos sistêmicos à democracia brasileira.” Rodrigo Vieira, professor de Direito e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

O que é o Marco Civil da Internet

O Marco Civil da Internet é uma lei de 2014 (número 12.965) que, entre outras deliberações, consolida a forma como a moderação de conteúdo nas redes sociais é feita no Brasil e regulamenta a utilização da internet em si, estabelecendo princípios e garantias que tornam a rede livre e democrática. Antes de virar lei, a proposta foi lançada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em outubro de 2009, estágio em que os temas abordados foram desenvolvidos com ajuda da população por meio de audiências públicas.

O MCI obriga a retirada de conteúdos ofensivos de sites, blogs ou redes sociais. A determinação ocorre por ordem judicial, e quem produziu ou divulgou responde ao delito. A privacidade e a proteção de dados do usuário só podem ser violadas em investigações criminais. Sites apenas devem coletar dados com consentimento do usuário (que deve ser informado sobre como serão utilizados), sendo proibido revelar essas informações a terceiros. Além disso, as mesmas normas do Código de Defesa do Consumidor valem para compras e vendas feitas online.

Também é proibido violar a intimidade ou vida privada de outros usuários e divulgar ou compartilhar mensagens, vídeos ou imagens ofensivas. Os direitos autorais devem ser preservados, e a reprodução de conteúdo artístico ou informativo sem autorização é passível de punição. Em caso de investigação, o direito à privacidade e à proteção de dados é suspenso, e as empresas devem identificar os usuários acusados.

Hoje, não existe a proibição nem a obrigação de moderação. Vieira acha que é importante que a moderação de conteúdo seja realizada desta forma, uma vez que o impedimento à realização de determinadas publicações pode ferir a liberdade de expressão do usuário. Ao permitir que as redes possam moderar o conteúdo com base em suas diretrizes, a lei faz o contrapeso nessa questão, evitando a dependência do sistema judiciário que, na interpretação do advogado, não consegue acompanhar a profusão das postagens.

A eficácia do MCI, contudo, não quer dizer que o modelo vigente de moderação não demande ajustes: a exclusão arbitrária de conteúdos tem gerado polêmicas que tangenciam a liberdade de expressão dos usuários. O porta-voz do IBDCult traz ao debate que, sim, falta mais transparência sobre os códigos dessa mediação. Segundo ele, há muitas críticas às distintas maneiras pelas quais a moderação é feita, desde o uso indiscriminado de tecnologias de filtragem sem revisão humana, passando pela terceirização do serviço, até a precarização das condições de trabalho dos moderadores.

A esse respeito, Renato Opice Blum, especialista em Direito Digital, aponta a necessidade de tomadas de decisão com base em “debates técnicos e multidisciplinares”. “Iniciativas legais com enfoque em tecnologia devem observar sempre a inovação, a obsolescência tecnológica e a profundidade do estado da técnica. O tempo e a técnica são elementos definidores da efetividade das propostas legislativas. Daí porque a necessidade premente de especialização e foco”, diz.

“Algumas iniciativas em países democráticos já dão maior ênfase ao dever de transparência das redes sociais para com os usuários, publicação de relatórios periódicos sobre essas atividades, procedimentos claros de moderação que respeitem o devido processo legal, inclusive com direito a recursos para organizações independentes e imparciais, mecanismos de reclamação e reparação e de soluções extrajudiciais de conflitos”, acrescenta Vieira.

A proposta do governo, entretanto, na avaliação do professor, não chega para resolver estes tópicos. “O intuito dessa defesa sem fundamento é fazer parecer que a moderação de conteúdo realizada pelas plataformas seja igualada às atividades dos antigos censores. Isso abre espaço para que, em todo caso de moderação, a censura possa ser alegada como motivo para restabelecimento do conteúdo ou possível indenização pela rede social ao usuário.” E conclui: “As redes sociais estariam de mãos atadas para combater ilicitudes relacionadas à disseminação de notícias falsas, jogando toda a responsabilidade para o Poder Judiciário.”

“Iniciativas legais com enfoque em tecnologia devem observar sempre a inovação, a obsolescência tecnológica e a profundidade do estado da técnica. O tempo e a técnica são elementos definidores da efetividade das propostas legislativas. Daí porque a necessidade premente de especialização e foco.” Renato Opice Blum, especialista em Direito Digital

Tramitação

O Congresso vai avaliar o projeto de lei do Poder Executivo, que antes precisa ser analisado pela Câmara e pelo Senado. Caso seja aprovada, as empresas que não cumprirem a futura lei ficarão sujeitas a penalidades, como advertência e multa de até 10% do faturamento.

Ao devolver a MP 1.068/21, Pacheco disse que a decisão foi tomada com base em regras que dão ao presidente do Congresso Nacional o poder de impugnar proposições consideradas contrárias à Constituição, às leis ou ao Regimento Interno do Senado. Foi a quinta devolução desde a criação das MPs, em 1988.

Na Câmara, o projeto será analisado pelo grupo de trabalho que discute o Projeto de Lei 2.630/2020, do Senado, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

Eduardo Ribeiro Paula Seco
Eduardo Ribeiro Paula Seco
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