Há 30 anos, os brasileiros foram chamados às urnas para decidir se gostariam de manter o poder do País nas mãos do presidente da República, entregar a chefia do governo ao parlamento ou, em uma terceira hipótese, andar mais de um século em direção ao passado e restaurar a monarquia.
No dia 21 de abril de 1993, uma quarta-feira, era realizado o plebiscito nacional para decidir a forma e o sistema de governo no Brasil: república ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo.
Apesar da campanha eleitoral de dois meses nas ruas, no rádio e na televisão — e dos intensos debates ocorridos na época, com direito à propagação de falsas notícias de que um eventual retorno da monarquia traria de volta a escravidão ao território nacional —, a falta de propostas concretas e as ideias vagas defendidas pelos grupos que pregavam mudanças não cativaram o eleitor. Muitos preferiram ir à praia, que lotaram em cidades como o Rio de Janeiro, ou ficaram em casa no feriado no meio da semana, no caso de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e outras.
“Ruas vazias refletem o desinteresse do país com a eleição”, dizia a manchete do jornal Folha de S.Paulo no dia seguinte ao plebiscito. Os números confirmaram a notícia. Mesmo com a obrigatoriedade do voto, o índice de abstenção na votação foi recorde: dos 90,2 milhões de eleitores registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) naquele ano, 23,2 milhões (ou 25,78% do total) não compareceram aos locais de votação. Para se ter uma ideia, nas eleições anteriores (1989 e 1992), os índices de abstenção ficaram em cerca de 7,5% em cada um dos pleitos.
Um dos que se abstiveram da escolha foi o escritor Jorge Amado, que, em declaração à Folha em Salvador, onde morava, classificou a convocação cívica como “um insulto”. “O plebiscito neste momento é um insulto ao povo brasileiro”, afirmou o escritor. Com 80 anos à época, o consagrado autor de Gabriela, cravo e canela, falecido em 2001, era dispensado da obrigação de comparecer à seção eleitoral e ressaltou que aquela era “a primeira vez” que não exerceria o direito de votar.
O Brasil vivia momentos conturbados. Um ano antes, em 1992, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, o primeiro eleito após a ditadura militar, havia renunciado após a abertura do seu processo de impeachment, por denúncias de corrupção no governo federal. A inflação ainda estava descontrolada, e o Brasil começava a corrida para as eleições gerais de 1994, com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), da oposição, despontando como favorito.
Em meio a tudo isso, houve o chamamento para um plebiscito que, dentre outras mudanças, sugeria a volta de um regime abolido desde 1889, após a Proclamação da República. Isto é, havia motivos de sobra para manifestações (como a de Jorge Amado) de que o momento poderia, no mínimo, ser inadequado a uma decisão desse porte nos rumos do País.
“Foi um ponto fora da curva”, explica Paulo Ribeiro da Cunha, historiador e professor livre-docente de Teoria Política na Universidade Estadual Paulista (Unesp). O também autor do livro Militares e militância: uma relação dialeticamente conflituosa lembra das palestras que ajudou a organizar na faculdade, em 1993, para discutir o tema. “O debate maior que se colocava não era sobre a forma de governo, república ou monarquia, mas o sistema de governo, parlamentarista ou presidencialista. Isso que talvez tenha galvanizado mais o mundo político e a ciência política”, afirma Cunha.
O professor explica que outro ponto que centralizou as discussões em torno da forma de governo foi a divisão que havia entre os monarquistas. Os dois ramos da Casa de Orléans e Bragança, a Família Imperial — conhecidos como “Ramo de Vassouras” e “Ramo de Petrópolis” —, eram divididos, principalmente, em relação ao possível ocupante do trono, em caso de vitória da causa monarquista. A disputa era velada, e, em frente às câmeras de televisão e entrevistas à imprensa, os membros reais pregavam a união. No entanto, o racha foi um dos principais motivos para tornar a campanha pela volta da realeza ainda mais morna e opaca. “O interessante é que, mesmo assim, políticos e intelectuais de enorme prestígio na época defenderam a causa da monarquia, como o historiador José Murilo de Carvalho e outros”, diz Cunha.
A proposta do plebiscito nasceu durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela elaboração da Constituição de 1988. Um deputado monarquista, Cunha Bueno (PDS/SP) conseguiu mobilizar os parlamentares para a convocação de uma consulta popular e, ao lado de outros colegas constituintes, conseguiu a aprovação do artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
De acordo com o texto promulgado, “no dia 7 de setembro de 1993, o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País”. Posteriormente, a data foi antecipada para 21 de abril, via Emenda Constitucional (EC), a fim de que houvesse tempo hábil e legal para a organização das eleições gerais que seriam realizadas no ano seguinte.
A campanha invadiu os lares brasileiros e as rodas de conversa, além de mobilizar políticos das mais diversas tendências e artistas badalados da época. Os atores Hugo Carvana e Cissa Guimarães, por exemplo, eram declaradamente monarquistas. A cantora Beth Carvalho era presidencialista convicta: “Lutamos à beça pelas Diretas e, agora v,amos aceitar um parlamentarismo?”, declarou a cantora, falecida em 2019, à imprensa, naquele ano. Outro presidencialista de carteirinha era o ator Milton Gonçalves, que chegou a ensaiar uma carreira política nos anos 1990. Já o ator Eri Johnson aderiu com força à campanha parlamentarista.
No meio político, a Frente Republicana Presidencialista, coordenada pelo senador Marco Maciel (PFL/PE), reunia partidos como PFL, PMDB e PTB. Já os parlamentaristas, pilotados pelo PSDB, formavam a Frente Parlamentarista Ulysses Guimarães, tendo como líderes o senador José Richa (PSDB/PR) e o governador de São Paulo, Franco Montoro, além de outros tucanos de alta plumagem, como Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique Cardoso — à época, chanceler do governo Itamar Franco.
No entanto, ambos os lados tinham representantes de todos os partidos. Isso permitiu fatos curiosos, como o ex-prefeito Paulo Maluf e Covas estarem do mesmo lado em defesa do parlamentarismo. Lula, que, no início, era parlamentarista, mudou de lado para seguir a orientação partidária. “A esquerda quase toda era presidencialista. No PT, eu era um dos únicos parlamentaristas”, lembra o sociólogo e ex-deputado constituinte Paulo Delgado, atual copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
Segundo especialistas, o debate foi pobre e pouco esclarecedor para a população. “Nenhuma das campanhas foi suficientemente convincente para despertar mobilizações apaixonadas, como observamos nas eleições comuns, com candidatos personificados. As ideias não chegaram ao povo como deveriam”, explica o historiador Roberto Biluczyk, cuja dissertação de mestrado aborda o plebiscito de 1993.
“O parlamentarismo não dava respostas concretas sobre o futuro da eleição presidencial, recurso conquistado após anos de ditadura militar”, completa Biluczyk. Do lado da monarquia, além do rompimento entre os integrantes, não havia clareza quanto a quem seria o rei e qual o papel dele como chefe de Estado. “O debate foi fraco e não houve o devido preparo dos eleitores. O que prejudicou muito foi a falta de uma definição sobre qual sistema parlamentarista ou presidencialista iríamos adotar”, explica Cunha, da Unesp.
O debate foi prejudicado ainda mais com as falsas notícias que as campanhas lançavam contra os adversários, em um período no qual não havia sequer internet. Uma das mais famosas era a que associava a monarquia à suposta volta da escravidão. O próprio presidente do TSE à época, Paulo Brossard, teve de interferir no processo e fazer pronunciamentos no rádio e na televisão, algumas vezes para desmentir boatos e notícias falsas.
“Todas as frentes lançaram fake news e foram atacadas por fake news. Apenas para citar dois exemplos, dentre vários, os parlamentaristas diziam que o presidencialismo era corrupto, enquanto o contexto mundial mostrava que a corrupção também existia em países parlamentaristas”, destaca Biluczyk. Já os republicanos, conta o historiador, lançaram críticas à questão monarquista, enfatizando deméritos do período imperial, associado à escravidão. “Os monarquistas responderam com afrodescendentes gratos à princesa Isabel pela assinatura da Lei Áurea, discurso historicamente contestável”, argumenta Biluczyk.
Segundo o resultado oficial do TSE, a república foi a forma de governo vencedora, com 43,8 milhões de votos (66,26%), ante a monarquia, que obteve 6,7 milhões de votos (10,25%) do total. Os monarquistas perderam para brancos e nulos, que obtiveram 6,8 milhões de votos (brancos) e 8,7 milhões (nulos) — ou 10,29% e 13,20% do total, respectivamente.
No caso do sistema de governo, o presidencialismo venceu, com 36,6 milhões de votos (55,57% do total), ante 16,4 milhões do parlamentarismo (24,9%) do total. Brancos e nulos somaram cerca de 12,7 milhões de votos (cerca de 19% do total). “Foi uma consulta desnecessária. O povo não decidiu pelo presidencialismo, votou contra o plebiscito”, conclui Delgado, da FecomercioSP.