Reputação na berlinda

23 de setembro de 2021

Dados mostram que quase metade da população mudou de opinião sobre as instituições públicas por causa da pandemia. Governos locais ganharam credibilidade, enquanto STF e Forças Armadas perderam. O SUS foi a instituição pública que mais ganhou credibilidade – sobretudo, entre os mais pobres.

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Até a metade de 2019, a instituição brasileira mais confiável, na perspectiva da população, era o exército. Segundo uma pesquisa feita em julho daquele ano pelo instituto Datafolha, quatro em cada dez pessoas (42%) diziam confiar muito nas Forças Armadas, ao passo que outras 38% confiavam um pouco. Era uma proporção muito superior à segunda entidade com mais crédito na visão dos brasileiros: o Poder Judiciário, em que 25% afirmavam ter plena confiança – uma diferença, portanto, de 17 pontos porcentuais. Nesta conta não entrava o Supremo Tribunal Federal (STF), embora seja nossa principal corte judiciária. Ao contrário, ela era vista desta forma por 17% do País.

Quase dois anos – e a pandemia mais grave em um século – depois, porém, fizeram com que esta realidade ganhasse novos contornos, que foram captados por uma pesquisa nacional do instituto IDEIA, em parceria com a revista Exame, com uma amostra de 1.259 pessoas: quando perguntada em qual instituição passou a confiar mais durante a crise da covid-19, a maior parte (35,6%) respondeu que foi no Sistema Único de Saúde (SUS), seguido pelas prefeituras locais (23,7%) e pelos governos estaduais (23,3%).

Na contramão, quando questionados sobre aquelas que perderam crédito no mesmo período, os brasileiros citaram com mais ênfase o governo federal (36,4%), o STF (27%) e, justamente, o exército (17,7%).

O que mudou neste espaço de tempo? Na visão de especialistas, quase tudo.

Em primeiro lugar, deve-se mencionar o fator preponderante da pandemia e da forma como ela foi administrada no Brasil. “É notável que o SUS tenha ganhado este lugar para a população sem que tenha sido feita nenhuma campanha pública a seu favor”, observa Ricardo Borges Martins, coordenador do instituto Pacto pela Democracia. “Ao contrário, ele se sustentou, desde o início da crise, sobre uma confiança orgânica, à medida que as pessoas compreenderam que é uma instituição que deve ser preservada.”

Avaliando os dados da pesquisa IDEIA/Exame, esta avaliação pode ser prolongada notando como a maior parte daqueles (44,9%) que citaram ter confiado mais no SUS durante a pandemia são das classes mais pobres (D e E). Quando se olha para a variável “renda”, os números se tornam ainda mais claro: dentre as pessoas que ganham até um salário mínimo, 50,6% disseram terem dado mais crédito ao sistema de saúde público brasileiro – taxa que é de 18,6% dentre aqueles cuja renda varia entre três e cinco salários mínimos.

“Muita gente percebeu que ter uma vacinação pública gratuita não acontece no mundo todo e que, apesar dos problemas, o SUS é benéfico”, analisa Maurício Moura, economista da IDEIA. “Mas o número também traz dentro si também uma grande rejeição a Bolsonaro e à postura federal diante da pandemia.” Apesar disso, embora se trate do grande achado da pesquisa, Moura entende que ele é fruto de um contexto pontual. “Depois que tudo isso passar, o sistema voltará a ter uma avaliação ruim”, aposta.

Não é a mesma percepção do cientista político Antônio Lavareda, professor da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). O seu argumento é de que fenômenos como este são parecidos a momentos históricos únicos, como guerras, em que a relação entre a população e as instituições são estruturalmente modificadas. “O SUS já era valorizado, mas, agora, isso tomou outra dimensão. Tinha gente que nem sabia o significado da sigla. Estas coisas se perpetuam no tempo, ainda que não seja eternas.”

“O SUS já era valorizado, mas, agora, isso tomou outra dimensão. Tinha gente que nem sabia o significado da sigla. Essas coisas se perpetuam no tempo, ainda que não sejam eternas.” Antônio Lavareda, cientista político

EXÉRCITO DE VOLTA À POLÍTICA

Uma segunda transformação social que o Brasil experimentou nestes quase dois anos está na conta do presidente Jair Bolsonaro: a queda na confiança da população nas Forças Armadas – e isso por causa da presença mais substantiva dos militares na vida política do País: até o fim de 2020, ocupavam cerca de 6,1 mil cargos civis dentro da estrutura do atual governo federal, número que era de 2,7 mil até 2018, de acordo com o Atlas do Estado Brasileiro. “É um fato que, à medida que cai a popularidade do presidente, ele leva junto a do exército”, avalia Ricardo Borges Martins, do Pacto pela Democracia. Hoje, metade do País (53%) reprova o trabalho de Bolsonaro, segundo o Datafolha. “No entanto, é preciso inserir nesta conta, novamente, a gestão da pandemia, que foi feita por muito tempo por um general da reserva”, completa, lembrando do trabalho de Eduardo Pazzuello à frente do Ministério da Saúde por nove meses, entre 2020 e 2021.

É uma visão parecida à do professor Paulo Nicolli Ramirez, da Fundação Escola de Sociologia e Política (Fesp) e da Casa do Saber: “Foi um preço que o exército pagou ao entrar no governo Bolsonaro, privilegiando cargos públicos e salários mais altos em troca de sua credibilidade.”

Apenas uma ínfima proporção de 0,6% da população relata ter passado a confiar mais nos militares durante a crise da covid-19. Já em meio àqueles que afirmaram ter diminuído a confiança neles, as variáveis que mais chamam atenção são as dos jovens (24,2% dos entrevistados entre 18 e 24 anos), das classes mais elevadas (19% das camadas A e B) e dos evangélicos (27,2%). Para Antônio Lavareda, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), houve um fenômeno curioso: à medida que o exército voltou a se politizar com Bolsonaro, instâncias locais se distanciaram da política em algum grau durante a crise causada pela pandemia do coronavírus. “A imagem das Forças Armadas se ligou muito à administração federal neste período. Enquanto isso, prefeituras e governos estaduais ficaram na seara da gestão da crise sanitária, que não tem uma imagem propriamente política.”

A queda na confiança da população no STF é mais complexa. Em primeiro lugar, porque ela não leva consigo, necessariamente, a credibilidade do Poder Judiciário como um todo. Em segundo, porque há certo consenso de que esta desidratação da corte perante a população é mais uma radiografia do momento, conturbado pelos conflitos institucionais, do que propriamente uma mudança de percepção do Brasil. Só 3,5% dos brasileiros confessam ter passado a confiar mais no tribunal. “O governo Bolsonaro é feito de criar inimigos diferentes o tempo todo. Agora é o STF. Esses novos inimigos que vão surgindo acabam recebendo, inevitavelmente, avaliações mais pessimistas por parte das pessoas quando são os alvos da vez”, explica Martins. De fato, aqueles que dizem apoiar o governo Bolsonaro são os que se mostram mais descrentes do trabalho do Supremo, representando uma em cada três pessoas que dizem ter perdido a confiança nas instituições como um todo.

“Isso aconteceu também porque muitos quadros políticos passaram a recorrer à corte quando não tiveram seus pleitos atendidos em outras instâncias”, defende Lavareda, lembrando uma crítica antiga de que o tribunal assumiu indiretamente, em muitos casos, a função de legislar. “Com isso, muitas decisões passaram a figurar como políticas.”

Nicolli Ramirez agrega ainda que a queda na confiança sobre o STF é reflexo, também, da polarização social do Brasil. “De um lado, a corte desagradou os apoiadores de Lula quando fez vistas grossas ao processo da Lava Jato, encabeçado por Sérgio Moro. Há uma ideia de que o Supremo demorou a agir; de outro, o governo Bolsonaro conseguiu convencer boa parte da população de que os impactos negativos da pandemia sobre a economia são culpa das decisões do tribunal – o que não é verdade.”

EMPRESAS E IMPRENSAS

Outra pesquisa recente, feita pela consultoria internacional Edelman, traz outra virada na percepção dos brasileiros sobre as suas instituições: melhorou significativamente a confiança em relação às empresas e ainda sobre os veículos da imprensa. No primeiro caso, 61% das pessoas ouvidas no estudo dizem acreditar nelas – a melhor proporção do ranking. Até 2019, usando os dados do Datafolha, apenas 22% dos brasileiros entregavam total credibilidade às organizações empresariais. “É resultado da falta de eficiência dos governos, que faz com que a iniciativa privada ocupe o lugar deles”, explica Ana Julião, gerente da Edelman.

O segundo caso é semelhante: em julho de 2019, o Datafolha mostrava que 21% da população confiavam totalmente nos meios de comunicação nacionais. Pelos dados da Edelman, são 48% atualmente. Para Lavareda, para além da luta inglória que a imprensa vem tendo contra as fake news, o número se explica pelo serviço que ela prestou nos momentos mais críticos da covid-19. “Os meios comunicativos se tornaram uma fonte regular de informações sobre a doença, os sintomas, as previsões de vacinas, etc. Isso melhorou a relação.” Já para Nicolli Ramirez, da Fesp, o dado esconde uma divisão maior entre as coberturas dos veículos e destas diferentes recepções. “Os canais de televisão, por exemplo, se diferenciaram mais claramente sobre a postura em relação ao governo. Assim, é possível que, dentro deste número, esteja um aumento da confiança de bolsonaristas em relação às redes de TV que o defendem, por exemplo, ou, do outro lado, da credibilidade que a oposição passou a dar aos meios que o criticam.”

“É um fato que, à medida que cai a popularidade do presidente, ele leva junto a do exército. No entanto, é preciso inserir nesta conta, novamente, a gestão da pandemia, que foi feita por muito tempo por um general da reserva.” Ricardo Borges Martins, coordenador do Instituto Pacto pela Democracia

RECONQUISTAR A CONFIANÇA

Em um contexto geral de indiferença com as instituições brasileiras (52% das pessoas nem aumentaram nem diminuíram a confiança nelas, segundo a IDEIA/Exame), o que fazer para que elas retomem ao menos parte dos créditos que já tiveram? As respostas variam mais, porque precisam dar conta de algumas complexidades do País. Uma delas foi captada pelo estudo, por exemplo: a divisão social fez com que caísse, simultaneamente, a confiança da população no governo federal e no STF. “É um combustível que alimenta um cenário de desconfiança generalizada tanto em uma instituição quanto em outra – de um lado, os bolsonaristas, e, de outro, os antibolsonaristas”, observa Maurício Moura. A solução, então, passaria pelo fim desta tensão entre polos.

Pelos dados, dentre os 27% que relatam que o STF perdeu credibilidade, 51,4% aprovam o trabalho do presidente da República, confrontando com a corte tanto em discursos como em atitudes institucionais, por exemplo.

Já Antônio Lavareda entende que esta retomada depende de uma melhor comunicação. “Enquanto as instituições não desenvolverem estratégias que esclareçam suas atuações, haverá muita desconfiança”, diz. Nicolli Ramírez adota uma postura mais contextual: a desconfiança das instituições é, para ele, na verdade, um ato contra quem as ocupa – o que não necessariamente expressa um mau funcionamento delas. Assim, o esforço de recuperar uma boa imagem depende, fundamentalmente, do tempo, quando novas gerações assumirem o protagonismo.

O economista Maurício Moura acredita em uma tendência de mudança para melhor. Ele antecipa que o Brasil caminha para uma nova onda de engajamento político massivo, como se deu em junho de 2013. “Estamos um passo atrás de Chile e Colômbia, países que entenderam o quanto suas constituições eram limitantes e saíram às ruas. No futuro próximo, a tendência é que isso se repita aqui.”

Vinícius Mendes Paula Seco
Vinícius Mendes Paula Seco