“Um dia afirmou sabiamente Perón que, tendo percorrido o país de um cabo ao outro, e tendo conhecido todas as suas belezas e maravilhas, ao fim, teve de se encontrar com a sua maior e mais alta beleza, o povo.” A frase, dita em 1952 pela ex-primeira-dama da Argentina Eva Perón, ilustra bem a doutrina política da qual o seu marido, o presidente Juan Domingo Perón, foi um dos representantes máximos no país vizinho: o populismo.
No Brasil, são considerados políticos populistas, cada um a seu modo e estilo, ex-presidentes como Getúlio Vargas, João Goulart, Jânio Quadros e, mais recentemente, os dois principais candidatos à presidência da República: o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e o atual, Jair Bolsonaro. Apesar do termo ser bastante difundido, muitas vezes de maneira equivocada, o populismo não possui uma definição concreta e pode variar de acordo com a época ou mesmo o país.
Para o cientista político Norberto Bobbio, não chega nem a ser uma doutrina, mas uma “síndrome”. “O populismo não conta efetivamente com uma elaboração teórica orgânica e sistemática. Muitas vezes, ele está mais latente do que teoricamente explícito”, define Bobbio em seu Dicionário de Política, em que também destaca outras características do populismo: o nacionalismo e a falta de clareza nas diretrizes programáticas. “O populismo é mais moralista do que programático. A sua ideologia é vaga e as tentativas de defini-la com exatidão provocam chacota e hostilidade”, diz Bobbio.
Em síntese, trata-se de uma linha política cuja principal fonte de inspiração e referência constante é o povo. O representante político fala diretamente às massas, sem intermediários, e se coloca como o seu benfeitor e responsável por resolver todos os problemas e atender aos seus anseios. Grande parte dos populistas são políticos com discursos e ações marcados pela divisão da sociedade em dois grandes grupos: o povo, fiel depositário de valores positivos ao qual o líder é o seu representante legítimo, e o não povo, onde se encontra o establishment, a elite cultural e econômica dominante, geralmente corrupta e egoísta aos olhos dos populistas. O populismo não é exclusivo de linhas ideológicas e tem representantes tanto na direita como na esquerda.
“Geralmente, são líderes políticos carismáticos que tentam se colocar como representantes legítimos e fiéis do povo e, portanto, contrários a todos aqueles que são o não povo”, explica o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Segundo ele, as origens do populismo remontam à Roma Antiga, com a instituição da “política do pão e circo”, e o conceito foi mudando ao longo da história e nos locais onde se instalou. No século 19, por exemplo, nos Estados Unidos, que, após a sua independência, marchava rumo ao oeste na conquista de território, e na Rússia czarista. No caso dos Estados Unidos, o populismo defendia o capitalismo agrário, acima de tudo. Na Rússia, extremava-se na negação do capitalismo que desaguou na Revolução Russa de 1917.
No Brasil, o populismo ganhou força a partir do crescimento das cidades e da transformação da antiga sociedade rural e de economia basicamente agrária em uma sociedade urbana e industrial, em que conviviam as elites detentoras do poder econômico e uma massa populacional, incluindo uma nascente classe média urbana, que buscava melhores condições de vida. A Revolução de 1930 levou ao poder um dos maiores ícones populistas brasileiros, o presidente Getúlio Vargas. O mesmo ocorreu em outros países da América Latina, como Argentina, com Juan Domingo Perón; México, com Lázaro Cárdenas; e Equador, com José Velasco Ibarra.
“Por ser um continente mais pobre, a América Latina tornou-se um território mais fértil para o populismo. É um discurso de fácil assimilação para uma população que geralmente clama por líderes salvadores da pátria”, diz a cientista política Deysi Cioccari. Além da comunicação fácil com as grandes massas, ela destaca outra característica do discurso populista: trabalhar o medo nas pessoas. “É o discurso do bem e do mal, que funciona muito nas classes mais ricas ou mais pobres da população. No caso das ricas, é o medo do comunismo, por exemplo”, cita.
Outra característica dos políticos populistas, acrescenta ela, é a formação de grupos de apoio incondicional entre a população, independentemente da linha ideológica de esquerda ou de direita. São características comuns entre Lula e Bolsonaro. “Além de eleitores, ambos têm seguidores muito fiéis e que formam bases muito sólidas para eles”, afirma Deysi. O mesmo ocorre com o movimento peronista, na Argentina, na figura de Juan e Eva Perón, que sobreviveu mesmo após a morte de ambos e hoje tem como maior representante a vice-presidente argentina Cristina Kirchner.
“Claro que não podemos dizer que Lula e Bolsonaro são iguais. Mas os dois têm características populistas em maior ou menor grau”, avalia Prando. Ele considera Getúlio Vargas, que era chamado de ‘pai dos pobres’, o maior ícone do populismo brasileiro. “É a principal referência do populismo no Brasil. Vargas representa o populismo clássico, à medida que ele tenta incorporar o amplo apoio das massas urbanas que se formaram no País a partir da década de 30”, contextualiza.
Se Lula e Bolsonaro conseguem seduzir as massas com seus discursos em âmbito nacional, outros políticos também considerados populistas possuem uma atuação mais restrita, como Leonel Brizola, Adhemar de Barros e Paulo Maluf, todos eles muito identificados com os seus Estados de origem. “Apesar do discurso populista, Maluf não conseguiu atingir a dimensão simbólica de um Getúlio Vargas”, destaca Prando, que elenca outro populista singular: Jânio Quadros.
No caso do ex-presidente, que renunciou meses após assumir o mandato, em 1961, o professor do Mackenzie considera que o político paulista de carreira meteórica – saltou de vereador paulistano a presidente da República em pouco mais de dez anos – soube trabalhar com os símbolos populares, como o terno desalinhado e as migalhas de pão que imitavam caspas de cabelo durante os seus comícios, além do discurso implacável contra a corrupção: “Jânio dominou esses elementos simbólicos que transmitiam uma simplicidade no estilo de vida. É muito o que Bolsonaro faz ao aparecer vestido com camisas de clubes de futebol e ao se deixar fotografar em uma mesa de café da manhã muito simples.”
Na percepção de Rodrigo Prando, apesar de ser uma herança do século 20, o populismo ainda está muito presente na política brasileira, e a mudança depende basicamente do eleitorado e do desenvolvimento da cidadania. “A população precisa, em primeiro lugar, saber o que ela quer. Como a sociedade brasileira ainda é muito ligada em autoridades messiânicas, esse tipo de política tem muito apelo. A superação depende de mais consciência crítica e maior engajamento dos eleitores na escolha dos seus representantes”, conclui o cientista político.