Vacina tributária

19 de agosto de 2020

Está em curso no Congresso Nacional a tão esperada Reforma Tributária. Os três textos em análise surgem para tentar reparar a distopia do sistema nacional de arrecadação de impostos, porém, a crise econômica provocada pela pandemia do coronavírus revela um novo dilema: como as empresas se adaptarão ao novo sistema tributário, ao mesmo tempo que lutam para sobreviver?

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União, Estados e municípios editaram, desde a concepção da Constituição Federal de 1988, em torno de 774 mil novas normas tributárias por dia útil, somando mais de 5,8 milhões de normas elaboradas, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). Esse emaranhado de normas resultou nos 63 impostos cobrados (muitos com alíquotas diferentes entre Estados e municípios), assim como em 97 obrigações acessórias – conjunto de documentos, declarações e registros utilizados para o cálculo de tributos. Todos devem ser enviados ao Fisco em prazos preestabelecidos, sob pena de multa. Tal complexidade obriga as empresas a despender investimentos crescentes em mão de obra, além de áreas destinadas exclusivamente para compreender, apurar,pagar impostos, entregar obrigações acessórias e acompanhar fiscalizações.

Soma-se a isso a elevada carga tributária nacional, avaliada em mais de 36% do Produto Interno Bruto (PIB), a segunda maior do mundo, atrás apenas de Cuba (42,3%) no ranking dos países onde se pagam mais impostos, de acordo com o levantamento mais recente (2018) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), incluindo países da América Latina e do Caribe.

A grande vilã da voracidade da arrecadação de impostos no Brasil é a inchada estrutura do Estado, que obriga os brasileiros a pagar cada vez mais para manter o seu funcionamento. Segundo dados do Instituto Millenium, em 2019, os gastos com salários dos servidores públicos representaram 13,7% do PIB brasileiro.

Diante desse caos, o Congresso se debruça para discutir uma ampla Reforma Tributária, a fim de corrigir as distorções do atual sistema. Entretanto, tal ideal pode ser comprometido pelo delicado momento econômico que o País atravessa, em meio à maior pandemia da história da humanidade. Com o estado de calamidade pública decretado pelo governo federal em março deste ano, que se estende até dezembro, até o momento, cerca de R$ 700 bilhões já foram destinados ao combate da pandemia.

Segundo o jurista Ives Gandra Martins, presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), não se deve discutir Reforma Tributária sem antes realizar uma Reforma Administrativa que diminua os gastos públicos. “O governo atuou rapidamente com o socorro às pessoas mais vulneráveis. Mas tendo menos receita e maiores gastos sociais, qualquer reforma se torna inconsistente neste momento”, apontou Martins, na última reunião do conselho, em 12 de agosto.

De acordo com Adilson Dallari, professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a lógica do debate entre as reformas Tributária e Administrativa é uma questão matemática. “Estamos falando de despesa e receita. Não é possível diminuir a receita sem, antes, cortar os excessos. Mudar a Constituição Federal é muito mais difícil e precisa vencer lobbys poderosos no Congresso, como o do servidor público”, afirma Dallari, ao apontar que o primeiro passo para reorganizar as contas públicas é a Reforma Administrativa.

“Neste momento, a simplificação é o caminho para diminuir a burocracia. Caso contrário, teremos um novo sistema, com toda a complexidade de operar dois sistemas simultâneos, como prevê a PEC 45; aumento da carga tributária, como vemos na PEC 110; e elevação brutal da carga tributária, com a proposta do governo.” Ives Gandra Martins, jurista e presidente do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP

Remédio contra o caos

Para desatar os nós do sistema nacional, três propostas de Reforma Tributária estão no Congresso. Na Câmara, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, de autoria do deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP), propõe unificar cinco tributos sobre o consumo (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) em um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cobrado de forma não cumulativa e no destino final (onde efetivamente os produtos são consumidos). No Senado, a PEC 110/19, assinada pelo presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e outros 66 senadores, pretende substituir nove impostos (IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, salário-educação, ICMS e ISS) e criar um IBS, assim como o texto discutido na Câmara. No fim de julho, o governo entrou no debate tributário, enviando a primeira parte, de quatro no total, da sua proposta da reforma (Projeto de Lei 3.887/2020), que sugere a unificação dos tributos federais PIS e Cofins em uma Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS).

Segundo o jurista Kiyoshi Harada, a proposta do governo já nasceu falha ao propor alíquotas diferentes entre os setores – 12% para indústria, comércio, setor de serviços, entre outros e 5,8% ao setor bancário. “Árvore que nasce torta não tem conserto. O que o setor bancário tem de diferente dos escritórios de advocacia, por exemplo?”, questiona. Ainda de acordo com Harada, a melhor medida seria a simplificação do sistema. “Não existe regime tributário bom ou ruim para o contribuinte, existe regime simples, de fácil compreensão de todas as suas regras.”

O aumento substancial da carga tributária sobre as empresas de lucro presumido – que, hoje, pagam 3,65% de PIS e Cofins (e passariam a pagar 12% caso o PL seja aprovado como está – e do setor de serviços também preocupa empresários e juristas, pois, neste momento de retomada econômica, impor ainda mais dificuldades às empresas pode custar o crescimento no curto e no médio prazos. “As empresas no lucro presumido serão muito prejudicadas. O que pode haver é uma migração e eternização das empresas no regime do Simples Nacional, impossibilitando o seu crescimento natural”, apontou o advogado tributarista Hamilton Dias de Souza.

“Existe regime tributário bom ou ruim para o contribuinte, existe regime simples, de fácil compreensão de todas as suas regras.” Kiyoshi Harada, jurista

Gandra Martins compartilha do entendimento de Harada e acredita que o atual cenário econômico reforça a necessidade da simplificação tributária, sem onerar ainda mais as empresas. “Neste momento, a simplificação é o caminho para diminuir a burocracia. Caso contrário, teremos um novo sistema, mas com toda a complexidade de operar dois sistemas simultâneos, como prevê a PEC 45; aumento da carga tributária, como vemos na PEC 110; e elevação brutal da carga tributária, com a proposta do governo”, aponta Martins.

Nesse sentido, a FecomercioSP sugere simplificar o ambiente tributário nacional por meio de mudanças infraconstitucionais, ou seja, por meio de leis complementar e ordinária, dispensando alteração constitucional que exija quórum qualificado, o que dificulta a tramitação e a aprovação no Congresso. A Entidade propõe 11 anteprojetos, formulados por Ives Gandra Martins e pelo ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel.

Alguns dos principais pleitos são: compensação universal de tributos, equivalência entre os encargos aplicáveis às restituições e aos ressarcimentos; imputação de responsabilidade tributária; critérios para retenção em malha; prazo máximo para solução de consultas; unificação cadastral; e limite para a instituição de obrigações acessórias. A Entidade também propõe uma PEC para vedar o uso de medidas provisórias em matéria tributária e a instituição do princípio da anterioridade plena, o que inibiria a criação de novos impostos.

É preciso analisar, segundo Martins, como a economia brasileira vai se comportar nesta fase de recuperação da crise para que o Poder Público possa orquestrar as reformas Administrativa e Tributária. “Vamos esperar para ver como será a reação da economia, das empresas e as ações do governo para impulsionar o mercado. E no debate sobre Reforma Tributária, deve-se trabalhar paralelamente a Reforma Administrativa, para diminuir o tamanho do Estado brasileiro e desafogar a carga tributária”, concluiu.

Filipe Lopes Paula Seco
Filipe Lopes Paula Seco