“Brasil: paraíso restaurável”

19 de outubro de 2020

A natureza preservada desponta, já há alguns anos, como um valor cada vez mais apreciado e financiado tanto pelo mercado como pelas instituições internacionais, sendo que o Brasil tem condições naturais para se destacar nessa nova geografia econômica.

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Jorge Caldeira é o que podemos chamar de “patrimônio brasileiro”. Pouco mais de dois anos depois de História da riqueza no Brasil, o autor se lança numa parceria intergeracional com a economista Julia Marisa Sekula e a jornalista Luana Schabib em Brasil: paraíso restaurável, recém-lançado pela Estação Brasil.

Do encontro, nasce uma colaboração inspiradora que combina intelectualidade, economia de forma didática e uma linguagem nada acadêmica, com um choque de realidade logo no início: novos tempos exigem novos conceitos. O nosso exige um renovado modelo mental em substituição ao pensamento econômico tradicional, que coloca homem e natureza em posições antagônicas, reservando exclusivamente ao primeiro a produção de valor.

Engana-se quem pensa estar diante de um livro teórico. Recheado de mapas, poesias, gravuras e referências à literatura, sociologia, antropologia, religião, filosofia e economia, somos conduzidos por um passeio pouco óbvio por séculos de história e por exemplos da evolução da consciência ambiental da humanidade. O caminho nos leva à constatação de que o Novo Mundo, assim como também o Brasil, foram assentados em valores ocidentais, que gradativamente deslocaram o lugar da religião e do misticismo originários dos povos tradicionais – embutidos na ideia de Paraíso e na ligação indissociável entre humano e natureza –, para dar espaço a lutas políticas dos colonizadores, fazendo do acúmulo material a base deste sistema, rompendo a ligação do homem com os mundos espiritual e natural e tornando a ideia de Paraíso associada ao trabalho.

Tal forma de conceber o mundo, que fez morada nos séculos 18, 19 e 20, atribuindo ao trabalho contínuo a fonte da felicidade, foi também a responsável por colocar o planeta numa trajetória de aquecimento, justamente por estar assentada, de forma intensiva, na queima de combustíveis fósseis. Se a responsabilidade por um mundo que aquece é comum, é também diferenciada, e temos experimentado uma evolução no entendimento da necessária reconciliação entre economia e natureza. Alemanha, China e Estados Unidos são alguns dos principais responsáveis pelo enrosco do clima atual, ao mesmo tempo que também formam o conjunto de países à frente da possibilidade de transição energética.

“Para os menos otimistas, que poderiam atribuir à recessão econômica provocada pelo covid-19 o ‘embaralhamento do xadrez’ da competitividade das diferentes fontes de energia, os autores afirmam que a transição de uma economia carbono intensiva para uma de baixo carbono é tendência que veio para ficar.”

No Brasil, a ausência de combustíveis fósseis no território atribuiu à natureza a fonte de nossos problemas e, não por acaso, deu origem a um desenvolvimento econômico baseado em sua destruição, em especial com a queima das florestas nativas. Nosso imenso potencial atual, advindo das energias de biomassa, eólica e solar – que podem ser as fontes dominantes do mercado já nesta década –, depende de um rompimento da nossa destruidora trajetória de dependência, combinando controle do desmatamento, adoção de metas ambientais e produção de energia renovável como nortes de nosso planejamento estratégico, além de uma revisão do papel estatal. 

Para os menos otimistas, que poderiam atribuir à recessão econômica provocada pelo covid-19 o “embaralhamento do xadrez” da competitividade das diferentes fontes de energia, os autores afirmam que a transição de uma economia carbono intensiva para uma de baixo carbono é tendência que veio para ficar.

A crise de 2020, que produziu perdedores aos montes, também deu origem a ganhadores, tendo os fundos ESG – Environmental, Social and Governance (em português: Ambiental, Social e de Governança) – apresentado desempenho superior ao índice médio dos mercados globais, ganhando novo impulso. Neste aspecto, adquirem importância singular, além dos agentes políticos, o mercado privado e as instituições financeiras, responsáveis por darem mais velocidade às mudanças.

O livro chega em momento curioso: joga luz sobre o desequilíbrio entre homem e natureza exatamente quando uma nova pandemia, produto desse desequilíbrio, derruba a economia mundial de maneira que nenhum evento natural fez desde o século 16. Ao tratar dos ventos que dão lugar aos novos tempos, é impossível não notar que chega, também, quando recrudesce uma visão que nega a ciência e a existência de instâncias de cooperação capazes de dar solução a problemas globais para além dos Estados nacionais.

Saiba mais em: “Brasil: Paraíso restaurável” – Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib, editora Sextante

Em pleno ano de eleição, a obra é um chamado para a ação das lideranças políticas brasileiras, bem como sobre o papel e a responsabilidade que elas têm na transição para uma nova economia. É sobre gestão, políticas públicas e, principalmente, sobre ambição. Só será possível que a natureza funcione como produtora de valor se os tomadores de decisão assim a encararem. 

Desta que vos escreve, a imensa alegria de resenhar um livro como este. A direção-executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS) me deu a oportunidade de conviver de perto com Jorge Caldeira, conselheiro da entidade. Para alguém à frente de uma organização como a RAPS, que nasceu com a convicção de que as escolhas que podem nos levar a um mundo mais sustentável são essencialmente escolhas políticas, com a missão de preparar os políticos para a agenda do século 21 – a da sustentabilidade –, o livro é um presente. 

Guimarães Rosa dizia que “o sertão é dentro da gente”. Que Brasil: paraíso restaurável sirva como inspiração a gestores e legisladores, tanto os atuais como os futuros, para a necessidade de sairmos de “dentro da gente” – do cotidiano exaustivo da tomada de decisão –, olhando para uma utopia que junte homem e natureza. Novos tempos exigem novos mapas, um resgate de antigos valores, além da capacidade de alguns de levar, a todos, adiante.

*Mônica Sodré é cientista política e diretora-executiva da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps)
Conteúdo publicado na ed. #460 da revista PB. Clique aqui.

Mônica Sodré Paula Seco
Mônica Sodré Paula Seco