Algum tempo após assumir a Presidência da República, em 1995, Fernando Henrique Cardoso (FHC) encontrou uma antiga amizade: a atriz e produtora teatral Ruth Escobar. Ao se aproximar, ela expressou sua hesitação em saber como se dirigir ao amigo que agora ocupava o Palácio do Planalto. “Chame-me de alteza”, respondeu o recém-eleito, com o seu senso de humor característico. Essa troca de palavras revelou não apenas o humor do político, mas também a sua personalidade marcante. FHC nunca disfarçou a falsa modéstia — inclusive, em uma conversa durante o seu mandato presidencial, chegou a comentar que se considerava mais inteligente do que vaidoso.
Fernando Henrique Cardoso é apenas um dos oito presidentes brasileiros pós-ditadura retratados pela renomada jornalista Cristiana Lôbo no seu recém-lançado livro O que vi dos presidentes — fatos e versões (Editora Planeta, 352 páginas, R$ 84,90). Publicado após o falecimento da autora, em 2021, o livro foi finalizado por sua amiga e colega de profissão Diana Fernandes. Com uma carreira de mais de 40 anos cobrindo política em Brasília para diversos veículos de imprensa, Cristiana transformou o seu trabalho em uma janela privilegiada para os bastidores do poder na capital federal.
“Ela saboreava cada notícia; mais do que isso, saboreava dar a notícia”, testemunha Murilo Lôbo, marido de Cristiana. Esse amor pelo jornalismo a levou a compartilhar suas memórias, registros e anotações com os seus leitores e o público em geral, resultando em um livro que destaca a personalidade de cada um dos oito presidentes pós-ditadura.
O primeiro desses presidentes foi José Sarney, que assumiu o mandato por circunstâncias extraordinárias, uma vez que era o vice-presidente de Tancredo Neves, eleito em 1985, mas falecido antes de tomar posse. “Sarney foi um presidente fraco, conforme ele mesmo escreveu em seus diários, mas o oportunismo político, presente em sua longa trajetória, sempre lhe assegurou o poder”, descreve a autora. Apesar da afabilidade e da cortesia no trato com as pessoas, Sarney era atormentado por uma crônica depressão, o que o fez entrar em pânico com a morte de Tancredo e hesitar em assumir o cargo até momentos antes da posse.
Considerado traidor pelos antigos companheiros da Arena (partido de sustentação política do regime militar) e intruso pelos membros do PMDB (atual MDB), incluindo o “cacique” Ulysses Guimarães, o acadêmico maranhense e autor de Os Marimbondos de fogo (Artenova, 1978) desabafou na reta final do seu mandato, em 1989, alegando que não teve um dia de sossego sequer durante a passagem pelo Palácio do Planalto: “O PMDB nunca me perdoou por eu ter chegado à Presidência da República”. Sarney deixou o poder com uma inflação superior a 80% ao mês, denúncias de corrupção no governo — como o escândalo nos contratos para a construção da ferrovia Norte–Sul — e adversários por todos os lados. No entanto, conseguiu concluir pacificamente o processo de redemocratização política.
Se José Sarney era inseguro no cargo, o seu sucessor, Fernando Collor de Mello, era o oposto, conforme relata a jornalista. Collor, que foi o primeiro presidente eleito de forma direta em três décadas, se destacou por sua vaidade, obstinação, autoconfiança, egocentrismo e desprezo pelos políticos, dos quais desejava manter distância e aos quais não se sentia obrigado a atender, especialmente os do Legislativo.
O ex-governador de Alagoas, conhecido como “caçador de marajás”, acreditava tanto no poder conquistado nas urnas, em 1989, que autorizou, logo no primeiro ano de governo, um plano econômico que confiscou a caderneta de poupança dos brasileiros em uma fracassada tentativa de conter a hiperinflação, que superava os 1.000% ao ano.
Ao ser alertado na época, pelo então deputado federal Ricardo Fiúza, sobre o risco do isolamento político, Collor respondeu de forma característica: “Eu me isolo, sim, principalmente dos chatos”. Em uma palestra no Rio de Janeiro, chegou a classificar a classe política como uma “pocilga” e não poupou palavrões quando provocado sobre os colegas de profissão. Esse era o estilo Collor.
No entanto, essa segurança custou caro. Após enfrentar um escândalo público relacionado à corrupção envolvendo o seu assessor, Paulo César Farias (o famoso PC Farias), um Collor acuado e isolado renunciou em 1992, evitando a cassação iminente no Congresso Nacional. Um triste fim de um presidente que, em seus melhores momentos, demonstrava uma determinação inabalável.
O livro faz uma interessante comparação entre Collor e Jair Bolsonaro, dois presidentes que compartilham um estilo personalista e discursos de direita (ou de extrema direita), além de conservadorismo nos costumes e preceitos liberais na economia. “Ambos chegaram à Presidência da República fincados nessa ideologia e com promessas de combater o que chamavam de ‘a velha política’ e a corrupção. A prática derrubou o discurso em dois tempos — nos dois casos, em um intervalo de três décadas”, diz um dos trechos.
Após a renúncia, Collor foi substituído pelo vice, Itamar Franco, que deixou um legado importante. Ele é lembrado por solicitar a recriação do Fusca, pelo escândalo no sambódromo do Rio de Janeiro e, principalmente, pelo Plano Real, que, enfim, estabilizou a economia brasileira após décadas de turbulências. Isso o credenciou a passar o bastão presidencial para Fernando Henrique Cardoso, o então ministro da Fazenda responsável pela implementação da nova moeda.
O governo tucano (símbolo do PSDB, partido do presidente) aproveitou o período de estabilidade econômica proporcionado pelo Plano Real. O Comunidade Solidária, liderado pela esposa do então presidente, Ruth Cardoso, estabeleceu as bases para futuros programas de combate à pobreza. FHC era conhecido pela sua eficácia nas reuniões de trabalho e pela capacidade de encerrar conversas improdutivas. Certa vez, em um encontro com governadores, foi indagado por Mão Santa, do Piauí: “Muito boa a reunião, mas posso lhe fazer um pedido? Queria conhecer a cama onde dormem os presidentes”. “Imediatamente”, respondeu o presidente ao governador, encerrando o evento monótono. A tal cama, que ficava em um anexo do gabinete presidencial, seria uma herança dos governos militares que, misteriosamente, ninguém soube direito por que foi levado para o local — provavelmente para servir a um descanso durante o expediente.
Após oito anos de FHC, a faixa foi passada a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que chegou à Presidência da República em 2002, após três tentativas em eleições anteriores. Era o primeiro governo daquele que seria considerado um dos mais populares da História do Brasil — com índices de aprovação superiores a 80% —, mas que também se viu envolvido em denúncias graves de corrupção, como a compra de votos de parlamentares para aprovação de medidas de interesse no Congresso Nacional, caso que ficou conhecido como “mensalão”. O escândalo, que desestabilizou o Palácio do Planalto, provocou a derrubada de homens fortes de Lula em um verdadeiro efeito dominó, como os ex-ministros José Dirceu e Antonio Pallocci.
“Nessa primeira grande crise, foi ressaltado um aspecto do comportamento de Lula: o instinto de sobrevivência falando mais alto. De cara, o distanciamento e, depois, a demissão de companheiros para preservar a figura do presidente e de seu governo”, registra o livro. A estratégia deu certo, e Lula não só conseguiu se reeleger como elegeu a sua sucessora quatro anos depois, Dilma Rousseff — que acabou por repetir os erros de Collor ao subestimar o contato e o poder dos políticos, em especial o vice-presidente, Michel Temer, e os congressistas.
Dos políticos aos funcionários, a fama de grosseira, seca e impaciente de Dilma corria por Brasília. Conforme relata Cristiana, um ministro chegou a resumir a presidente assim: “Dilma gosta que as pessoas sintam medo dela”. Apesar de ter sido reeleita, o seu governo acabou enfrentando, em 2016, o processo de impeachment, em razão de irregularidades fiscais (as famosas “pedaladas”) e uma série de desafios políticos, econômicos e de popularidade. Assim, como resumiria a própria, Dilma caiu “pelo conjunto da obra”.
O Partido dos Trabalhadores (PT), que já sofria desgastes sucessivos por causa das denúncias dos seus governos, chegou ao fundo do poço após a queda de Dilma, reerguendo-se somente com a volta de Lula, eleito em 2022, para um terceiro mandato, após vencer Jair Bolsonaro, que apostava em uma reeleição. No livro, as histórias de Temer e Bolsonaro foram integralmente escritas por Diana, que também atualizou os textos que já estavam produzidos após assumir a empreitada de concluir a obra deixada pela amiga.
O que vi dos presidentes — fatos e versões não apenas captura as personalidades dos líderes políticos, como também examina a forma que suas ações afetaram o País. Embora não se pretenda ser um livro de história do Brasil, a riqueza de informações e dados o torna uma valiosa referência para estudiosos e jovens interessados em compreender um período crucial da história nacional. “A minha preocupação primeira era a de ser o mais fiel possível ao estilo da Cris e ao propósito dela de mostrar, com algumas histórias, os efeitos da personalidade dos presidentes em suas gestões”, explica Diana. E ainda destaca: “No livro, vejo uma grande contribuição para as novas gerações por compilar tudo de importante que aconteceu no País em quase 40 anos”.