A falta de acesso a absorventes, roupas íntimas e condições básicas de saneamento escancara a pobreza menstrual no País. Ao sancionar o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, Bolsonaro vetou artigo que previa distribuição gratuita de absorventes.
O desamparo a cerca de 1,5 milhão de brasileiras que vivem em residências sem banheiro e acesso à distribuição de água aprofunda ainda mais o seu estado de vulnerabilidade socioeconômica, em razão da ausência de políticas públicas. Os dados são do Livre Para Menstruar, estudo inédito sobre pobreza menstrual e educação de meninas no País, realizado pelo movimento Girl Up Brasil. Além disso, o número de meninas em idade escolar que menstruam é de 7,5 milhões, segundo o levantamento, das quais 213 mil não têm acesso a banheiro em condições de uso na escola. Destas, 65% são negras.
O debate sobre as consequências do que se caracteriza a chamada “pobreza menstrual” ganhou novos contornos na última semana. Isso porque o presidente Jair Bolsonaro vetou a distribuição gratuita de absorventes para pessoas de baixa renda. A medida proposta no Projeto de Lei (PL) 4.968/2019, aprovado pela Câmara e pelo Senado, atenderia principalmente estudantes matriculadas na rede pública de ensino, mulheres em situação de rua ou de vulnerabilidade social extrema, presidiárias e adolescentes internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa. Como justificativa, Bolsonaro disse que poderia cometer crime de responsabilidade caso sancionasse um projeto sem a indicação da verba para custeá-lo.
Segundo nota divulgada pela Secretaria-Geral da Presidência da República, isso afrontaria a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 e a Lei Complementar 173, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Ainda de acordo com a nota, Bolsonaro levou em consideração “manifestações técnicas dos ministérios competentes”. No texto original do projeto, as fontes de custeio eram as dotações disponibilizadas anualmente pela União ao funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
A falta de oferta para que as crianças e os adolescentes que menstruam tenham escola de qualidade, moradia digna e saúde (incluindo sexual e reprodutiva), assim como o direito à água, ao saneamento e à higiene, já é uma problemática diagnosticada em trabalhos como o relatório Pobreza Menstrual no Brasil – Desigualdades e Violações de Direitos, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), publico em maio de 2021. “É preciso fazer as autoridades e a opinião pública entenderem que pobreza menstrual não é um problema privado, de apenas uma parcela da população. Esta situação afeta diretamente as produtividades escolar e profissional das pessoas que menstruam. Estima-se que meninas em situação de vulnerabilidade socioeconômica perdem até um mês e meio de aula por ano quando estão menstruadas. Isso por falta de acesso a absorventes, por exemplo”, observa a diretora-executiva do movimento Girl Up Brasil, Letícia Bahia.
Após aprovação, em agosto, pela Câmara Federal e, em setembro, pelo Senado Federal, o PL 4.968/2019, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT/PE), estima beneficiar 5,6 milhões de mulheres no Brasil. Ao sancionar a lei, Bolsonaro criou o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, destituindo o artigo 1º e outros trechos que previam a inclusão dos itens nas cestas básicas distribuídas pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Até 30 dias, a contar da data da publicação, o Congresso pode manter ou derrubar o veto do presidente.
Independentemente do texto final, o programa será implementado de forma integrada em todos os Estados, com ações nas áreas de Saúde, Assistência Social, Educação e Segurança Pública. Estão previstas campanhas informativas e de conscientização da população sobre a importância da saúde menstrual.
Caso o veto seja mantido, o programa não atingirá plenamente o objetivo de reduzir a faltade acesso a milhares de brasileiras, obrigando-as a terem que recorrer a produtos inadequados, que trazem riscos e prejuízos à saúde. “Jornal, pedaços de pano ou até folhas de árvores são usados de forma improvisada no lugar de um absorvente para conter a menstruação. Garantir o acesso a produtos de higiene menstrual é dar segurança e cuidar da saúde de nossas meninas e mulheres. Trata-se de garantir a dignidade de milhares de brasileiras”, comenta a deputada Marília Arraes, em entrevista ao site da Câmara.
A pobreza menstrual vai além da dificuldade de acesso a itens de higiene no período menstrual (absorventes e roupa íntima, para poder utilizar o produto). Há também outros fatores, como falta de água encanada e de banheiros com condições adequadas de higiene. A ginecologista e obstetra Larissa Cassiano, mestranda do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, ressalta que este cenário afeta a saúde ginecológica, podendo causar até infertilidade. “Há também um impacto na saúde mental destas pessoas em decorrência do não acesso a esses itens todos os meses, bem como por elas não saberem lidar com a situação”, afirma.
A especialista lamenta que a menstruação ainda seja um tabu. Segundo ela, muitos veem como algo sujo, impuro, como se fosse uma limpeza do organismo. “A menstruação não é uma doença, nem uma alteração. Pelo contrário, a menstruação regular é um sinal de boa saúde”, ressalta Larissa.
A primeira menstruação (menarca) costuma acontecer na faixa dos 12 aos 16 anos. Nos dois primeiros anos, explica a ginecologista, é comum que o ciclo seja irregular, não havendo necessidade de tratamento. Passados os dois anos da menarca, se esse ciclo se mantém ou se torna irregular, é importante investigar. Os principais sinais são a síndrome do ovário policístico, a obstrução uterina e as cólicas mais intensas.
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo lançou, em junho, o programa Dignidade Íntima, que garante o uso dos recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE-SP), estabelecido pela Lei 17.149, de 13 de setembro de 2019, para compra e distribuição gratuita de absorventes a estudantes da rede estadual. O investimento anunciado é de R$ 30 milhões.
De acordo com o secretário da Educação, Rossieli Soares, as principais diretrizes são o acolhimento e a não exposição das estudantes. “Para isso, todos os profissionais estão sendo formados para entregar um item de higiene menstrual a uma aluna, caso ela necessite. A demanda deverá vir das próprias estudantes, podendo solicitar o item para qualquer profissional, e este deve buscar o produto e entregá-lo. Assim, garante-se que a estudante possa escolher o profissional com que se sente mais confortável para falar sobre o assunto”, ressalta Soares.
“Temos também exemplos de cidades e Estados liderando iniciativas muito bacanas, como Ceará e Distrito Federal, além do município de Recife”, conta Letícia, do Girl Up.
O veto do presidente Bolsonaro tem um precedente em âmbito estadual. Em julho, o governador do Mato Grosso (MT), Mauro Mendes (DEM), também vetou projeto que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para meninas de baixa renda nas escolas públicas do Estado. A alegação foi a falta de recursos para instituir o programa.
“Mais um exemplo da falta de conscientização. Combater a pobreza menstrual significa investir em saúde pública”, opina Letícia Bahia. Larissa Cassiano sugere que o absorvente seja visto como um item de higiene, não apenas cosmético. Com isso, acredita a ginecologista, será possível reduzir os impostos sobre esses produtos, refletindo em mais acesso a pessoas que, hoje, tenham dificuldades para comprar absorvente e outros itens importantes a pessoas em ciclo menstrual.
Outro projeto que tramitava era o PL 1.999/21, da deputada Tabata Amaral (PDT/SP) e outros parlamentares, que inclui dispositivo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para considerar como despesa com manutenção e desenvolvimento do ensino a compra de absorventes higiênicos e outros produtos de limpeza e segurança sanitária, como álcool líquido ou em gel, sabão e papel higiênico. Em 26 de agosto, o PL, conforme informativo da Câmara dos Deputados, foi declarado arquivado, sendo substituído pelo PL 4.968/2019.