A distribuição desigual de oftalmologistas afeta boa parte do Brasil. Nesta reportagem, publicada na edição #443 da revista PB, o jornalista Filipe Lopes mostra que, em áreas remotas, a assistência só acontece graças à solidariedade. O conteúdo da PB está disponível nas melhores bancas digitais. Acesse.
O acesso a um simples par de óculos ou a uma cirurgia oftalmológica pode ser a solução dos problemas de centenas de milhares de brasileiros que têm a visão comprometida e carecem de assistência ocular. Enxergar é requisito fundamental para uma pessoa exercer plenamente responsabilidades básicas como trabalhar, estudar e se relacionar com a sociedade. No entanto, a distribuição desigual de médicos em todo o território nacional, a ineficiência do Sistema Único de Saúde (SUS), a burocracia pública para acesso a equipamentos e tecnologia de ponta inviabilizam o atendimento a quem precisa.
Um Brasil contraditório. É o que mostra o Censo Oftalmológico 2014, realizado pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) – levantamento mais atual do setor. Segundo recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), um país desenvolvido deve ter um oftalmologista para cada 17 mil habitantes. Temos um profissional para cada 11.604 habitantes, ou seja, superamos a média ideal traçada pela OMS, porém, dos 17.325 profissionais brasileiros, 12.325 (71%) deles atuam nas regiões Sul e Sudeste. No Norte, há apenas 557 profissionais, ou seja, um oftalmologista para cada 30.491 habitantes. Todos os Estados da região – Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins – registram carência significativa de especialistas.
Segundo o oftalmologista, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e fundador da Fundação Piedade Cohen (Fundapi) em Manaus, Jacob Moysés Cohen, atribuir todo o ônus da saúde pública ao Estado, como determina a Constituição de 1988, além de ser muito caro, torna o sistema ineficiente e precário. “Recentemente, foi criado o Sistema Nacional de Regulação (Sisreg), para regular a entrada de pacientes no SUS. Quanta hipocrisia. Na realidade, o sistema tem capacidade para atender a apenas 28% da população brasileira. Como resultado, a média de espera para uma consulta é três meses, dependendo da complexidade, até um ano. Exames e cirurgias também chegam a demorar dois anos”, critica. Para Cohen, parcerias entre o Estado, as universidades, as empresas e os profissionais da saúde seriam eficientes e preencheriam essa lacuna, apesar das dificuldades de entrelace entre os atores envolvidos.
Todo indivíduo acima dos 40 anos precisa de óculos para melhorar a visão de curta distância, e acima de 50 anos necessita de operações visuais importantes para ter uma vida plena, explica o professor do departamento de Oftalmologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) e diretor-presidente do Instituto Paulista de Estudos e Pesquisas em Oftalmologia (Ipepo), Rubens Belfort Júnior. Ele lembra que a cegueira ou os problemas de visão já foram confundidos com distúrbios mentais num passado recente. “Isso foi parte do motivo do fracasso do Mobral [programa de alfabetização executado durante o regime militar] ainda nas décadas de 1960 e 1970. Atribuía-se a baixa absorção do ensino à capacidade intelectual dos alunos, mas, na verdade, era por mera falta de óculos”, conta.
Pacientes em frente à unidade de Saúde na região do Baixo Amazonas, onde cerca de 15 mil cirurgias de catarata já foram realizadas pela ação voluntária.
Enquanto o atendimento demora a chegar, iniciativas têm ocorrido para levar visão de volta a quem precisa. Desde o início da década de 1990, uma parceria entre Ipepo, Fundação Champalimaud, Unifesp e Fundapi deu origem aos Projetos Amazônicos. Eles promovem expedições com mutirões de cirurgias de catarata e outros procedimentos oculares à região do Baixo Amazonas (Urucará, Parintins, Barreirinha, Urucurituba, Nhamundá, Boa Vista de Ramos e Maués).
Duas vezes por ano, em média, uma equipe de médicos voluntários parte de São Paulo à região de Manaus (AM), onde, em parceria com os governos locais e as instituições filantrópicas, acessa as regiões mais remotas do Amazonas. Os equipamentos necessários são adquiridos com empresas parceiras e por meio de doações e seguem de barco pelo Rio Amazonas para os hospitais públicos das cidades atendidas. Desde o início do projeto, foram realizadas em torno de 15 mil cirurgias de catarata.
A região interiorana amazônica, onde moram cerca de 2 milhões de habitantes para uma média de quatro oftalmologistas fixos, é uma das mais carentes do País no atendimento oftalmológico. “Lá, o tempo de espera de um paciente com catarata até a realização da cirurgia gira em torno de dez anos”, afirma Cohen. Desde 2013, uma parceria da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), sob a supervisão da pesquisadora Solange Salomão, aperfeiçoa a iniciativa. Um estudo epidemiológico feito por ela revelou que os índices de cegueira e deficiência visual em adultos maiores de 45 anos na Amazônia brasileira são três vezes maiores do que em áreas de baixa renda na cidade de São Paulo. “Entre os 10 mil pesquisados, cerca de 2,4 mil tinham 45 anos ou mais de idade, e 2.041 fizeram um exame oftalmológico. Desses, 4,5% eram cegos e 18% tinham deficiência visual”, aponta Solange. Além da falta de serviços oculares em razão da dificuldade de acesso à região (feita somente por barco ou avião) e a distância entre as cidades interioranas e Manaus, outro fator preponderante é a forte exposição à luz solar, em razão da localização equatorial do Estado. “Os raios ultravioletas aumentam a ocorrência de catarata e pterígio (carne esponjosa no olho)”, diz Solange.
“Uma das causas de deficiência visual é, por incrível que pareça, a falta de óculos para perto, que são baratos, mas não estão disponíveis no Brasil ainda”, aponta Belfort. Os gestores dos mutirões na Amazônia dizem que é difícil precisar os custos com materiais, equipamentos, viagens e mão de obra médica. Embora o montante fosse astronômico se pago pelo Poder Público, muitas das práticas utilizadas pelas equipes médicas nas expedições poderiam ser reproduzidas para ampliar o atendimento à população. Até 2005, a técnica aplicada era a facectomia extracapsular, conhecida como “FEC”, com implante de lente intraocular. Mas diante da necessidade de tornar o procedimento mais rápido e sem cortes, as cirurgias da catarata passaram a ser feitas por facoemulsificação, com implante de lente intraocular no saco capsular, sem curativo ou pontos. Ainda que seja mais cara, ela diminui os custos pós-operatórios. O uso da telemedicina, que possibilita o acesso remoto a imagens, documentos e informações sobre os pacientes, vem facilitando o diagnóstico. “Os médicos trabalham pelos seus celulares em horários vagos entre cirurgias e usam todo o tempo ocioso para ajudar outras pessoas de maneira voluntária”, conta Belfort, do Ipepo.
O modelo itinerante também é considerado ideal pela equipe de oftalmologistas. Segundo Belfort, por contar com tecnologia de ponta nos procedimentos, construir estruturas fixas poderia tornar o sistema rapidamente obsoleto. O projeto tem parcerias com as secretarias de Saúde das cidades locais para utilizar hospitais que abrigam os mutirões com a estrutura necessária para as cirurgias. “O esforço em querer diminuir essas diferenças brutais da capital para o interior foi fundamental para o início dessas jornadas. A marca “Amazônia” também foi um diferencial. Realizar projetos desse tipo – em uma região que se quer preservar – dá visibilidade, e os custos bancados pelas empresas envolvidas se diluem no ganho social”, opina Cohen, da Fundapi.
Idosa passa por assistência ocular.
A política de importação de equipamentos médicos é um gargalo para a modernização da área no Brasil, pois privilegia a indústria interna com financiamentos, isenções tributárias e demais facilidades. Outras tecnologias que poderiam contribuir para avanços ainda não estão no País em decorrência das barreiras de importação. O protecionismo comercial impede a chegada de máquinas de alta tecnologia de países emergentes, que os fornecem por preços menores. “O excesso de regulação é o principal entrave. Existem equipamentos na Índia que são eficientes, mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dificulta a importação. São coisas ótimas e muito baratas, com preços até cem vezes menores, mas que não chegam pela dificuldade burocrática”, pondera Belfort. Para ele, uma ampla reforma em agências reguladoras e órgãos do governo viabilizaria melhorias no sistema de saúde brasileiro. “A saúde é uma das áreas que menos inova no País. Os próprios empresários desistem e preferem se dedicar a saúde de animais e produtos pet, por exemplo”, completa.
A saída para melhorar a distribuição dos oftalmologistas no território nacional, na opinião de Cohen, pode ser realizada pelo SUS por meio da criação de programas de residências médicas em regiões com déficit de profissionais, como Norte e Nordeste, além de disponibilizar mais cotas para cirurgias oftalmológicas. “É necessário também desburocratizar as leis que emperram a aquisição de óculos, até mesmo os mais simples, como os monofocais e para enxergar de perto, diminuindo seus custos”, pondera. Atualmente, para que um produto seja importado, a Anvisa tem de enviar dois agentes para fiscalizar a empresa em sua sede e atestar que o item atende a todas as normas da agência. Tal análise pode demorar anos, e muitos equipamentos comprados por hospitais e clínicas se tornam obsoletos após o tempo de espera.