As iniciativas desenvolvidas pelo Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) vêm ganhando mais conhecimento da população desde o início da pandemia. Além da produção das vacinas CoronaVac e AstraZeneca, os dois institutos estão preparados para desenvolver imunizantes com tecnologia 100% nacional.
Em meio à crise de saúde sem precedentes que assolou – e ainda assola – o planeta, com milhões de idosos vitimados enquanto grupo de risco, foram exatamente dois velhinhos centenários os maiores destaques no Brasil no combate ao coronavírus. Um deles completou 121 anos e vive em um exótico castelo construído no início do século 20, em estilo neomourisco, às margens da agitada Avenida Brasil, no bairro de Manguinhos, logo na entrada do Rio de Janeiro. O vetusto senhor leva o pomposo nome de Fundação Oswaldo Cruz, mas tornou-se popularmente conhecido como Fiocruz.
Do outro lado da Via Dutra, um ano mais novo, o seu colega ocupa uma ilha arborizada de 750 mil m², no bairro que leva o seu nome, na zona oeste de São Paulo. Quando foi fundado, chamava-se Instituto Serumteráphico e teve como grande mestre o médico Vital Brazil, que impulsionou o Instituto Butantan no desenvolvimento e na produção de soros. Nas décadas seguintes, tornou-se unanimidade na prestação de serviços na área da Saúde, e não se conhece um único paulistano que tenha vociferado cobras e lagartos sobre sua atuação, principalmente quando se trata de pesquisa e desenvolvimento de soros e vacinas. Pelo contrário. É até mesmo uma referência turística e passagem obrigatória de estudantes com seus quatro museus e suas áreas dedicadas aos répteis e macacos, infelizmente fechadas temporariamente.
Na pandemia, tanto a Fiocruz como o Butantan tornaram-se nomes presentes no dia a dia da mídia e, hoje, soam tão familiares aos brasileiros como Flamengo ou Corinthians, principalmente após a chegada da vacina Coronavac, resultado do acordo de transferência de tecnologia entre o Instituto Butantan e a biofarmacêutica chinesa Sinovac. Para 2022, está prevista a conclusão da nova fábrica do Butantan, capaz de produzir o ciclo completo de 100 milhões de doses anuais – hoje, os IFAs (Ingredientes Farmacêuticos Ativos) chegam do país asiático e são envasados na unidade atual. Nesta mesma futura unidade, os pesquisadores irão aprofundar os estudos para desenvolver uma vacina 100% nacional contra a covid-19, já batizada como ButanVac.
Em paralelo, no início de junho, a Fiocruz fechou um acordo nos mesmos moldes com a anglo-sueca AstraZeneca, que passou a ser produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), braço da fundação carioca para desenvolvimento, pesquisa e produção de vacinas. A estimativa é atingir a produção mensal de 15 milhões de doses. Devido ao tipo de IFA, o processo de produção da AstraZeneca é mais rápido que o da CoronaVac – o insumo da AstraZeneca tem o adenovírus do chimpanzé como vetor de informações da proteína spike, que é inserido dentro do antígeno; já o ciclo da CoronaVac demora 11 dias e tem o ovo como insumo-base. Nele, é injetado um vírus que produz a proteína S, que posteriormente é inativada, pronta para agir contra o coronavírus.
Embora tardio, o reconhecimento oficial veio em agosto, quando as duas instituições foram reconhecidas como Patrimônio Nacional da Saúde Pública. Na prática, a Fiocruz e o Instituto Butantan passam a ter prioridade em processos seletivos na compra de bens e serviços como também na liberação de verbas vindas de emendas parlamentares.
A primeira experiência em transferência de tecnologia veio em 1937, quando a Fundação Rockefeller cedeu à Fiocruz a cepa do vírus atenuado da febre amarela. Com os recursos da época, os pesquisadores aprimoraram a formulação e deram escala industrial à vacina, que hoje é exportada para mais de 70 países. “Fiocruz responde por 80% da produção mundial do imunizante”, comemora o virologista Akira Homma, 82 anos, pesquisador emérito e ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que atua há 53 anos na instituição.
Com a inauguração do laboratório Bio-Manguinhos, na década de 70, as experiências tornaram-se mais regulares, como na transferência de tecnologia do Instituto Mérieux para a produção da vacina meningocócica AC. “Os franceses trouxeram todos os insumos, treinaram nossos pesquisadores e, em menos de seis meses, começamos a fornecer para o Programa Nacional de Imunizações (PNI)”, recorda Homma. Nos anos 80, um acordo com o governo japonês permitiu a produção das vacinas contra o sarampo e a poliomielite. Na medida que Bio-Manguinhos se modernizava, foram possíveis novas parcerias, como ocorreu em 2003, quando teve início a produção da vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola), em acordo com o laboratório GSK, responsável também pela vacina contra o rotavírus. “Graças à nossa estrutura e corpo técnico, provamos aos grandes laboratórios que éramos capazes de produzir as mesmas vacinas feitas lá fora”, diz o virologista. Apenas em 2020, Bio-Manguinhos forneceu 111 milhões de vacinas para o PNI.
Há ainda o desenvolvimento de vacinas com tecnologia 100% nacional, como nos casos dos estudos dos imunizantes contra a zika e a chicungunha, que foram interrompidos devido à prioridade ao coronavírus e devem ser retomados em 2022. Desde 1959 na área imunológica, Akira Homma lamenta a falta de planejamento na pandemia. “Ficou claro que falta um projeto de país no Brasil. Tanto o Butantan como a Fiocruz possuem seus próprios projetos, mas faltou uma gestão central capaz de desenvolver soluções rápidas no atendimento emergencial dos pacientes infectados”.
Além dos estudos para desenvolvimento da ButanVac, as expectativas dos pesquisadores do Instituto Butantan estão voltadas para a aprovação da vacina contra a dengue, que se encontra na fase 3 de estudos clínicos. O laboratório norte-americano MSD saiu na frente e já fechou acordo, no valor de US$ 100 milhões, para distribuição global da vacina. “É algo inédito. A vacina protege contra os quatro tipos de dengue. Pela primeira vez, em um estudo deste porte, a tecnologia sairá do Brasil para outros países”, afirma Tiago Rocca, gerente de parcerias estratégicas e novos negócios do Instituto Butantan.
As pesquisas tiveram início em 2009, quando o National Institute of Health (Instituto Nacional de Saúde, dos Estados Unidos) licenciou para o Butantan um protótipo vacinal para desenvolvimento clínico e produtivo. “Contratamos os estudos de fases 2 e 3, fizemos um laboratório-piloto e temos instalações industriais aprovadas pela Anvisa para escalonamento industrial. Fizemos estudos com 17 mil voluntários e logo entraremos com registro na Anvisa, podendo ser comercializada já em 2022”, informa Rocca.
Atualmente, o Instituto Butantan responde pela produção de sete vacinas para o SUS, como as da influenza (H1N1), hepatite A, hepatite B e raiva. No caso da H1N1, a produção veio por meio da transferência de tecnologia do laboratório Sanofi Pasteur. Em breve, à lista, poderá ser acrescida a vacina contra a chicungunha, que vem sendo desenvolvida pelo laboratório francês Valneva. Segundo Rocca, o imunizante foi testado em mais de quatro mil pessoas e gerou anticorpos neutralizantes em 98,5% dos voluntários 28 dias após a aplicação de uma dose única. “Já há acordo fechado para produção no Brasil, e o registro está previsto para 2023.”
Somado ao trabalho dos dois institutos, o Brasil pode tornar-se pioneiro na criação e no desenvolvimento de spray nasal contra a covid-19. O projeto segue em estudo por pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e está sendo coordenado pelo imunologista Jorge Kalil Filho, ex-diretor do Instituto Butantan. “Descobrimos um novo antígeno vacinal, e um tipo de nanopartícula que gera maior imunidade e fica grudada na mucosa nasal, que é a porta de entrada da contaminação. Obtivemos ótimos resultados em testes com animais.”
Em entrevista à Folha de S.Paulo, a médica Mariângela Simão, diretora-adjunta da Organização Mundial da Saúde (OMS), elogiou as iniciativas em busca de uma vacina intranasal e ressaltou que ainda não há nenhum projeto aprovado no mundo com esta tecnologia.
Se depender de Kalil, a vacina estará em condições de ser aprovada pela Anvisa já no primeiro semestre do próximo ano e apta para ser incluída no PNI como dose de reforço. Mas o cronograma esbarra na produção em alta escala dos antígenos e na distribuição. “O Brasil está atrasado em biotecnologia, não é possível produzir a proteína em escala industrial”, lamenta o imunologista. A saída, acredita ele, é buscar um laboratório estrangeiro que abrace o projeto.