A falta de ações articuladas entre governo federal, Estados e prefeituras, ao longo dos últimos anos, resultou na expansão do mosquito da dengue até em regiões com baixo registro histórico de casos da doença, como Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Transmissor da dengue, do zika e da chicungunha, o mosquito Aedes aegypti pode ter andado meio sumido da mídia durante os anos recentes – período em que o noticiário e as campanhas se voltaram à pandemia da covid-19 – mas isso não significa que tenha se aposentado: a voracidade da proliferação do inseto segue rompendo fronteiras e se alastrando até mesmo em regiões de clima mais ameno, pouco acostumadas a conviver com as moléstias típicas das áreas tropicais.
Aproveitando-se do descuido da população e dos órgãos públicos, o inseto põe os ovos em recipientes como latas e garrafas vazias, pneus, calhas, caixas d’água descobertas, pratos sob vasos de plantas ou qualquer outro objeto que possa armazenar água da chuva. O mosquito pode procurar ainda criadouros naturais, como bromélias, bambus e buracos em árvores. De acordo com dados do Ministério da Saúde, no ano passado, foram registrados 1.450.270 casos de dengue, o que representou um aumento de 162,5% em relação a 2021. O número de óbitos atingiu o recorde histórico de 1.062 vidas, superando 2015, quando morreram 986 pessoas. Cidades como Joinville (SC) e Blumenau (SC), que nunca haviam enfrentado surtos do tipo, registraram números expressivos da doença, que atinge, hoje, todos os Estados brasileiros.
De acordo com o infectologista Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o quadro pode se agravar ainda mais em 2023 caso medidas efetivas contra o mosquito não forem tomadas. “Se não houver ações adequadas contra o Aedes aegypti, o ano de 2023 será mais grave que 2022, em razão das chuvas e das altas temperaturas em todo o País”, alerta o médico, que joga nas costas da má gestão do governo a propagação de infecções. “Foi uma tragédia, caótica e desastrosa. Não houve nenhuma ação coordenada entre governos e municípios. No caso da dengue, não houve mobilização quanto a investimentos em campanhas de prevenção. Muitas das milhares de mortes poderiam ter sido evitadas caso fossem tomadas ações preventivas”, critica.
O governo federal acordou tarde, diz Barbosa. A falta de atenção, ainda em 2020, trouxe de volta a variante sorotipo 2 do vírus da dengue, ausente nos anos anteriores. Esta cepa, com mais poder de contaminação, é comum em países do Sudeste Asiático e do Caribe. Apenas no fim de outubro, quando os números já eram alarmantes, o então ministro Marcelo Queiroga lançou a Campanha Nacional de Combate ao Aedes aegypti, com peças em TV, rádio e internet, além de orientações sobre focos de proliferação e orientações preventivas.
Até o momento, a nova ministra da Saúde, Nísia Trindade, não anunciou medidas emergenciais a respeito. A assessoria de imprensa do ministério justifica que as atenções no primeiro mês do novo governo estiveram concentradas no atendimento de urgência aos indígenas ianomâmis, em Roraima.
Oficialmente, o Brasil é o país com maior notificação dos casos de dengue. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a média global é de 300 milhões de casos/ano, com esmagadora maioria na Tailândia, na Malásia e no Vietnã. Contudo, as ocorrências não são notificadas aos respectivos governos. Nos casos de transmissão do zika e da chicungunha, a incidência de óbitos é menor e está majoritariamente concentrada nas regiões Nordeste e Norte do País.
“A dengue é mais letal por evoluir para choque hemorrágico. Entretanto, caso a pessoa seja rapidamente encaminhada após os primeiros sintomas, como febre, dores articulares e manchas vermelhas, a possibilidade de cura é grande. Infelizmente, graças à falta de investimentos, o que tem ocorrido é o atendimento clínico inadequado no tratamento da doença, principalmente fora dos grandes centros”, lamenta Barbosa.
O Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não oferece uma vacina específica contra a dengue. Há expectativa para a liberação, por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da vacina do laboratório japonês Takeda, já aprovada pela União Europeia e pela Indonésia, com índices de redução de 90% nos casos de hospitalização. A imunização, que cobre quatro sorotipos do vírus, deve ser aplicada em duas doses, com intervalo de três meses, a partir dos seis anos de idade. “É um bom exemplo de como pesquisas em vacinas para moléstias tropicais têm viabilidade comercial, desde que os clientes finais sejam os governos”, destaca Barbosa, da SBI. Na rede privada, um imunizante do laboratório francês Sanofi Pasteur está disponível, mas é aplicável somente em pessoas que já tenham contraído a dengue.
Sem data para entrar no mercado, o Instituto Butantan, em parceria com o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (Niaid), desenvolve, desde 2010, uma vacina – atualmente em testes na fase 3 (em 17 mil pessoas, a partir dos seis anos de idade). “Os testes são feitos em regiões endêmicas, com pacientes que tiveram e com quem nunca foi infectado. A cada coleta de sangue, verificamos em 28 dias o grau de contaminação. Os testes, que começaram em 2019, devem terminar em 2024. Excluímos apenas as gestantes, por não sabermos dos riscos”, explica Fernanda Boulos, diretora técnica do Butantan.
O princípio da vacina, que contará com a parceria do laboratório multinacional MSD na distribuição, é por meio da inoculação do vírus atenuado (a exemplo das imunizações contra sarampo e caxumba), o que estimula a produção de anticorpos para combater o vírus da dengue.
Com base no mesmo princípio, o Butantan também desenvolve uma vacina específica contra a chicungunha, em parceria com um instituto austríaco, que está mais avançada nas pesquisas. “Apesar da mortalidade ser mais baixa, a chicungunha deixa sequelas de artrite”, destaca Fernanda. Os testes estão na fase 3, com 750 adolescentes, e os resultados preliminares devem sair até o meio do ano.
“Erradicar a dengue é difícil, já que o mosquito é o reservatório da doença. Todavia, haverá considerável redução das infecções”, afirma. Embora não acredite na erradicação total das doenças, como aconteceu com a varíola – extinta desde a década de 1980 no planeta –, a médica é otimista quanto à eficácia das vacinas.