A revista Problemas Brasileiros traz reflexões exclusivas de Octávio Luiz Motta Ferraz sobre a sua obra (Health as a Human Right. The Politics and Judicialization of Health in Brazil, Cambridge Studies in Law and Society, Cambridge University Press, 2020, A saúde como direito humano), que aborda os avanços e desafios da área, no País, a partir da Constituição de 1988, que estabeleceu a saúde como dever do Estado.
O direito à saúde dos brasileiros está mais protegido hoje, três décadas após o seu reconhecimento no artigo 196 da Constituição de 1988? A pandemia de covid-19 recolocou essa questão na ordem do dia, não só no Brasil, mas ao redor do mundo. A ideia de que a saúde é um direito humano remonta à constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 1946 e está, hoje, consolidada em diversos tratados internacionais e legislações domésticas. Um total de 166 países ratificaram o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, cujo artigo 12 reconhece um “o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental”. Número crescente de constituições e leis infraconstitucionais também reconhecem o direito à saúde de uma forma ou de outra. Mas que diferença isso realmente faz?
A experiência brasileira é particularmente interessante e relevante para discutir essa questão. O Brasil foi um dos primeiros (e ainda poucos) países a se comprometerem expressa e inequivocamente, na Constituição, a fornecer a toda a população (atualmente, 210 milhões de pessoas) ações e serviços de saúde financiados pelo Estado (i.e. como um “direito de todos”, universal, e um “dever do Estado” – art. 196 da Constituição de 1988). É também um dos países em que litígios envolvendo o direito à saúde (a chamada “judicialização da saúde”) ocorre de forma mais intensa, com centenas de milhares de ações judiciais chegando atualmente aos tribunais brasileiros todos os anos.
Qual o resultado de três décadas do direito à saúde na Constituição e dessa intensa judicialização?
O senso comum entre juristas, e uma parte do público brasileiro (notadamente, as classes média e alta), é a de que a Constituição pouco ou nada alterou na situação precária de saúde do povo brasileiro. As enormes filas nos hospitais, divulgadas frequentemente nos noticiários televisivos, são, para muitos, a prova de que não se pode confiar nos órgãos legislativos e executivos para o cumprimento de seus deveres constitucionais.
É nesse contexto de contumaz delinquência política que se insere a chamada “judicialização da saúde”. De acordo com essa visão, que chamo de “narrativa da revolução dos direitos” (rights revolution), a ação judicial é uma resposta natural e legítima à negligência do Estado.
Uma imagem muito diferente emergiu dos dados empíricos que analisei sobre as três décadas de direito constitucional à saúde no Brasil. Como demonstro no livro – e é consenso na literatura de saúdes públicas nacional e internacional –, nas últimas três décadas, um amplo conjunto de políticas públicas foi implementado no Brasil com o objetivo de implementar o art. 196 da Constituição. A mais abrangente e importante foi a criação de um sistema público e universal, o SUS (Sistema Único de Saúde), que deu acesso a ações e serviços de saúde a dezenas de milhões de brasileiros que, antes da Constituição, eram abandonados pelo Estado. Entre as principais ações, destacam-se, entre outras, a Estratégia Saúde da Família (ESF), o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT). Existe um amplo consenso entre especialistas que essas políticas têm desempenhado papel crucial nas melhorias significativas da saúde da população nas últimas décadas, como vários indicadores demonstram (e.g. diminuição da mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida, etc.).
O retrato de negligência total e sistemática pelos poderes políticos em relação ao direito à saúde – tida por muitos como fato notório sem necessidade de demonstração – simplesmente não corresponde à realidade.
Está, então, tudo ótimo com o direito à saúde no Brasil? Claro que não. Como também demonstro no livro, apesar do aumento não trivial do investimento público em saúde e do redirecionamento de recursos para programas que beneficiem os mais desfavorecidos após a Constituição, o sistema público ainda é palpavelmente subfinanciado, muito desigual e ineficiente em muitas áreas. O Brasil investe, anualmente, menos de 4% de seu Produto Interno Bruto (PIB) no sistema público de saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda 6% como investimento mínimo; a Costa Rica, com um PIB per capita semelhante ao brasileiro, investe 6,2%; países desenvolvidos que levam a saúde pública mais a sério tendem a investir em torno de 8% ou mais. Em termos per capita, vê-se o mesmo subinvestimento. Atualmente em US$ 594, o investimento do Brasil é muito menor do que o seu nível de desenvolvimento econômico comportaria. A Costa Rica investe US$ 977; a Argentina, US$ 922; o Chile, US$ 1,156; e o Uruguai, US$ 1.220.
Além disso, os recursos limitados do sistema público são desigualmente distribuídos em termos per capita entre regiões, Estados e municípios, muitas vezes de maneira regressiva. Muitos Estados do Norte e Nordeste (onde vive grande parte da população brasileira com as piores condições de saúde), têm o menor gasto público per capita em saúde do País.
A definição das prioridades sobre onde investir os recursos limitados do sistema público são também questionáveis do ponto de vista da equidade. Para ilustrar, apesar dos níveis ainda relativamente altos de mortalidades infantil e materna em vários Estados e municípios, que exigem investimento maciço na atenção primária, uma parte significativa do orçamento de saúde pública é destinada aos cuidados secundários e terciários, incluindo equipamentos médicos sofisticados, procedimentos e medicamentos caros. A assistência farmacêutica fornece um bom exemplo. Considerando que o sistema público ainda é incapaz de fornecer, a todos, os medicamentos essenciais – o que explica os altos níveis de despesas das famílias pobres com remédios –, as alocações no orçamento público com medicamentos não essenciais é crescente (em parte decorrente da judicialização, como veremos a seguir)
Outra contradição importante é o fato de a parcela de 20% a 25% dos brasileiros mais ricos serem incentivados a abandonar o sistema público em direção aos planos privados por meio de generosas isenções de imposto de renda, colocando o Brasil na situação, talvez única, de reconhecer um direito universal à saúde na Constituição, mas ter os gastos privados em saúde (5% do PIB) maiores do que os públicos (3,8%).
Não é de surpreender, portanto, que as desigualdades em saúde no Brasil ainda sejam tão altas, apesar das melhorias nos últimos 30 anos. A expectativa de vida pode variar em até 23 anos entre bairros de uma mesma cidade; a mortalidade infantil é quase três vezes maior em alguns Estados do Norte e Nordeste do que em outros do Sul e Sudeste; e assim por diante, com praticamente todos os indicadores da área.
Parece claro, portanto, que nem tudo está bem com o direito à saúde no País. A sociedade brasileira ainda tem um longo caminho a percorrer para cumprir a promessa constitucional de um sistema de saúde pública genuinamente abrangente, universal e igualitário.
(“Health as a Human Right”. The Politics and Judicialization of Health in Brazil, Cambridge Studies in Law and Society, Cambridge University Press, 2020)
“A saúde como direito humano”, de Octávio Luiz Motta Ferraz
Não surpreende que muitos vejam no Judiciário um potencial remédio para a situação descrita acima. Mas os dados empíricos disponíveis de duas décadas de litígios em saúde no Brasil não justificam as esperanças nessa terapêutica (a narrativa da “revolução dos direitos”). Não é fácil encontrar (se é que existem) ações judiciais que envolvam as prioridades de saúde mais prementes dos pobres, como as ações de saúde pública e os serviços de atenção primária ainda não universalizados, apesar dos importantes avanços descritos anteriormente. O tratamento curativo, em especial medicamentos caros de prioridade duvidosa, representa uma grande parcela da judicialização. Os custos dessas reivindicações continuam aumentando a cada ano, tendo atingido níveis preocupantes em algumas regiões, e estima-se que consuma atualmente em torno de 3% do orçamento agregado da saúde nacional. A grande maioria das ações se concentra em alguns Estados, cidades e até bairros comparativamente mais desenvolvidos.
Como esse livro sustenta, mediante a análise de dados empíricos (cada vez mais disponíveis), o direito à saúde de fato contribuiu para melhorias significativas no bem-estar da população brasileira, ao contrário do que muitos juristas (e parte do público) acreditam. Esse progresso foi alcançado sobretudo por intermédio da implementação de políticas públicas de saúde pelos órgãos legislativos e executivos, em parte espontaneamente, em parte pelo senso dos deveres constitucional e moral, em parte pressionados pela sociedade civil. A judicialização, com poucas exceções, mais atrapalhou do que ajudou nesses esforços. No mais das vezes, ela força o sistema público a fornecer benefícios de justificativa dúbia e altos custos de oportunidade para uma minoria de indivíduos que consegue chegar aos tribunais.
Parece não haver razão para acreditar que esse cenário mude (ou possa mudar) no futuro próximo. Para quem esteja interessado em fazer continuar o progresso do direito à saúde no Brasil, desviar o olhar dos tribunais e concentrar recursos e esforços na esfera política é o melhor a ser feito.
No cenário político desafiador em que vivemos, a recomendação pode parecer anacrônica. Mas a atual crise sanitária, como toda crise, pode também oferecer uma oportunidade. Ao colocar as ambiguidades e complexidades que discuto no livro sob os holofotes, o momento atual pode ser aproveitado para fortalecer o direito à saúde e evitar os erros cometidos nessas três últimas décadas.