Reconhecido como maior sistema público de saúde do mundo, o SUS (Sistema Único de Saúde) soma conquistas, mas sofre com má gestão e financiamento abaixo do necessário. Em um país onde 74% da população é usuária exclusiva de seus serviços, o sistema acumula desafios para ser mais inclusivo e sustentável.
O SUS foi instituído de fato em 19 de setembro de 1990, a partir da Constituição Federal, de dois anos antes. A Lei 8.080 estabelece condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. Paralelamente, esse acesso à saúde contempla, também, alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte e lazer.
Até o advento do SUS, não existia, propriamente, um sistema de saúde nacional, mas um amontoado de instituições e serviços públicos e privados, sem coordenação e com más distribuições territorial e social, lembra o médico Jairnilson Silva Paim, doutor em Saúde Coletiva, professor de Política de Saúde no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Observatório de Análise Política em Saúde.
Não havia o reconhecimento do direito à saúde, segundo Paim, e só era admitido o direito à assistência médico-hospitalar a trabalhadores urbanos com carteira de trabalho assinada. “Populações rurais e residentes nas periferias urbanas não vinculadas ao mercado de trabalho formal praticamente não tinham acesso. Para as pessoas que não eram vinculadas à Previdência Social (INPS), restava-lhes a caridade de algumas instituições ou a compra de serviços privados na dependência da sua renda, pessoal ou familiar”, ressalta.
A saúde, em si, era parte de um rol de direitos laborais, resume Grazielle David, conselheira do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). O SUS não é um serviço gratuito, mas uma prestação de serviço paga pelos impostos cobrados de cada cidadão e que devem ser devolvidos em benefícios, por meio da prestação de contas dos valores arrecadados.
Globalmente reconhecido como um sistema que deu certo, tem potencial de se transformar no mais inclusivo e eficiente programa público de saúde. Para tanto, necessita de investimento perene em recursos (econômico, de infraestrutura, de matéria-prima ou de recursos humanos). Em uma nação populosa como o Brasil, o debate sobre seu aprimoramento precisa incluir acesso, oferta dos serviços e financiamento – justamente os maiores gargalos. Na contramão da necessidade de investimento, o sistema sofre percalços. O mais recente foi o corte de verbas promovido pelo Ministério da Saúde, que, em 2022, atingiu 12 programas. As perdas chegam a R$ 3,3 bilhões.
No Brasil, o gasto com saúde, em relação ao porcentual do Produto Interno Bruto (PIB), é compatível com o dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), se considerado o financiamento privado, aponta levantamento do OECD Health Statistics 2022. Em 2019, as despesas com bens e serviços de saúde em relação ao PIB foi de 9,6% (público e privado somados), enquanto a média dos países da OCDE é de 8,8%. Mas o gasto público brasileiro em relação ao percentual do PIB (3,8%) é inferior à participação da maioria desses países (6,5%), superando apenas a do México (2,7%).
Do lado do setor privado, há uma presença destacada de planos de saúde, estimulada por políticas públicas que se conectam com uma gama de prestadores de serviços. É o que evidenciam pesquisas referenciadas no estudo Crise Econômica e Disparidades no Gasto, Oferta e Utilização de Serviços Públicos e Privados de Saúde no Brasil entre 2011 e 2019, publicado em novembro de 2022 na revista Cadernos de Saúde Pública (CSP). Além disso, a resposta de muitos governos aos efeitos das crises, acentuadas a partir de 2008 resultou em corte de gastos sociais.
No Brasil, de 2011 a 2019, ocorreu aumento da participação de famílias no financiamento da saúde, mas não no setor público: houve acréscimos nos valores pagos em mensalidades de planos, copagamentos e desembolso direto com assistência e medicamentos, mostra o trabalho publicado na CSP.
Os benefícios tributários concedidos pelo governo federal contribuem para o crescimento e para a manutenção da prestação privada de serviços na área. Os gastos com saúde representam, por exemplo, os maiores entre as deduções de Imposto de Renda (IR), à frente, inclusive, da dedução por contribuição previdenciária oficial.
“O gasto público per capita reduziu durante a crise, enquanto a despesa assistencial por cliente de plano de saúde apresentou aumento no período”, destaca Danielle Conte Alves Riani Costa, nutricionista, sanitarista e doutora em Saúde Pública na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora principal do estudo.
O conceito de sistema de saúde retroage ao ano de 1975, quando foi instituído o Sistema Nacional de Saúde – o primeiro esforço institucional para promover uma coordenação sistêmica com outros setores da sociedade.
O sistema nasceu sob críticas, recorda o historiador e doutor em Saúde Coletiva, Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Ao estabelecer uma divisão institucional entre as ações da saúde pública, no âmbito do Ministério da Saúde; e da assistência médica individual, no Ministério da Previdência e Assistência Social, uma possível articulação entre políticas no campo da prevenção e assistência à saúde, apontada por muitos sanitaristas desde os anos de 1940, foi ignorada pelos formuladores do novo sistema, de acordo com Paiva.
Ainda segundo o pesquisador, em termos estruturais, a área remonta ao período Vargas, quando se definiu a separação institucional entre as ações de saúde pública e de assistência à saúde. Em torno dessa divisão, comenta Paiva, criaram-se interesses e formatações importantes. Na assistência, por exemplo, nasceu, a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, uma estrutura hospitalar privada, robusta e com capacidade para defender os próprios interesses.
A partir dos anos de 1960, o setor hospitalar privado, contando com financiamentos públicos e com uma paulatina compra de serviços previdenciários, aumentou sensivelmente de tamanho e prestígio. “Os interesses econômicos e políticos do setor hospitalar privado passaram a contar com estruturas suficientemente organizadas para atuar em prol dos seus interesses na arena estatal”, ilustra Paiva.