Geração faminta

16 de agosto de 2022

No fim de 2020, 19 milhões de brasileiros conviviam com a fome. Em 2022, são 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. Portanto, em menos de dois anos, são 14 milhões de novos famintos no Brasil, números de um país que voltou para o Mapa da Fome da ONU. A pesquisa Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil, publicada em junho pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostra que, assim como a fome, a insegurança alimentar (pessoas que comem mal ou comem pouco) se tornou ainda mais presente entre as famílias brasileiras. A insegurança alimentar atinge 125 milhões de brasileiros, mais da metade da nossa população.

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O alimento que não chega à mesa, um dos efeitos da vulnerabilidade social e sanitária do País, impacta negativamente a saúde geral dos brasileiros. Reduz a energia, afeta o desempenho cognitivo e físico, pode causar a perda de memória, quadros de anemia e levar à morte. Em geral, a fome desencadeia uma série de doenças carenciais (causadas pela falta de nutrientes essenciais para o organismo, como anemia, raquitismo e distúrbios metabólicos) e doenças crônicas não transmissíveis.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em relatório publicado em 2021, alerta que são insuficientes as medidas adotadas atualmente no País, como o Alimenta Brasil, do Governo Federal, para prover o crescimento infantil, aleitamento materno exclusivo e baixo peso ao nascer. A entidade também aponta para estagnação, ou até piora, em alguns casos, do quadro de excesso de peso infantil, perda de massa muscular infantil, anemia em mulheres em idade reprodutiva e obesidade adulta. O contexto de fome e insegurança alimentar potencializa o risco para as doenças não transmissíveis (DNTs) como diabetes, doenças cardíacas, derrame e câncer.

O relatório da FAO destaca que as dietas saudáveis ​​contêm uma seleção equilibrada, diversificada e adequada de alimentos consumidos durante um período. Além disso, garantem que as necessidades de uma pessoa quanto aos macronutrientes (proteínas, gorduras e carboidratos, incluindo fibras alimentares) e micronutrientes essenciais (vitaminas e minerais) sejam atendidas e estejam adequadas ao sexo, idade, nível de atividade física e estado fisiológico.

De acordo com a socióloga e nutricionista Vanessa Daufenback, coordenadora do Grupo de Trabalho de Agrotóxicos e Transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e membra da Rede Penssan, o primeiro diagnóstico que se faz no campo da segurança alimentar nutricional é que o Brasil retrocedeu para os índices de fome que antecederam uma série de políticas sociais implantadas.

Exemplos são o Programa de Aquisição de Alimentos (criado em 2003) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE – 2009), que foram enfraquecidos nos últimos anos. “Desde 2016, esses programas estão sendo desarticulados e subfinanciados”, observa ela. O valor da merenda, por exemplo, é de R$ 0,30 por dia letivo para cada aluno da pré-escola, ensinos fundamental e médio e educação de jovens e adultos.

O PNAE não teve reajuste significativo desde 2010 e houve redução de 20% em valores reais no orçamento do programa entre 2014 e 2019. Mesmo na pandemia, o governo federal reduziu orçamento para alimentação escolar, de R$ 4,06 bilhões em 2021 para R$ 3,96 bilhões em 2022. Por sua vez, houve alta de 84% no preço do óleo de soja, 39,7% no do arroz e 34,4% no da carne, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado entre julho de 2020 e julho de 2021.

Pratos vazios e problemas sociais

“A alimentação envolve uma agenda muito complexa, que vai além do ‘alimentar-se’, em si. Envolve a questão de gênero, à medida que cozinhar recai mais sobre as mulheres; de equidade social (mulheres negras estão sempre no topo da escala da insegurança alimentar e da fome); ambientais (pois as ações podem ser maléficas para o planeta); renda… Enfim, toda uma construção social”, analisa João Peres, jornalista e fundador do O Joio e o Trigo, portal de jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder.

A fome e a insegurança alimentar são refletidas, de fato, nas inequidades do País. A insegurança alimentar moderada e grave é crescente mesmo em domicílios que recebem auxílio financeiro dos programas Bolsa Família e Auxílio Brasil. Na faixa de renda de menos de meio salário mínimo por pessoa, a fome é uma realidade para 32,7% das famílias que relataram o recebimento dos benefícios e para 29,4% das que não o receberam. Por outro lado, em domicílios com pelo menos um(a) morador(a) aposentado(a) pelo INSS houve maior percentual de segurança alimentar (46,5%) e menor de fome (11,9%). A fome é mais frequente (16,7%) em moradias onde não há aposentados.

“É importante que os governantes olhem para alimentação, vacinação e renda. As populações afetadas pela baixa renda são as mesmas afetadas pela fome e a baixa taxa vacinal. Em geral, são pessoas negras ou indígenas e pobres.” Thaís Lourenço Assumpção, bióloga e doutoranda na Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE)

Em média, considerando todas as regiões, três em cada dez famílias relataram incerteza quanto ao acesso a alimentos e preocupação em relação à qualidade da alimentação no futuro imediato. As formas mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave) atingem fatias maiores da população nas regiões Norte (45,2%) e Nordeste (38,4%).  A insegurança alimentar está presente em mais de 60% dos domicílios das áreas rurais. Desses, 18,6% das famílias convivem com a fome, valor maior do que a média nacional.

Produzimos, mas não comemos

O Brasil é o maior produtor de soja do mundo, ao lado dos Estados Unidos. Dentre os produtos mais exportados, além da soja, estão açúcar, carne, farelo de soja, carne de aves e bovina e milho. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o agronegócio brasileiro, em maio deste ano, teve superávit de US$ 43,7 bilhões no acumulado de 2022. “Somos um País que tem uma grande capacidade produtiva e variedade de alimentos, em condição de garantir o direito humano à alimentação adequada, mas isso não ocorre. Dolarizamos a nossa comida, mas as pessoas não ganham o seu salário em dólares. Não ganham nem o mínimo para a sobrevivência”, critica Vanessa.

O agronegócio, na visão da agrônoma Catia Grisa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem grande importância na pauta de exportações, mas esta é também sua limitação. “O fato de termos alimentos que estão sendo produzidos como commodities, voltados para fora, gera uma dinâmica de inflação”, diz. Ainda segundo ela, quando a produção brasileira é afetada por mudanças climáticas, isto implica trazer de fora os alimentos que são básicos no Brasil. “O Brasil é produtor, mas acaba tendo que importar”, lamenta.

 “O olhar deveria estar para as agriculturas de reexistência”, segundo a avaliação da bióloga Thaís Lourenço Assumpção, doutoranda na Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE). Ela adverte que são as pequenas e médias propriedades que produzem diversas culturas alimentícias, com menos uso de agrotóxicos e fertilizantes, com uso de técnicas tradicionais, (como as de agroecologia) destinadas ao consumo interno, em especial, o mais local. Thaís avalia que reexistir na terra é o único caminho sustentável, em todos os sentidos da palavra, que pode efetivamente tirar nosso povo da fome no longo prazo.

Moura Leite Netto Yana Parente
Moura Leite Netto Yana Parente
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