O paradoxo da saúde

27 de julho de 2020

Estima-se que 7 entre 10 cirurgias de câncer não foram realizadas por causa do covid-19. O impacto da pandemia no Sistema Único de Saúde (SUS) é analisado em reportagem de capa da PB (ed. #459), que chega às bancas e plataformas digitais na primeira semana de agosto.

E

Em 1988, quando o Brasil somava cerca de 140 milhões de habitantes, a Constituição falava em saúde alicerçada nos princípios de universalização, equidade e integralidade. Passadas três décadas, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos mais robustos programas de saúde pública do mundo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) enaltece o SUS a ponto de compará-lo com os programas da Alemanha, da Inglaterra, da Noruega e da Suíça. A diferença é que esses países são mais ricos e menos populosos. Juntos, eles somam 150 milhões de habitantes e o Brasil tem 210 milhões.

Estima-se que oito entre dez brasileiros sejam usuários do Sistema. Ao longo das últimas três décadas, foi possível ter acesso gratuito ao maior programa de imunização e de transplante de órgãos do mundo. O SUS se destaca também pela distribuição de medicamentos contra a aids,  se tornando referência mundial; assim como em relação àspolíticas de combate ao tabagismo, êxito dos programas de saúde da família e de agentes comunitários de saúde. 

Paradoxalmente, o SUS apresenta gargalos que o impedem de cumprir à risca o que determina a lei que o criou. O principal golpe sofrido foi a Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, que intensificou os cortes de investimentos anuais em saúde. Somente em 2019, a perda de investimentos na área foi de R$ 20 bilhões, segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o que significa, na prática, a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde. “Esse corte aumentou o tempo de espera para atendimento e gerou falta de reposição de pessoal, fechamento de leitos e redução de programas”, lamenta o médico sanitarista, José Gomes Temporão. 

Antes da pandemia, o gargalo do SUS sempre foi o subfinanciamento, observa a bióloga, Natália Pasternak Taschner. “Apesar de uma boa cobertura nacional, ele sempre operou no limite. É excelente, mas nunca deu conta do recado, por causa do volume e dos investimentos insuficientes”, destaca Natália, que é pesquisadora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência. 

Entre prós e contras, o SUS é a única grande novidade mundial de cobertura continental de saúde, segundo o sociólogo Paulo Delgado, copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política da FecomercioSP. “Se não fosse o SUS, o País já teria entrado em convulsão social. Dentro da rede de proteção social em que ele está inserido, é o principal polo de acolhimento do sofrimento das pessoas”, avalia o ex-deputado constituinte. 

“Apesar de uma boa cobertura nacional, o SUS sempre operou no limite. É excelente, mas nunca deu conta do recado, por causa do volume e dos investimentos insuficientes.” Natália Pasternak Taschner

PRESSÃO DA PANDEMIA  

Em momentos como este, de emergência na saúde pública, fica evidente a importância do SUS. Balanço divulgado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aponta que os planos privados de saúde perderam 283 mil clientes em dois meses. Comparativamente, em todo o ano de 2019 houve uma perda de 60,4 mil clientes. 

Em nota oficial à PB, o Ministério da Saúde destaca que, desde o início da pandemia, pagou R$ 54,7 bilhões a Estados e municípios para o financiamento de ações e serviços públicos de saúde, sendo R$ 9,9 bilhões voltados exclusivamente para combater o coronavírus. O governo federal afirma também que outros R$ 13,8 bilhões foram autorizados para serem repassados a Estados e municípios.

O ministério pontua ainda que foram habilitados 9.201 leitos de UTI exclusivos para covid-19. Houve a distribuição de 15,5 milhões de medicamentos; compra e distribuição de 163,3 milhões de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para uso de profissionais de saúde. Foram enviados 12,3 milhões de testes de diagnóstico para todo o País, comprados e distribuídos 6.549 ventiladores e contratados mais de 6 mil profissionais de saúde para reforçar o atendimento. 

No entanto, nestes quatro primeiros meses de pandemia no País, as ações de enfrentamento se mostraram contrastantes. Na opinião de Temporão, pesquisador da Fiocruz e ex-ministro da Saúde no governo Lula, o Brasil começou bem, com medidas de distanciamento social e grande esforço para ampliação da capacidade instalada de leitos, assim como para buscar alternativas frente à falta de testes, de respiradores e de EPIs, entre outros insumos. 

Por sua vez, o início promissor durou pouco. “O ideal seria ter mantido, por um período de dois meses pelos menos, uma adesão à quarentena acima de 70%. Mas não conseguimos fazer isso, em nenhuma grande região metropolitana. Se tivéssemos feito direito, teríamos ficado menos tempo em um isolamento maior e já poderíamos estar planejando o retorno de maneira organizada e sem protocolos”, opina Luciana Dias Lima, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Para o médico sanitarista Walter Cintra Ferreira Junior, doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV), o enfrentamento de uma pandemia não pode ocorrer apenas pelos serviços de saúde. “Isso precisa ser feito de forma integrada entre os diversos setores da sociedade e com uma participação individual de toda a população”, afirma. Em sua visão, o Ministério da Saúde precisa assumir a liderança nas ações. “Temos um Ministério da Saúde acéfalo, prescrevendo protocolos de tratamento sem amparo científico. As orientações de prevenção, como o distanciamento social e uso de máscara, têm sido sistematicamente desacreditados por lideranças alinhadas ao governo federal, passando à população uma mensagem dúbia quanto à gravidade da doença.” 

QUEM MORRE MAIS? 

Análise feita pela Rede Nossa SP, ao cruzar dados da Prefeitura de São Paulo com o Mapa da Desigualdade, divulgada na segunda quinzena de junho, mostrou que bairros com as maiores proporções de pessoas pretas e pardas têm mais mortes causadas por covid-19.

O ex-ministro Temporão atenta para o fato de haver 40 milhões de brasileiros trabalhando por conta própria, sem proteção social, além de 12 milhões de desempregados e 12 milhões que trabalham em condições insalubres, sem saneamento básico nem informação, muito impactados por doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, doença cardiovascular e pulmonar. “Isso faz com que esses setores da sociedade estejam mais propensos a adoecer e adquirir complicações que possam levar à necessidade de internação.”

Em resposta a essa problemática, o Ministério da Saúde lançou duas novas estratégias para aumentar a capilaridade da distribuição das equipes que atuam na atenção à saúde primária, em especial nas regiões em maior situação de vulnerabilidade social. A ideia é que, com recurso federal, os municípios criem centros comunitários de referência e/ou centros de atendimento para enfrentamento do covid-19. 

“As orientações de prevenção, como o distanciamento social e uso de máscara, têm sido sistematicamente desacreditados por lideranças alinhadas ao governo federal, passando à população uma mensagem de dubiedade quanto à gravidade da doença.” Walter Cintra Ferreira Junior

OUTRAS DOENÇAS 

Com o anúncio da pandemia, momento em que pouco se sabia sobre o potencial impacto da doença nos sistemas público e privado de saúde, a recomendação “fique em casa” não foi seguida da ressalva de que os pacientes com doenças crônicas como câncer, derrame, doença pulmonar obstrutiva crônica [DPOC], colesterol alto, hipertensão e diabetes deveriam manter o tratamento. Já as demais pessoas deveriam seguir atentas aos sinais do corpo e procurar o médico em caso de sintomas. 

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO), no primeiro momento, orientou que os pacientes com tumores em fase inicial tivessem as suas cirurgias reagendadas. 

De acordo com a entidade, sete entre dez pacientes com câncer ou com suspeita de tumor deixaram de ser operados entre março e junho. Desde o começo da pandemia, segundo a Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), ao menos 70 mil pessoas deixaram de receber o diagnóstico de câncer. 

Para reverter esse cenário, sociedades médicas, hospitais, clínicas e ONGs chamam a atenção para o risco de progressão da doença, por meio de campanhas como O Câncer Não Espera.  

Além do câncer, a pandemia também afetou os pacientes com doenças cardiovasculares, inclusive com consequências mais imediatas. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) aponta que houve um aumento de 30% nas mortes em domicílio por AVC [acidente vascular cerebral], infarto e outras doenças cardiovasculares em relação ao mesmo período do ano passado. Na avaliação da SBC, as mortes por doenças cardíacas têm possivelmente três fatores principais: acesso limitado a hospitais onde houve sobrecarga do sistema de saúde, redução da procura por cuidados médicos devido ao distanciamento social ou por medo de contrair covid-19, e também o isolamento que prejudica a detecção de sintomas.

O Ministério da Saúde reconhece que muitos deixaram de procurar os serviços de saúde para tratar outras doenças. A pasta reforça que o SUS está apto para garantir o atendimento à população, além de orientar os gestores com novas alternativas, por meio de notas técnicas e incentivo à telemedicina, visitas domiciliares, busca ativa de pacientes que necessitam ter suas doenças controladas, atendimento em áreas separadas dos casos de covid-19, dentre outras medidas. O ministério reitera que, no campo da imunização contra o vírus, firmou parcerias com a Universidade de Oxford e AstraZeneca.  

Conteúdo publicado na edição 459 da revista PB. Clique aqui.

Moura Leite Netto Joélson Buggilla
Moura Leite Netto Joélson Buggilla