Vida e morte na tela

17 de abril de 2024

São mais de 5 bilhões de usuários ativos (62,3% da população mundial). No Brasil, a média por pessoa é de mais três horas diárias dedicadas às mídias sociais e 4 em cada 10 brasileiros seguem a rotina de influenciadores.

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Esta reportagem aborda questões de saúde mental e suicídio. Caso você (ou alguém que conheça) apresente sinais de alerta, procure ajuda.*

Qual é o papel das mídias sociais e o quanto estão na fronteira entre ser uma ferramenta eficaz de comunicação e um espaço para ataques virtuais dos chamados haters? O bullying e o cyberbullying podem levar à depressão e, em casos extremos, ao suicídio? Ao responder aos questionamentos da reportagem da PB, a psicóloga e psicanalista Marielle Kellermann, cofundadora da Dynami Saúde Mental, observa que o mau uso desas ferramentas pode afetar a saúde das pessoas, em especial daquelas com questões prévias de sofrimento mental. “Não existe uma única e exclusiva razão para desencadear um sofrimento mental mais grave. É sempre uma sobreposição de fatores, incluindo, em especial, a história familiar”, explica. 

Há um limite tênue entre absorver o bom das mídias sociais e o sofrimento psíquico por causa da ação dos haters e da desinformação, além da polarização de temas do cotidiano, como eleições, religião e guerras, afirma Danielle Admoni, médica psiquiatra geral e da Infância e adolescência. “As pessoas estão muito radicais e ofensivas, porque as redes sociais são terra de ninguém. Destilam ódio. Às vezes, são coisas muito pesadas, até antiéticas e ilegais, como racismo e antissemitismo”, destaca a especialista, que é pesquisadora e supervisora na residência de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM).

Na avaliação da médica psiquiatra Maria Julia Francischetto, do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe), as mídias sociais estão aí para ficar — e saber como vivenciá-las sem sofrimentos é uma balança que a sociedade precisar aprender como equilibrar. “Ataques virtuais podem afetar, sim, quem está do outro lado da tela. Mas o mais importante é entender como o cyberbullying afeta as vítimas para, assim, delimitar se quem sofreu o ataque precisa ou não de apoio e como podemos ajudar”, afirma a especialista, que ilustra também com uma analogia: “Várias pessoas são assaltadas. Algumas reagem de uma forma que não as impacta ou compromete. Outras sofrem a ponto de precisar de ajuda médica. Assim como os ataques virtuais, temos de ver caso a caso”, acrescenta. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), adolescentes com problemas de saúde mental são particularmente vulneráveis ​​à exclusão social, à discriminação, ao estigma — o que dificulta a procura de ajuda —, às dificuldades educativas, aos comportamentos de risco, aos problemas de saúde física e às violações dos direitos humanos.

Vida exposta na tela

Em todo o mundo, de acordo com o levantamento WeAreSocial, são 5 bilhões de usuários ativos nas mídias sociais, o que representa 62,3% da população global. No Brasil, a média sobe para 66,3%. Quatro entre dez usuários brasileiros declaram seguir influenciadores, em especial no Instagram e no TikTok. Paralelamente ao alto consumo, está também a superexposição. Na era dessas ferramentas, muitos aspectos da vida deixam de ser privados, e, com o agravante do mau uso da Inteligência Artificial (IA), se intensificam a exposição íntima não autorizada, as ameaças e a disseminação de ódio. 

Em 2006, o caso de Vinicius Gageiro Marques, de 16 anos, foi o primeiro no Brasil de um jovem que transmitiu online o próprio suicídio. O caso mais recente é o de Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, que se matou após sofrer intensos ataques causados pela repercussão de um suposto relacionamento amoroso com o influenciador Whindersson Nunes. Após investigar o caso, a Polícia Civil de Minas Gerais concluiu o inquérito dizendo que a notícia falsa, publicada em perfis como o da Choquei, teria sido vazada pela própria jovem. Em outro caso, Paulo Cezar Goulart Siqueira, mais conhecido como PC Siqueira, chegou a somar 2 milhões de inscritos no seu canal no YouTube antes de ser apagado, em 2020. O youtuber, “cancelado” em razão de denúncias de pedofilia, tirou a própria vida em dezembro de 2023. Nada foi provado contra ele. 

“Ao lidarmos com depressão e suicídio, enfretamos situações complexas que são respostas a uma série de fatores que não podemos delimitar ao certo. Identificar o cancelamento como algo que lhe traz sofrimento e compreendê-lo pode ser uma forma de ajudar o sujeito a se sentir melhor”, analisa Maria Julia. A opinião é compartilhada por Marielle, da Dynami, que não aponta as mídias sociais (e o “cancelamento”) como causa única de depressão e suicídio. “Unicamente não, mas em sobreposição à fragilidade de história familiar, falta de rede de apoio, sim. A atenção de pais, escola e amigos em observar mudanças comportamentais é importante. É uma rede de apoio fundamental. Na maioria dos casos, as pessoas adoecem aos poucos, apresentando sinais e sintomas observáveis antes de se estabelecer um quadro de depressão grave ou tentativa de suicídio”, avalia a psicóloga. 

Ainda segundo a OMS, cerca de 50% dos transtornos mentais na vida adulta começam antes dos 14 anos. “Os transtornos mentais na infância e na adolescência precisam ser olhados, tratados e cuidados, senão acabam persistindo na vida adulta, além de trazer um prejuízo enorme num período tão importante de desenvolvimento e amadurecimento”, alerta a médica Danielle. a psicóloga Marielle aponta que, primeiro, as gerações mais “velhas”, incluindo pais e professores, precisam compreender o cenário das mídias sociais, em geral mais cotidiano para os adolescentes. “Ouvir e aprender com os jovens já pode ser uma ferramenta de diálogo e aproximação. Os adultos responsáveis devem se encarregar de mediar o tempo de exposição às telas e se colocarem como parceiros no letramento e na escolha de conteúdo. Se o adolescente estiver sendo atacado e surgirem sintomas de ansiedade e depressão, profissionais de saúde devem ser procurados”, aconselha.

Lei criminaliza bullying e cyberbullying 

Em janeiro de 2024, foi sancionada a Lei 14.811/2024, que torna mais rígidas as penas para crimes cometidos contra crianças e adolescentes. Dentre as condutas, as práticas de bullying e cyberbullying passam a constar no Código Penal — que, agora, prevê multa e reclusão para os praticantes. O texto também transforma em crimes hediondos vários atos cometidos contra crianças e adolescentes, como a pornografia infantil, o sequestro e o incentivo à automutilação. Danielle avalia que a lei reforça a gravidade e a importância de se combaterem essas agressões, pois a prática afeta, com grandes proporções, a vida da vítima. “Alguém posta uma foto sua. Todo mundo vê, e aquilo nunca mais some. Enfim, a repercussão disso é quase infinita”, comenta. 

Na avaliação de Marielle, a lei representa um avanço da sociedade em impor limites às Big Techs, que, até então, respondem, mediante advogados, que não têm responsabilidade pelo conteúdo veiculado. “As leis ocuparem e regularem o campo da comunicação virtual é compreender que o que acontece na internet é o representante virtual da praça púbica. Nesse local, deve haver leis que garantam a liberdade e a segurança das pessoas”, salienta. “A lei é o primeiro passo para começar a impor limites em uma terra muito pouco explorada. Vai ter suas falhas, como qualquer outra, mas é um bom ponto de partida”, conclui Maria Julia, do Iamspe.


*Confira alguns locais para pedir ajuda:
– O Centro de Valorização da Vida (CVV), por meio do telefone 188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há também a opção de conversa por chat e e-mail e busca por postos de atendimento em todo o Brasil;
– Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também o chat Pode Falar;
– Em casos de emergência, a recomendação de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou para a Polícia Militar (telefone 190);
– Outra opção é ligar para o SAMU, pelo telefone 192;
– Na rede pública, é possível buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) 24h;- Veja também o Mapa da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento gratuito em todo o Brasil.

Moura Leite Netto Annima de Mattos
Moura Leite Netto Annima de Mattos