Ambiente inseguro

14 de junho de 2023

Da indústria do entretenimento para o mundo do trabalho, a ascensão do movimento Me Too, em 2017 — quando vieram a público denúncias contra Harvey Weinstein, produtor de Hollywood —, fez as vozes das mulheres contra o assédio sexual ganharem volume e repercussão.

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Desde então, centenas de brasileiras relataram casos envolvendo pesquisadores renomados de grandes universidades, mostrando que estudo e erudição não protegem contra comportamentos inapropriados.

Apesar de preocupantes, as crescentes denúncias públicas no meio universitário mostram que o assunto tem sido levado mais a sério nos últimos anos. Na Universidade de São Paulo (USP), a maior instituição pública de ensino do Brasil, as discussões sobre o tema começaram, oficialmente, em 2016, quando foi criado o USP Mulher, ou seja, antes da criação do Me Too. Em 2022, o escritório foi alçado à categoria de pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento, que lhe conferiu uma força política muito maior. “Como escritório, a gente fazia provocações, sistematizava dados, por exemplo. A pró-reitoria tem capacidade efetiva de mudança, porque pode atuar em questões normativas”, explica Ana Elisa Bechara, diretora de Gênero, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da Pró-Reitoria.

Dentre as ações propostas, está o estabelecimento de um protocolo de ação para evitar e combater o assédio, com deveres de cada ator, desde a guarda universitária até os diretores das faculdades. “Vamos estabelecer como tem de ser encaminhada cada situação. Com as diretrizes, você responsabiliza os tomadores de decisões, assim como torna o procedimento mais visível, confiável e seguro para as vítimas”, destaca Ana Elisa.

Um dos desafios, segundo ela, também professora da Faculdade de Direito na mesma instituição, é fazer com que todos saibam como agir. Uma denúncia pode chegar por diversas vias — seja por um professor, seja por um funcionário, seja por um grupo de estudantes. “Todas as portas têm de receber bem, saber como fazer uma escuta respeitosa, para que o processo de denúncia não seja outra violência”, recomenda. De acordo com a diretora, fazer perguntas demais, demandar da vítima quais consequências pretende que o agressor sofra ou fazer acareação são alguns dos erros involuntários que podem agravar ainda mais a situação.

Ter um bom protocolo pode, inclusive, fazer o número de denúncias crescer, porque muito da subnotificação se deve à insegurança das vítimas quanto ao que vai acontecer com elas ao longo do processo. A esperança, contudo, é que esse código sirva também para constranger os agressores, evitando, assim, que continuem a assediar. “Para os ofensores, o protocolo tem uma carga simbólica forte. Muitas vezes, o assédio vai crescendo no ambiente da universidade pela falta de uma resposta institucional”, afirma Ana Elisa.

A punição também “educa” pelo exemplo. Em dezembro de 2021, após dois anos de investigação, um professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) foi exonerado por “reiteradas práticas de assédio sexual e moral” contra alunas. Foi a primeira vez que houve registro de que um professor da USP tenha sido exonerado por assédio — outras exonerações de assediadores foram registradas de maneiras diferentes, como pelo genérico motivo de “procedimentos irregulares”. Uma parte da mudança cultural vem do lado das vítimas, que passaram a perceber mais claramente que sofreram violências. “Quando participei em processos administrativos no começo da minha carreira, a maioria afirmava que não tinha certeza se foi mesmo estuprada, ou porque estava bêbada, ou porque antes estava dançando com o agressor. Hoje, como sociedade, temos mais consciência de entender os limites de relações normais”, conta a professora.

Por serem funcionários concursados, uma possível exoneração costuma ser resultado de um processo longo. Ainda naquele mesmo ano, em um dos casos mais recentes no País, o diretor de um laboratório de paleontologia da UniRio foi denunciado por 37 mulheres por assédios que vinham acontecendo havia mais de dez anos. Ele foi afastado das atividades letivas pela instituição, mas, até agora, quase dois anos depois, o processo interno de apuração ainda não foi concluído. Em resposta ao escândalo, a universidade informou que fortaleceu a informação sobre os canais disponíveis para denúncias.

A academia, por ser um lugar seletivo e de busca pelo conhecimento, tem dificuldade em se ver como um ambiente onde ocorrem assédios, acredita Claudia Maria de Lima, presidente da Comissão Central de Acolhimento da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “As pessoas tendem a pensar que seja um lugar protegido de mazelas externas, mas não é.” No momento, há um processo administrativo investigando denúncias de alunas contra um professor da Unesp de Bauru. As denúncias foram feitas coletivamente por estudantes em meados de 2022.

Claudia destaca que as ações de combate ao assédio sexual nas universidades têm um peso extra, porque muitas vezes servem de farol para outros setores. Se dentro dela há assédio como no restante da sociedade, cabe a ela, também, o papel de promover transformações efetivas. “As nossas ações têm de ser desenhadas com base no conhecimento que já existe acerca do tema, com referências em estudos e pesquisas. O protocolo não saiu da minha cabeça”, explica ela, a respeito do documento que ordena o tema na Unesp.

Um dos pontos essenciais da política antiassédio da instituição é ser abrangente, alcançando toda a comunidade da universidade, incluindo professores, funcionários, estudantes e prestadores de serviço terceirizados. Não importa se o caso se deu dentro da faculdade, numa festa externa, nas redes sociais ou na casa de alguém: a instituição vai receber a denúncia e acolher a vítima. Com base na política antiassédio, outros tipos de violência também são tratados, como racismo e homofobia.

“Vamos ajudar as pessoas da nossa comunidade independentemente de onde aconteceu a violência. Se é uma questão de violência doméstica contra uma estudante em que o agressor não é da Unesp, vamos dar orientações jurídicas, encaminhar para os serviços locais, prestar atendimento psicológico, seguir o protocolo de saúde. Caso ela queira, podemos fazer a transferência da estudante para outro campus”, exemplifica a professora.

“Todas as portas têm de receber bem, saber como fazer uma escuta respeitosa, para que o processo de denúncia não seja outra violência.” Ana Elisa Bechara, diretora de Gênero, Relações Étnico-Raciais e Diversidades na Pró-Reitoria da Universidade de São Paulo (USP)

Respeito sempre

Como forma de prevenção, a Unesp aposta em políticas educativas que promovam a equidade e diversidade, elaboradas pela Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (Caadi).  “Uma sociedade mais diversa compreende a diversidade como um benefício, algo da própria natureza humana. Se é da nossa natureza, nós respeitamos — o respeito deve ser elemento central nas relações”, explica Claudia.

Não respeitar todos da mesma maneira pode ser algo tão sutil que, muitas vezes, passa despercebido, por estar enraizado em crenças antigas. “A violência começa de forma simbólica, com a visão de qual é o papel da mulher, de que ela deve ser dócil e submissa; não de uma líder, chefe de um laboratório”, diz a professora Ana Elisa, da USP.  Ela cita que uma pesquisadora que acompanhou as aulas da Faculdade de Direito mostrou, com dados empíricos, que as alunas eram sempre interrompidas ou alvo de piadas quando falavam em sala. “Pouco a pouco, elas eram silenciadas, deixavam de falar. Era uma violência quase curricular. Essa pesquisa foi uma revolução para professores e professoras. Não deixo mais uma mulher ser interrompida nas minhas aulas”, finaliza a presidente da comissão.  

Luciana Alvarez Maria Fernanda Gama
Luciana Alvarez Maria Fernanda Gama