País armado

26 de agosto de 2021

A política armamentista adotada pelo governo federal aumenta o número de revólveres, pistolas e até fuzis nas mãos de cidadãos comuns, deixa um arsenal ainda maior disponível às organizações criminosas e impacta no índice de mortes violentas. Por trás de tanta munição, a quem interessa um Brasil armado?

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Nos últimos dois anos, um verdadeiro caos normativo tomou conta do País no que diz respeito às políticas de controle de armas e munições. Em meio à pandemia de covid-19, em reunião ministerial realizada no dia 22 de abril de 2020, Bolsonaro foi enfático: “Eu quero que o povo se arme”. Hoje, o país tem 1,515 milhão de armar legais nas mãos de cidadãos. O levamento realizado pelo Instituto Igarapé, em parceria com o Sou da Paz, mostra que o número é 65% maior do que o acervo de dezembro de 2018, quando o registros apontavam 697 mil armamentos. “Este crescimento não tem precedentes, o único comparativo é o fim da década de 1990, quando a taxa de homicídios aumentou muito”, afirma Bruno Langeani, gerente do Sou da Paz. “Contudo, hoje, o aumento é acelerado graças à da flexibilização vinda da maior liderança do País.”

Segundo o estudo, o incremento mais significativo, de 72%, ocorreu nos registro da Polícia Federal (PF) em licenças concedidas a pessoas comuns. O número de armas de fogo passou de 346 mil, em 2018, para 595 mil, em 2020. Já em relação aos armamentos registrados pelo Exército, que compreendem o grupo de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), o crescimento foi de 58%, passando de 351 mil para 556 mil nesse período. “As armas comercializadas legalmente migram para o crime e alimentam a criminalidade de uma forma muito rápida”, afirma Isabel Figueiredo, diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública e secretária-adjunta de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF). “O argumento da defesa pessoal se mostra uma falácia por causa do fator surpresa e da falta de técnica do cidadão comum em situações de risco.”

No Brasil, sete em cada dez homicídios são cometidos com armas de fogo. O Atlas da Violência de 2020 mostrou que a política de controle sobre armas de fogo e munições impacta diretamente no crescimento médio anual de homicídios. Entre os anos 1980 e 2003, antes do Estatuto do Desarmamento, lei que dispõe sobre registro, posse e comercialização desses objetos, este número era de 5,9%. Com a aprovação da lei federal, em dezembro de 2003, o crescimento anual de assassinatos foi de 0,9% até 2018. A legislação proibiu o porte para civis, com exceção de algumas categorias profissionais, e a posse, o direito de se ter uma arma em casa ou no trabalho, passou a sofrer uma série de restrições. Em relação aos feminicídios, assassinatos de mulheres em função do gênero, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 registrou 649 vítimas no primeiro semestre do ano passado, um crescimento de 2% em relação ao mesmo período em 2019.

“As armas comercializadas legalmente migram para o crime e alimentam a criminalidade de uma forma muito rápida.” Isabel Figueiredo, diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública e secretária-adjunta de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF)

Decretos, insegurança e caos

Desde que Bolsonaro assumiu a presidência, em janeiro de 2019, foram publicados 14 decretos, 15 portarias, um projeto de lei e uma resolução da Câmara de Comércio Exterior do Ministério da Economia, que flexibilizam o acesso a armas e munições no Brasil. O conjunto de quatro decretos, que entrou em vigor no dia 13 de abril, teve 13 pontos suspensos por meio de uma decisão liminar de Rosa Weber, ministra do Supremo Tribunal Federal (STF). Com isso, não entrou em vigor a possibilidade de uma pessoa comprar até seis armas de fogo e, no caso de agentes de segurança, oito, além de porte simultâneo de até duas armas por cidadão, autorização para a prática de tiro recreativo sem necessidade de registro prévio do atirador, compra de munição por escolas de tiros sem limite de quantidade, validade de porte de armas para todo o território nacional, prática de tiro desportivo por adolescentes a partir dos 14 anos e fim do controle pelo comando do Exército sobre o acesso dos CACs a munições e acessórios para armas.

 Apesar disso, decretos anteriores estabeleceram novos limites para a quantidade de armamentos e munições permitida aos CACs. Até 2018, atiradores tinham acesso a quantidades diferentes de armas de acordo com seu grau de competição. O limite de, no máximo, 16 armas e 60 mil munições passou para 60 armas e até 180 mil munições por ano. “Esporte nenhum envolve esta quantidade de munições”, diz Felippe Angeli, gerente de Relações Institucionais do Sou da Paz. Não à toa, estes limites são um dos aspectos que mais preocupam os especialistas. Entidades de tiro e os próprios colecionadores, atiradores e caçadores podem ser usados pelo crime, já que se ampliou o limite de compra de armas, munições e recargas por pessoa e pelo clube. “Um único atirador pode comprar até 30 fuzis”, diz Langeani.

 Em relação ao cidadão comum, o tipo de arma liberado também foi alterado. Até 2019, os armamentos permitidos a civis eram revólveres e pistolas; hoje, qualquer pessoa pode portar instrumentos mais potentes do que aqueles destinados à polícia. Estas alterações interferem também no trabalho dos operadores de Justiça. “Quando um delegado vai fazer um flagrante, ele precisa saber se a arma é de uso permitido ou de uso restrito para, assim, determinar o tipo de crime e a pena”, afirma Langeani.

“Um único atirador pode comprar até 30 fuzis. O trabalho de recrutar ‘laranjas’ para intermediar as compras fica mais barato e fácil, permitindo até mesmo a montagem de fabriquetas de munições em casa.” Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz

A quem interessa mais armas em circulação?

A reposta à pergunta é uma das discussões que o sociólogo, ex-consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) e autor do livro Armas para quê?, Antônio Rangel Bandeira, um dos autores do Estatuto do Desarmamento, trava em sua publicação. Segundo ele, a liberação do acesso interessa particularmente a fabricantes, comerciantes e milícias. “Armas, antes em poder da polícia, passam a ser usadas por grupos milicianos”, diz. Facções criminosas também se beneficiam do caos normativo. O preço do fuzil no mercado ilícito era muito mais alto antes dos decretos em vigor, já que este tipo de armamento era pouco acessível no País. “Com a liberação para dezenas de milhares de potenciais compradores e a liberação da importação, as pessoas compram e recebem o fuzil em casa.”

 Para Angeli, é preciso analisar a polícia armamentista do governo sob outra perspectiva. “Bolsonaro inaugurou uma dimensão política que dialoga com a radicalização do debate.” Grupos civis armados, pondera Bandeira, têm o papel de provocar o caos e colaborar para a tomada do poder. “Não se trata apenas de salvar vidas, evitando homicídios por armas de fogo, mas de garantir a democracia.”

ESTA É UMA VERSÃO RESUMIDA DE REPORTAGEM ORIGINALMENTE PUBLICADA NA REVISTA PB #465. AS EDIÇÕES COMPLETAS ESTÃO DISPONÍVEIS NA BANCA DIGITAL GO READ.

Fabíola Perez Paula Seco
Fabíola Perez Paula Seco