Para onde vão os celulares roubados?

13 de maio de 2024

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Úrsula Oliveira* entrou para uma dessas estatística das quais ninguém quer fazer parte. Em fevereiro deste ano, enquanto esperava por um motorista de aplicativo nos arredores da Catedral da Sé, no centro de São Paulo, um rapaz surgiu de bicicleta e, antes que ela pudesse notá-lo, em um movimento rápido, tirou o smartphone da mão dela e sumiu em direção à praça em frente à igreja. “Fiquei apavorada. Menos pelo aparelho e mais por ele estar desbloqueado na hora”, conta. “Eu morria de medo de acontecer isso comigo. Sempre fui muito cuidadosa.” A tensão tinha motivo: a possibilidade de o ladrão, com o acesso facilitado, invadir contas bancárias e, no que ficou conhecido como “golpe do PIX”, transferir dinheiro para contas de laranjas. Ou, ainda, fazer compras com os cartões de crédito cadastrados no dispositivo.

Então, ocorreu um fato incomum. Do outro lado da rua, um homem viu o furto e foi socorrê-la. Evangélica, Úrsula contou a ele que o celular guardava arquivos importantes do templo que frequenta. Ela não contava que o desconhecido, que se apresentou como dono de um bar na região, sabia do lugar para onde os aparelhos furtados no centro de São Paulo costumam ir: um dos quarteirões da Rua Guaianases, paralela à Avenida Rio Branco, que faz a ligação entre a zona oeste e a região central da metrópole. “Ele disse que me ajudaria porque também era evangélico”, conta. “Então, começou a fazer umas ligações, mandar mensagens e, meia hora depois, me levou até um canto da Praça da República [também no centro de SP], onde outro rapaz de bicicleta já estava com o meu celular na mão. Ele só me devolveu e foi embora”, relembra.

“É difícil saber exatamente que era o destino desse aparelho, mas temos algumas pistas”, diz Antônio Gonçalves, advogado que dirigiu por dois anos a Comissão de Criminologia e Vitimologia da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP). “Um possível seria algum presídio, cuja demanda por celulares é alucinante e são vendidos a preços altíssimos. Outro seria um desmanche, tal como funcionam os de automóveis roubados. Ou, ainda, poderia ir para algum país da África”, continua.

Segundo o analista criminal Guaracy Mingardi, que foi secretário de Segurança Pública de Guarulhos, na Grande São Paulo, durante a década de 2000, trabalhou na Polícia Civil e, atualmente, é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a explosão nas ocorrências de roubos e furtos de celulares nas metrópoles brasileiras é o principal desafio do País no universo atual dos crimes patrimoniais. “E isso só está acontecendo porque existe todo um mercado ilegal em torno deles. O ladrão sabe até quanto vai ganhar por cada dispositivo. Desmantelar essas redes exige investigação, trabalho da Polícia Civil, que está praticamente em extinção”, afirma. 

Em 2023, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo, foram roubados 103,4 mil aparelhos apenas na capital paulista. O número só considera casos de roubos — ou seja, quando há uso de violência para subtrair qualquer objeto das vítimas. Isso significa que, em média, 283 celulares foram roubados todos os dias na maior cidade do País, no ano passado. O dado mais consolidado em termos nacionais é de 2022, presente no último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do FBSP: considerando roubos e furtos, foram 999,2 mil ocorrências em todo Brasil, alta de 16% em relação ao ano anterior. É como se, a cada hora, 114 aparelhos fossem subtraídos no País. “São dados que mostram, antes de tudo, como a demanda por celulares ou pelas peças é enorme”, diz Gonçalves. “Regulada pela lei de oferta e procura, vale dizer, só que em mercados ilícitos”, prossegue Mingardi.

Analistas do setor dizem que boa parte desses espaços de trocas econômicas ilegais são as penitenciárias. Primeiro, porque facções criminosas dependem de interações com detentos para manter as operações fora desses grupos — e o fazem, sobretudo, por meio dos celulares. Em segundo lugar, porque as restrições à circulação dos aparelhos nos presídios, embora tenham se enrijecido bastante nos últimos anos, ainda não são suficientes para evitar que esses objetos cheguem aos presos. O efeito disso, então, é, principalmente, encarecer o produto. “Um celular na prisão custa até R$ 80 mil”, conta Gonçalves. “É caro porque é difícil fazê-lo entrar lá. Tem de usar drone, pagar suborno a um agente ou tentar a sorte com uma visita. Ou, ainda, juntar todos esses métodos de uma vez. Tudo isso aumenta muito o custo do procedimento”, completa.

Nas pesquisas de Gonçalves — abordadas no livro PCC e facções criminosas (Revista dos Tribunais, 2020) —, ainda aparecem uma série de pequenas oficinas dedicadas a desmontar smartphones das marcas mais procuradas para revender partes, como telas ou placas, em mercados paralelos, que vão desde as mesmas penitenciárias (onde a demanda também é alta, já que é mais fácil entrar com uma pequena peça do que o celular inteiro) até feiras e mercados de rua no próprio centro de São Paulo.

Em março, uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou como uma quadrilha especializada em roubar e furtar dispositivos móveis na região movimentou cerca de R$ 10 milhões ao longo de quatro anos. As negociações aconteciam em pequenas bancas montadas na rua Guaianases, nas adjacências da região conhecida como cracolândia. Na investigação da Polícia Civil, boa parte desse dinheiro saiu de invasões dos bandidos às contas bancárias das vítimas, além de negócios ilegais feitos no exterior.  

Esse é, de acordo com Mingardi, outro dos destinos prováveis de um aparelho tirado à força de alguém no centro paulistano. Segundo ele, que também é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), o mercado funciona assim: quadrilhas especializadas roubam e furtam celulares em locais como a Praça da República e os levam a pontos especializados, como o da Guaianases, onde são revendidos a grupos, também especializados, mas em negociá-los em outros países, principalmente da África. “Assim como, nos anos 1990, os carros furtados em São Paulo tinham um destino inevitável, o Paraguai, o mercado ilícito de celulares também tem seus centros internacionais preferidos, que estão, principalmente, no continente africano”, explica o analista criminal. “Quando um celular chega à África, fica impossível rastreá-lo, porque os sistemas são diferentes. Ele pode ser bloqueado pelas empresas de telefonia brasileiras apenas no território nacional. A pessoa lá fora usa [o celular] sem dificuldades”, explica.

Gonçalves observa que esse tráfico tem se consolidado na rota de São Paulo para cidades da Angola, na África Central. “É porque a concentração de renda é muito grande lá. Os mais pobres só conseguem acessar um dispositivo desses nas lógicas do contrabando”, explica. Contudo, outros países também têm entrado no circuito, como Guiné-Bissau, Senegal e Nigéria. Em agosto passado, por exemplo, a polícia paulista prendeu um bissau-guineense, Amadou Diallo, acusado de ser um dos principais agentes desses fluxos ilícitos. No apartamento dele, na mesma Rua Guaianases, foram encontrados mais de 300 celulares, alguns deles, inclusive, já embalados para os envios. Pelas investigações, a esposa dele, Gnalen Sako, administrava uma lan house de fachada na mesma área, que servia apenas para concentrar os dispositivos roubados e organizar as remessas. Gnalen chegou a ser presa, mas foi solta em fevereiro deste ano. “Mas não é só na África: tem muita demanda interna também, administrada por brasileiros”, prossegue Mingardi.

Crime a céu aberto

De fato, delegados de seccionais do centro de São Paulo ouvidos pela PB, nas últimas semanas, em condição de anonimato, revelaram que há diversos pontos de revenda de smartphones a céu aberto nas ruas centrais da cidade. Nesses locais, é possível encontrar muitos aparelhos sem comprovação de origem ou nota fiscal — quando não com queixas de furto ou roubo abertas. Não é difícil encontrá-los: no começo de maio, a reportagem da PB encontrou diversos telefones seminovos sendo ofertados em uma feira instalada em uma calçada próxima à estação Belém, da Linha 1 — Vermelha, no Brás. Fontes ouvidas no local, sem saber que se tratava de uma reportagem, admitiram que “alguns” deles eram fruto de ocorrências criminosas. Um homem disse que os aparelhos tinham sido resgatados de uma apreensão policial. Associações de comerciantes da região chegaram a emitir alertas pedindo que a venda desse tipo de produto não aconteça, e a própria Polícia Militar já fez ações na região com esse intuito.

Há, ainda, uma terceira destinação comum dos smartphones roubados ou furtados: os desmanches. Segundo analistas, o processo é bastante semelhante aos dos automóveis. O aparelho subtraído é levado às pressas para uma oficina, onde uma equipe especializada retira as peças rapidamente, antes que seja detectado por algum sistema de rastreamento ou bloqueado. Foi o caso de Úrsula. “O homem que me ajudou disse que, se ele demorasse mais alguns minutos para encontrar a pessoa com quem conversou, o meu celular estaria dividido em pelo menos 50 partes”, relembra. 

Não à toa, em abril, a mesma Folha de S.Paulo publicou uma reportagem revelando que a Praça da República e o Autódromo de Interlagos, na zona sul, foram os pontos com mais roubos e furtos da cidade em 2023. O primeiro se explica pela alta concentração de pedestres e, ao mesmo tempo, pela proximidade com as oficinas que despacham os aparelhos. O segundo, por sua vez, é o local que recebe cada vez mais festivais musicais e grandes eventos. Gonçalves lembra que os destinos das peças são, principalmente, os presídios, “onde os detentos precisam fazer reparos nos aparelhos”, mas também um mercado próprio que alimenta toda uma cadeia de lojas pequenas e médias. “É muito difícil rastrear o que acontece com essas lojas, mas é certo que volta ao mercado de muitas formas. Às vezes legal, às vezes ilegal”, finaliza. 

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

Vinícius Mendes ANNIMA DE MATTOS
Vinícius Mendes ANNIMA DE MATTOS