A ciência sob suspeita

14 de julho de 2022

Há alguns anos, quando o alarme do aquecimento global soou sobre o mundo, uma breve passagem do psicólogo americano Leon Festinger irrompeu no debate público dos Estados Unidos. Parecia resumir, sobretudo, uma das perspectivas de um debate que separava alarmados e negacionistas. Diz que “um homem com uma convicção é um homem difícil de convencer” e, então, o define: “Diga a ele que você discorda e ele se afasta. Mostre a ele fatos ou figuras e ele questionará suas fontes. Apele à lógica e, mesmo assim, ele não enxergará seu ponto de vista”.

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Em meio à crise da covid-19, que está perto de matar 1 milhão de americanos, a conclusão de Festinger se tornou ainda mais lembrada no país – agora, para dar conta de uma multidão de descrentes no uso das máscaras, nas medidas de isolamento e, principalmente, na vacina contra a doença, assim como no Brasil. E, embora caiba bem aos contextos, pouca gente notou que esta conclusão não é nova: aparece, na verdade, em A Theory of Cognitive Dissonance, obra-prima de Festinger publicada em 1957, após quase uma década em que o autor passou estudando um pequeno grupo de Chicago que acreditava manter contatos frequentes com alienígenas.

A grande novidade, então, não são as afirmações do psicólogo, mas justamente as circunstâncias nas quais, tanto tempo depois, tais alegações ainda têm fôlego para explicar o presente. Ou melhor, como fazem uma pergunta sensível aos dias atuais: por que, mais de meia década depois, este homem inconvencível, mesmo quando colocado diante de evidências concretas, ainda persiste plantando descrenças em meio ao debate público? Ou, em suma: por que ainda há tanta desconfiança sobre o conhecimento objetivo produzido pela ciência e pelas instituições de pesquisa? As respostas variam.

Fronteiras

Paulo Nussenzveig, pró-reitor de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto de Física da mesma instituição, por exemplo, responde que as pesquisas foram ficando mais complexas e, por consequência, mais apartadas da sociedade, embora tenham atravessado este processo fornecendo explicações cada vez mais contundentes sobre a realidade. “Muitas pessoas se sentem assim agora porque não participam mais das discussões sobre os problemas gerais. São elas que passam a disseminar o discurso de que os especialistas são, na verdade, espécies de ‘pregadores’ que enganam a população”, observa.

Contudo, não é apenas isso. Para Nussenzveig, que tem uma coluna quinzenal sobre o assunto na Rádio USP, a resposta está mais nas dinâmicas dos cientistas do que nas da ciência, os quais tendem a legitimar os trabalhos dos seus colegas não pelos processos utilizados, mas apenas pelos resultados obtidos. Em outras palavras, valorizam-se as conclusões, e não os meios que lhes deram origem. “É por isso que, mais importante do que o resultado, a ciência deve observar com cuidado todas as diferenças inerentes ao processo de se produzir conhecimento”, argumenta o professor. “Quando a divulgação científica não faz esta ênfase corretamente, abre caminho para pseudociências e para fraudes dentro da própria ciência.”

Este desafio recai sobre profissionais como a neurocientista Mellanie Fontes-Dutra, que leciona na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e se notabilizou nas redes sociais como uma das divulgadoras mais relevantes de dados sobre a covid-19. Até meados de 2020, sua conta no Twitter tinha cerca de 2 mil seguidores – número que está perto dos 80 mil hoje. “A pandemia obrigou que os pesquisadores aparecessem mais na mídia e se esforçassem em explicar os fenômenos de formas mais compreensíveis para a população”, diz. A dificuldade, para ela, está em aliar a rigidez que a ciência necessita com uma comunicação mais clara que o público demanda. “Esta é a grande questão de qualquer divulgador científico.”

Mellanie interpreta que a desconfiança nas pesquisas científicas se explica, em grande medida, pela falta de conhecimento das pessoas a respeito de ciência. “Há uma distância entre os cientistas e a população. No geral, as pessoas não sabem o que eles fazem, como as pesquisas funcionam, como os métodos são empregados”, enumera a neurocientista. “Ao mesmo tempo que houve este afastamento, as práticas que oferecem retornos rápidos, explicações mais fáceis sobre o mundo, como pseudociências, foram encontrando espaço para se aproximarem.”

Negacionismo à espreita

Uma das cientistas mais conhecidas no Brasil em meio à pandemia de covid-19 é Natália Pasternak, microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência (ICQ), que aponta outro fator desta crise: ao contrário do começo do século passado, quando uma ciência ainda em formação nutria desconfianças pelos seus equívocos, hoje, ela é muito mais bem estruturada para ainda conviver com negacionistas. “De lá para cá, o aprendizado veio nas formas de construção do conhecimento e da sociedade. A realidade atual, porém, nos mostra que mantê-las vivas é frágil”, afirmou ela, em debate recente promovido pelo Nexo Jornal com a historiadora Lilia Schwarcz.

Na percepção da cientista, o fenômeno diz mais respeito ao que acontece das portas das universidades e dos laboratórios de pesquisa para fora. “É um negacionismo que vem embebido de outro: o social. Uma volta ao que tivemos de ruim do passado, e não ao que aprendemos dele.”

“Há uma distância entre os cientistas e a população. No geral, as pessoas não sabem o que eles fazem, como as pesquisas funcionam, como os métodos são empregados.” Mellanie Fontes-Dutra, neurocientista e professora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

O Brasil de hoje é um dos lugares onde há mais descrédito sobre o que os estudos científicos dizem. Em 2020, quando o Pew Research Center, um dos principais institutos de pesquisas do mundo, saiu por 20 países diferentes perguntando às pessoas o quanto elas confiavam nas afirmações fornecidas pelos seus cientistas, um terço dos brasileiros (36%) respondeu que não acreditava neles. Foi, de longe, o lugar que teve mais gente respondendo negativamente à questão, seguido pela Malásia (31%).

Por outro outro lado, 23% dos entrevistados no Brasil afirmaram confiar muito nos seus pesquisadores – mesma porcentagem de países como Japão e Polônia. Este número foi muito maior em países como Índia (59%), Austrália e Espanha (48%).

Essa realidade já era conhecida de estudos anteriores, como a que o Instituto Gallup fez ao lado do Wellcome Global Monitor, em 2018. À época, 23% dos brasileiros eram céticos quanto aos resultados da ciência. A média global desta percepção foi de 7%. No fim do ano passado, as duas instituições publicaram uma pesquisa semelhante mostrando como o mundo tem ido na contramão deste comportamento: de 2018 para cá, o número de pessoas ao redor do globo que dizem confiar plenamente na ciência cresceu de 34% para 43%.

Na avaliação de Nussenzveig, números como esses mostram uma relação complexa entre o contexto da pandemia e a ascensão do bolsonarismo. “A covid-19 exacerbou a exclusão das pessoas dos debates sobre os problemas gerais, mas ela veio após surgimento das fake news e do próprio negacionismo, que aconteceu a partir de 2016”, explica. “Já o bolsonarismo é um movimento aberto à ignorância. No seu bojo está a postura de apresentar soluções simples e equivocadas para problemas complexos. No entanto, este comportamento ganha força quando a identificação de grupo se torna mais importante do que as análises objetivas.”

A ÍNTEGRA DESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #470 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Vinícius Mendes Paula Seco
Vinícius Mendes Paula Seco