Para as centenas de mulheres que se envolvem com o tráfico de drogas no Brasil todos os anos, os expedientes do crime são uma forma de enfrentar as precariedades que as rodeiam. No dia a dia das biqueiras, porém, encaram uma divisão desigual de tarefas, são submetidas a mais riscos, a comandos masculinos e até hoje são tratadas como coadjuvantes no crime.
Ana Bianca, de 17 anos, conta eufórica a rotina em um ponto de comércio de drogas em São Paulo. “Eu gostava porque estava conquistando a minha casinha, sabe? Consegui alugar um cantinho pra mim. Depois comprei um terreninho lá na comunidade e levantei uma casa”, diz. A oportunidade de trabalhar no tráfico de drogas surgiu após a jovem decidir fugir de casa e deixar para trás todos os conflitos familiares que estava imersa.
Assim como ela, mais da metade das jovens que cumprem medidas socioeducativas de internação em São Paulo tiveram envolvimento com o tráfico de drogas. De acordo com dados da Fundação Casa, instituição vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo, até setembro do ano passado, foram registradas 746 internações – destas, 50,6% por inserção no tráfico, sendo 66,7% garotas pretas e pardas.
O dia a dia nas biqueiras é intenso: meninas exercem tarefas de elevado grau de responsabilidade, comandam funções exercidas por meninos, acumulam atividades que vão da limpeza do espaço físico ao gerenciamento dos locais. Além disso, respondem diretamente às ordens e regras determinadas por membros de organizações criminosas e se esforçam para alcançar posições de destaque na hierarquia das lojas. No entanto, os ambientes majoritariamente dominados por homens impõem as mesmas discriminações sofridas em outras esferas sociais, a ruptura precoce com a infância e uma maior frequência de abordagens policiais violentas.
Uma pesquisa realizada pelo Cebrap Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em 2018, apontou o tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho infantil. Segundo o estudo, há uma ambiguidade jurídica no Brasil: de um lado o ECA prevê a aplicação de medidas socioeducativas para adolescentes pegos pela polícia, de outro um decreto que regulamenta a Convenção 182 considera o envolvimento no tráfico uma das piores formas de trabalho.
A relação dos jovens com a droga começa, muitas vezes, dentro de casa a partir de relações familiares marcadas por conflitos. “Elas têm todos os direitos humanos negados, como saneamento, moradia, sofrem abusos sexuais e morais, inclusive, dentro da família. Se sentem excluídas da sociedade, como se ninguém se preocupasse com elas”, explica Andrea Broglia Mendes, presidente do Instituto Mundo Aflora, instituição que desenvolve trabalhos voluntários nas unidades socioeducativas de São Paulo.
Janaína, de 17 anos, lembra que, na Bahia, sofria maus tratos por parte do avô, que fazia uso abusivo do álcool. Ao chegar em São Paulo, aos 11 anos, foi estuprada por um vizinho e encontrou nas drogas uma forma de se esquecer da infância. Emily, de 17 anos, e Giuliana, de 21, conheceram as drogas dentro de casa. “Meu pai é do corre, né? Ele trafica, sempre traficou”, relata Emily. Já Giuliana cresceu com a mãe brigando para impedir que o pai trouxesse drogas para casa.
As meninas, em geral, consideram o tráfico como uma forma de trabalho. Os salários pagos a elas costumam variar conforme as regras estabelecidas em cada loja. Os valores vão de R$ 300 a R$ 1,5 mil por dia. Algumas chegam a receber pagamentos semanais de R$ 3,5 mil ou cerca de R$ 1 mil pelo transporte da droga em viagens. Os horários no trabalho ilícito também são variáveis. No dia a dia, elas conciliam o trabalho nas lojas, como são chamadas as biqueiras, com a vida pessoal. Mas, normalmente, abandonam a escola à medida que se envolvem com as atividades do tráfico. Além da busca financeira e por autonomia, o comércio ilícito de drogas é considerado uma forma de resistência a determinados contextos sociais e de enfrentamento das opressões de gênero impostas por familiares, abrigos ou instituições.
Milena, de 15 anos, se relacionava com mulheres enquanto trabalhava nas biqueiras. Para ela, não interessavam as posições hierárquicas, mas a possibilidade de estar em contato com o irmão e os amigos livre dos julgamentos sociais. David, jovem transgênero de 16 anos, que cumpriu medida socioeducativa de internação em uma unidade feminina, conta que trabalhar em uma biqueira foi um meio encontrado para resistir às normas e disciplinas impostas pela avó. “Ela me dava roupas de mulher e eu queria comprar roupas de homem”, conta.
Contudo, o trabalho no tráfico impõe sérios riscos às adolescentes. Meninos e meninas são obrigados a seguir estritamente as regras impostas pela maior organização criminosa do país, o PCC (Primeiro Comando da Capital) nos pontos de comércio de drogas. maioria das jovens conhece bem as regras da organização sobre os expedientes do tráfico. Uma das normas mais disseminadas é a proibição do uso de drogas no curso do trabalho. “A lei do Comando não permite”, diz Ana Bianca. O consumo por parte dos jovens pode atrapalhar o bom funcionamento da loja e até gerar prejuízo nas vendas.
Para garantir o cumprimento das regras, a facção criou os chamados “tribunais”, mecanismos para resolver conflitos e definir punições a infratores. Em busca do reconhecimento no crime, as jovens desempenham funções cada vez mais arriscadas. Elas transportam drogas, abastecem pontos de venda, vigiam “casas-bombas”, organizam esses espaços e cuidam do bem-estar dos colegas da biqueira. Esse acúmulo de tarefas as faz ficar muito visadas pela polícia. “As formas de abordagem são muito truculentas. É um sistema que traumatiza muito”, descreve Andrea.
Nesse momento, no ápice do corre, vem a queda – como se referem ao momento da prisão. A punição deixa inúmeras marcas nas jovens: do momento em que são detidas pela polícia à entrada nas unidades, o processo, segundo Andrea, representa um trauma. Ao chegar às unidades de internação, as meninas abandonam cultura, hábitos, personalidade e senso liderança. Tais características são rapidamente substituídas pela obediência a um conjunto de regramentos, dispositivos de disciplina e castigos.
Apesar de enfrentarem o abandono, julgamentos morais e uma série de represálias, ainda assim encontram formas de enfrentar o enclausuramento seja por meio de leituras, da escrita, da comunicação, das visitas ou até mesmo das memórias da infância. “Quando a gente escolhe o crime, a gente apanha da vida, porque querendo ou não, lá não tem pai e mãe pra falar ‘eu te perdoo’. A sociedade vai te olhar e falar ‘esse aí não presta’, mas na verdade eles não sabem o motivo da gente estar lá”, resume David.