A mídia precisa ser regulada?

29 de setembro de 2021

Em meio à onda de fake news nas redes sociais, o ex-presidente Lula manifestou o desejo de apresentar um projeto de regulamentação da mídia, caso retorne à presidência. A despeito de a proposta suscitar reações favoráveis e contrárias, há consenso que os atuais mecanismos legais não são aplicados como deviam.

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O fenômeno da enxurrada de fake news que inundam as redes sociais dos últimos tempos veio se somar ao já antigo excesso de violência dos programas policialescos na TV aberta ao período vespertino. Além disso, não há como ignorar as grades de programação dos canais abertos, ocupadas por pastores de igrejas neopentecostais, e a concentração de dezenas de emissoras de rádio e televisão nas mãos de poucos grupos econômicos. São problemas crônicos e estruturais no setor da comunicação no Brasil, apesar dos dispositivos legais existentes, como o Código Brasileiro de Telecomunicações (de 1962), o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e, em instância superior, a própria Constituição Federal de 1988, que versa expressamente sobre o papel das Comunicações no Capítulo V, artigos 220 ao 223.  Com vasta legislação disponível, há necessidade de se criar uma lei específica para regular a mídia?

No que depender da vontade do ex-presidente e pré-candidato à Presidência em 2022 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, sim. Ele declarou recentemente ser favorável à regulamentação da mídia. Sem entrar em detalhes, Lula repudiou o modelo de censura existente em Cuba e na China e destacou o sistema implantado no Reino Unido. Caso se concretize, não será a primeira tentativa. Em seu governo (2003-2010), foi apresentado um anteprojeto neste sentido, elaborado pelo então secretário de Comunicações, Franklin Martins, que nunca chegou a ser enviado ao Congresso. Desde então, a ideia estava adormecida no meio político.

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Gleise Hoffman, presidente do PT, sem citar Lula, encampou a proposta do pré-candidato em nome de se “democratizar o acesso à informação”. Gleise citou Reino Unido, França, Estados Unidos e Portugal como exemplos de uma regulamentação bem-sucedida. No texto, ela afirma que “emissoras e retransmissoras regionais são controladas, em boa parte por grupos políticos, burlando a Constituição”. O artigo, que não entra em propostas concretas, conclui que “liberdade, pluralidade e diversidade são inerentes à democracia”. Procurada pela PB, a assessoria nacional do PT não respondeu às questões enviadas. Segundo o assessor de imprensa do partido, Ricardo Amaral, um eventual novo projeto não terá como referência o texto do anteprojeto formulado no governo Lula, considerado obsoleto, em razão do avanço das mídias digitais.

Já para Vitor Blotta, professor doutor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e coordenador do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, da instituição, já existe legislação suficiente para tratar do tema, não havendo necessidade de se criar uma lei específica: basta, para tal, promover a convergências das normas vigentes para aplicação nos casos de infração. Na ótica do professor, o que deveria ser feito é uma atualização das legislações existentes e a regulamentação das normas específicas da Constituição, como é o caso da proibição de oligopólios, tratada no Artigo 220 no capítulo 3 §5. “A regulamentação existe apenas na TV paga e deveria ser aplicada, por analogia, na aberta e em emissoras de rádiofusão. Mesmo que sejam analisados pelo Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica], podem ser rebatidos pela falta de legislação.”

No caso do aluguel de horários das TVs abertas para igrejas, Blotta entende que há um flagrante desrespeito ao artigo 14 do Código de Telecomunicações, questão abordada em parecer do jurista Fabio Konder Comparato encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF), que joga para o Executivo e para o Congresso a decisão de não renovação da concessão de emissoras que desrespeitarem a legislação. “São casos escancarados de grilagem eletrônica já que são concessões públicas. A venda de horários é diferente da venda de publicidade.”

Para combater as fake news, o professor defende que seja por meio de uma modernização no Código Penal, na linha apontada por Ayres Brito, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que as definiu como “estelionato comunicacional”. “Caberia ainda aumentar a responsabilidade dos autores e da plataforma no Marco Civil da Internet, em especial no uso de identidades falsas quando da distribuição de mensagens em massa”, diz. “Estas possibilidades já estão previstas no Marco Civil, e não é preciso criar um novo dispositivo.”

Eugênio Bucci, também professor da ECA-USP e ex-presidente da Radiobrás (2003-2007), argumenta que a principal barreira é estabelecer normas para as redes sociais controladas pelas grandes corporações globais. “As grandes corporações digitais, como Google e Facebook, só poderão ser legalmente enfrentadas caso haja acordos multilaterais entre os países, a exemplo das ações globais sobre condições climáticas, e por meio de legislações nacionais alinhadas entre si.” Segundo Bucci, falta transparência das corporações quanto às informações sobre a cobrança para impulsionamento de dados e no uso de informações pessoais para uso de propaganda em aplicativos. “São práticas desleais, nas quais os usuários dos aplicativos de mensagens conversam com robôs e passam inadvertidamente seus dados para fins econômicos ou políticos”, afirma Bucci, que considera tanto o Marco Civil da Internet como a LGPD avanços importantes na defesa da transparência para a sociedade.

Lei das fake news

Já aprovado pelo Senado e atualmente em análise na Câmara dos Deputados, o projeto 2.630/2020, conhecido como “lei das fake news”, na opinião de Patricia Peck, sócia do Peck Advogados e Conselheira Titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD), pode ser uma “luz no fim do túnel”. “Em geral, a perspectiva que se apresenta é que o PL seja positivo. O PL é uma iniciativa concreta que visa a estabelecer alguns padrões de transparência na internet, especialmente para os provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada”, afirma especialista em Direito Digital.

Entretanto, a advogada alerta que ainda cabem alguns aperfeiçoamentos, que podem ser complementados por meio da convergência com o Marco Civil da Internet e a LGPD. “O artigo que trata sobre sanções é insuficiente, em razão de constar no texto que a penalidade de advertência ou multa é aplicada conforme a proporcionalidade. Na LGPD, há mais detalhamento para estes casos. Há ainda que aperfeiçoar o artigo que trata do risco do compartilhamento de dados em casos de violação do sigilo nos serviços de mensagens quando do pedido das informações dos contratos rescindidos às operadoras.”

Como funciona em outros países

Não há uma uniformidade na regulamentação da mídia nos países que contam com lei específica. Veja alguns casos a seguir.

Estados Unidos: regida pela Federal Communications Comission (FCC), a legislação se restringe a rádio, TVs abertas e a cabo, internet e telefonias móvel e fixa. O foco está no combate aos oligopólios, impedindo a propriedade cruzada (controle de uma estação de rádio ou TV na mesma cidade) e nos limites da quantidade de estações que um grupo pode controlar em uma região. A FCC só interfere em questões de conteúdo em casos de abuso, como cenas de sexo e violência. O órgão é fiscalizado pelo Congresso e pelo Judiciário. Já na mídia impressa, os conflitos envolvendo crimes de opinião são resolvidos pelo Judiciário.

Reino Unido: é considerada uma lei rigorosa, que impede a uma mesma empresa ter mais de 20% de concessão na TV e, ao mesmo tempo, possuir um jornal com mais de 20% de circulação na mesma área. O mesmo rigor se estende ao conteúdo, principalmente nos jornais sensacionalistas. Em 2011, o News of the World, que contava com tiragem diária de 2,8 milhões de exemplares, fechou após escândalo envolvendo grampos ilegais em suas reportagens.

Argentina: no país vizinho, a Ley de Medios foi promulgada pela ex-presidente Cristina Kirchner, após enfrentamento judicial com o grupo Clarín, o mais poderoso conglomerado local de mídia. Ao fim do processo, o Clarín foi obrigado a devolver parte das concessões de rádio e TV na Argentina. Hoje, as redes de televisão (aberta e a cabo) e emissoras de rádio não podem controlar mais de 35% dos mercados locais. O mesmo grupo não pode ter TV e rádio na mesma cidade.

Guilherme Meirelles Paula Seco
Guilherme Meirelles Paula Seco