As cidades do amanhã

31 de janeiro de 2023

Em novembro de 2022, a população mundial atingiu a marca de 8 bilhões de habitantes, segundo anunciou a Organização das Nações Unidas (ONU). Deste total, mais da metade (55,7 %) reside em áreas urbanas espalhadas por todo o planeta. Até 2050, a população fora do campo deve chegar a 68% do total da população.

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Isso significa que, pelos cálculos da ONU, em menos de 30 anos haverá cerca de 2,5 bilhões de pessoas a mais morando nas cidades em comparação aos números de hoje, em especial nas grandes metrópoles. “A urbanização pode ter um impacto positivo na qualidade de vida dos moradores, mas, para garantir estes resultados, as políticas de gestão do crescimento urbano precisam garantir o acesso à infraestrutura e aos serviços sociais para todos, com foco nas necessidades dos grupos vulneráveis”, escreveu a arquiteta Maria-Cristina Florian em artigo publicado no ArchDaily, um dos mais bem-conceituados portais do mundo na área de Arquitetura e Urbanismo.

Ao processo contínuo de urbanização, devem ser acrescentados os efeitos da pandemia, que provocaram uma série de transformações no modo de viver e potencializaram os desafios a serem enfrentados pelos gestores e pela própria sociedade, em especial nas áreas de Habitação, Educação, Serviço Social, Saúde e Mobilidade.

Para se ter uma ideia da dimensão dos problemas, estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgado em dezembro, aponta que a população de rua no Brasil atualmente é de 281,4 mil pessoas, com um aumento de 38% no período da pandemia (2019-2022). O número é equivalente à população inteira de uma cidade de médio porte, como Governador Valadares (MG) ou Barueri (SP).

Ao contrário do que se pode imaginar, a fuga em larga escala das grandes cidades nos estágios iniciais da crise sanitária para o campo ou municípios menores foi uma resposta de curto prazo e que não deve alterar o ritmo da globalização, segundo o relatório mais recente da ONU Habitat, divulgado em junho de 2022. “As cidades vieram para ficar, e o futuro da humanidade é, sem dúvida, urbano”, diz o relatório do órgão, destacando que os níveis de urbanização são desiguais: o crescimento é menor em países de alta renda e maior em continentes como Ásia e África.

Para a diretora-executiva da ONU-Habitat, Maimunah Mohd Sharif, este processo segue como uma megatendência para o século 21 – trazendo múltiplos desafios, que ficaram ainda mais expostos pela covid-19. No entanto, segundo Sharif, a doença também ofereceu a oportunidade para pôr em prática ações diferenciadas, a fim de tornar o futuro urbano mais inclusivo, verde, seguro e saudável.

Opinião semelhante é de Luiz Guilherme Rivera de Castro, professor de pós-graduação em urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Espaços abertos e parques, que já eram importantes antes da pandemia, tiveram sua importância muito ressaltada, assim como os acessos a habitação, infraestrutura e serviços urbanos. “As questões do bem viver e da saúde da população se colocaram no centro do debate sobre a cidade e a sociedade”, destaca Castro.

Segundo o professor, as mudanças no tecido urbano ainda estão em curso, por isso, é cedo para dizer o que será permanente no cenário pós-pandemia. “As variáveis são muitas, e as relações entre elas, complexas. O comércio de rua, por exemplo, não foi extinto pelo comércio eletrônico, mas passou por profundas mudanças que se combinaram com as vendas pela internet e por aplicativo que, sem nenhuma dúvida, cresceram”, afirma o professor.

Algumas mudanças aceleradas foram incorporadas pela população e por empresas. De acordo com especialistas, estas alterações devem continuar, mas em escalas e formas diferenciadas. A principal delas se refere ao trabalho híbrido e totalmente remoto. “O home office depende muito do ramo de atividade. De qualquer forma, este é um fenômeno que não pode ser ignorado no planejamento das cidades, mesmo porque impacta a arrecadação dos municípios e o custeio dos serviços públicos”, opina José Auricchio Júnior, prefeito de São Bernardo do Campo (SP).

RECONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO

O setor de serviços, que historicamente funcionou em escritórios e edifícios corporativos, sofreu fortes mudanças e adaptações nos últimos três anos. Neste sentido, ao repensar os espaços em prédios de escritórios, as construtoras conseguem manter a demanda por locações e vendas aquecida nas principais capitais. Segundo empresários da construção civil, há menos empresas procurando instalações físicas, muito em razão da pandemia e do trabalho híbrido. Por outro lado, para acomodar os empregados presenciais, foi verificada uma exigência maior na qualidade dessas instalações físicas.

“As empresas estão renovando as instalações e procurando espaços maiores e mais arejados. Isso acaba provocando uma ocupação de metros quadrados igual ou até superior ao que era ocupado no pré-pandemia”, comenta Marcelo Guedes, vice-presidente de operações da Melnick, uma das maiores construtoras e incorporadoras do Estado do Rio Grande do Sul.

No caso das residências, as mudanças também ocorreram: as pessoas dão cada vez mais preferência a espaços maiores, com quintais ou varandas e, quando possível, em contato com a natureza. Pesquisa realizada pela plataforma de imóveis QuintoAndar, em junho de 2021, mostra que estar mais próximo do trabalho deixou de ser prioridade na hora de mudar de residência, perdendo para fatores como tamanho do imóvel, economia de custos e tranquilidade. O estudo também mostrou que, entre o grupo de pessoas que planejavam mudar de uma grande cidade para o interior ou litoral (16% do total), o fato de trabalhar em sistema remoto foi preponderante para o êxodo.

Levantamento feito pela Loft, outra plataforma de venda e locação online, aponta resultados semelhantes. A maior parte das pessoas que mudaram de casa durante a crise sanitária ficou na mesma cidade de origem, e era constante a busca por ambientes maiores. “Há famílias que passaram a estudar, trabalhar e ter momentos de lazer dentro de casa e, por isso, começaram a prestar mais atenção a esta questão. São pessoas que decidiram procurar moradias com cômodos maiores e mais bem divididos, para que fosse mais fácil separar os momentos de trabalho e lazer”, explica Fábio Takahashi, gerente de Dados e Conteúdo da Loft.

DISPERSÃO URBANA

Na opinião de Guedes, da construtora Melnick, a migração para interior e litoral será maior, de agora em diante, entre as pessoas que desejam uma segunda residência, mas que devem continuar morando nas metrópoles. A diferença será no uso, já que estas moradias complementares não devem ser ocupadas apenas nos momentos de lazer e descanso das famílias proprietárias: “A relação entre custo e benefício destes imóveis no campo ou na praia será maior, por causa do trabalho híbrido”.

Estas transformações devem acentuar o movimento das pessoas que moram em uma cidade e trabalham em outra. “Todas estas mudanças e inovações tecnológicas alteram a urbanização e podem ampliar a dispersão urbana”, explica Nestor Goulart Reis, professor emérito na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). A dispersão urbana, explica Reis, é uma urbanização dispersa em que várias regiões metropolitanas formam um conjunto integrado no qual a população transita de um lugar ao outro, a estudo ou a trabalho.

No Estado de São Paulo, este conjunto é formado pelas áreas metropolitanas da capital, de Campinas, da Baixada Santista e do Vale do Paraíba, formando uma aglomeração de mais de 25 milhões de habitantes. Ao contrário da conurbação, em que as cidades são ligadas fisicamente, a dispersão é formada pelas cidades com diversas áreas rurais entre elas, com parte ocupadas por condomínios residenciais ou mesmo empresariais. Assim, uma pessoa pode trabalhar em São Paulo e morar em um condomínio fechado em uma cidade próxima, como Jundiaí.

Tal dinâmica provoca impacto em diversos setores, como o de transporte rodoviário, mobilidade e logística. Dados da ClickBus, plataforma de vendas de passagens de ônibus rodoviários, mostra que houve crescimento no interesse pelo interior do País. Em 2019, as vendas de bilhetes para cidades do interior representavam 23% das passagens emitidas. Hoje, mais de 40% das pessoas que compram pela empresa têm o interior como destino.

“O modelo híbrido de trabalho, que vem sendo adotado por grande parte dos negócios possibilita que as pessoas não tenham de morar na cidade onde está a sua empregadora. Sem a necessidade de ir ao escritório o tempo todo, o transporte por ônibus se torna uma opção mais econômica e confortável para o trajeto”, diz Phillip Klien, CEO da ClickBus.

“A urbanização pode ter um impacto positivo na qualidade de vida dos moradores, mas, para garantir estes resultados, as políticas de gestão do crescimento urbano precisam garantir o acesso à infraestrutura e aos serviços sociais para todos, com foco nas necessidades dos grupos vulneráveis.” Maria-Cristina Florian, arquiteta

LONGEVIDADE

O crescimento populacional acompanha outro fator: o envelhecimento da população. Apesar da Organização Mundial da Saúde (OMS) discutir o tema desde o começo dos anos 2000, especialistas e gestores afirmam que pouco está sendo feito. “O envelhecimento na cidade ainda é um tema pouco tratado nos municípios e só agora começa a ser estudado no urbanismo”, observa Castro, do Mackenzie, apontando exceções importantes, mas ainda pontuais, em Estados como São Paulo.

Uma destas cidades é São Caetano do Sul, que desenvolve programas destinados à população de terceira idade, como o Centro Integrado de Saúde e Educação (Cise) e a Universidade Aberta da Terceira Idade (UniMais). “Infelizmente, esta é uma realidade distante na maior parte do País”, ressalta Auricchio – lembrando que, segundo o IBGE, um em cada quatro brasileiros terá mais de 65 anos, em 2060. “Nossa população está envelhecendo, vivendo mais, e há uma carência enorme de políticas públicas nacionais neste sentido”, completa o prefeito de São Bernardo.

Marcus Lopes Débora Faria
Marcus Lopes Débora Faria