Cidadania postal

03 de abril de 2023

A dimensão sobre o potencial de aceleração do e-commerce já chega a prever entregas em 15 minutos. Contudo, ainda hoje, há lugares aos quais cartas e encomendas simplesmente não chegam. Milhões de brasileiros moram em zonas rurais de difícil acesso, pontos sem endereço oficial ou regiões percebidas como “de risco” graças à violência, por isso, acabam excluídos dos serviços de entrega de correspondências e pacotes.

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A falta de um endereço reconhecido afeta profundamente a vida da população, problema este que vai além da impossibilidade de receber uma compra feita pela internet. “Para você pedir um emprego ou fazer matrícula numa instituição de ensino, é preciso de um CEP. E, sim, num mundo capitalista, para ter acesso a compras e serviços, também”, afirma Eduardo de Rezende Francisco, chefe do Departamento de Tecnologia e Data Science da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

Seja na periferia da metrópole, seja no interior pouco povoado, são comunidades que se tornam, de certa forma, invisíveis. “Não é um assunto que desperte grande interesse. A sociedade, as empresas e os gestores públicos não têm muita consciência dos problemas que isso causa”, explica Francisco. Enquanto nada é feito, as pessoas vão dando seus “jeitinhos” para contornar o problema. “Muitas vezes, essas pessoas usam endereços de familiares”, ilustra.

Segundo ele, mudar este cenário é, antes de tudo, um desafio cultural – porque, felizmente, know-how o Brasil possui de sobra. “Contamos com uma tradição logística muito positiva. A lógica dos CEPs, criada pelos Correios há tanto tempo, persiste até hoje, e todo mundo confia. Outro exemplo é a coleta de informações censitárias [tipo de levantamento que obtém dados de todas as pessoas de um grupo], que conta com uma granularidade que é uma das melhores do mundo, com 4 mil variáveis por setor censitário [unidade territorial]”, explica o professor da FGV.

A inclusão postal pode, inclusive, render lucros para as empresas – e quando se trata de chegar mesmo a endereços não oficiais, já há tecnologias em uso que resolveriam. “A localização geográfica é disponível no celular o tempo todo, tanto pelo sistema operacional do aparelho, porque tem o GPS, como pela rede da operadora de celular. Um e-commerce, em vez de pedir um endereço, poderia pedir um ponto no mapa. O caminho do Waze e dos aplicativos de transporte de passageiros já fazem isso”, fundamenta Francisco.

Nem tudo seria resolvido pela geolocalização, porque há endereços onde, mesmo assim, o risco de violência afasta os serviços de entrega. Os Correios não informam quantos logradouros estão fora do alcance por motivos de falta de segurança, mas, em 2017, um levantamento independente apontava milhares de CEPs nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo. São áreas que recebem correspondência, mas não pacotes. Na cidade de São Paulo, ficam sem receber encomendas sobretudo moradores de Vila Jacuí, Lajeado e Itaquera. Neste caso, os destinatários precisam ir até uma agência para retirar as mercadorias.

Tamanha exclusão é assinalada apenas por estimativas. Ainda que o Brasil concentre populações em territórios rurais remotos, sabe-se que boa parte da falta de alcance postal afeta residentes dos grandes centros urbanos. Em todo o País, há mais de 17 milhões de pessoas nas favelas. Metade deste contingente já compra online, mas uma pesquisa recente do instituto de pesquisa Data Favela mostra que 39% reclamam que não conseguem receber os pedidos.

PALIATIVOS

Algumas iniciativas vêm tentando mitigar o problema. Os Correios, por exemplo, apostam na instalação de lockers – compartimentos com tranca, cuja localização é escolhida pela empresa, para que os produtos sejam depositados e os clientes possam retirá-los. “Os terminais inteligentes para recebimento de encomendas são instalados em lugares estratégicos de grande circulação de pessoas, como shoppings, estações de metrô, rodoviárias, entre outros, a fim de facilitar o acesso de quem precisa utilizá-los”, explicam os Correios, em nota à reportagem. Até o momento, estão em operação 85 pontos nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás, além do Distrito Federal – e é possível consultar no site buscacepinter.correios.com.br onde eles se encontram. Até o fim do ano, a previsão é de serem instalados mais 150.

Segundo a empresa, trata-se de “uma solução de entrega para todos que necessitem receber as encomendas fora de casa, inclusive moradores que residam em áreas com entrega diferenciada”. Para correspondências, os Correios já dispõem de um sistema logístico de Caixas Postais Comunitárias (CPC), instaladas em condomínios residenciais e espaços coletivos. Em geral, é feita uma parceria com associação de moradores locais, que se encarrega da limpeza e da manutenção. É uma alternativa tanto para povoados em zonas afastadas como para áreas urbanas sem CEP.

INICIATIVA PRÓPRIA

Além dos Correios, os serviços de entrega das maiores empresas de e-commerce buscam parcerias para chegar a mais gente. A Favela Brasil Xpress, startup que nasceu em Paraisópolis, São Paulo, leva encomendas de centros de distribuição locais até a casa das pessoas. “A classe média local consumia, mas o produto não chegava: ou o site do e-commerce já bloqueava, ou entregador tinha medo de chegar”, conta Giva Pereira, CEO e fundador da empresa.

Boa parte da falta de alcance postal afeta residentes dos grandes centros urbanos. Em todo o País, há mais de 17 milhões de pessoas nas favelas. Metade deste contingente já compra online, mas uma pesquisa recente do instituto de pesquisa Data Favela mostra que 39% reclamam que não conseguem receber os pedidos.

O negócio começou como um voluntariado, em setembro de 2020. Durante o período de isolamento social, Pereira organizou uma rede solidária para distribuir doações de alimentos. “A cada 50 casas, a gente encontrava um voluntário, batizado de ‘presidente da rua’”, lembra. Com a comunidade toda dividida em pequenos blocos por participantes que conhecem bem a região, foi fácil migrar este conhecimento adquirido para um negócio de entregas.

“Nossa parceria comercial é com o marketplace; e ele já paga a taxa do frete. Trabalhamos com entregas de até 3 quilos, mas já apareceu um tanquinho aqui – e nós o entregamos”, conta o empreendedor, de 22 anos. Acordos firmados incluem Via Varejo, Magazine Luiza, Americanas, entre outras lojas. No início, entregavam 300 pacotes em Paraisópolis diariamente. Atualmente, são 4 mil. A Favela Xpress também se expandiu geograficamente e faz entregas em comunidades em Minas Gerais e no Distrito Federal.

O crescimento também passa pela tecnologia. Em uma parceria com o Google, mapearam 70% de Paraisópolis, atribuindo a cada localidade um código alfanumérico, com base na latitude e na longitude do ponto. Esta identificação pode passar a ser usada nos sites dos marketplaces para mostrar onde tem a entrega deve ser feita. Entretanto, de tudo isso, emociona-se Pereira, o mais importante é ver a satisfação dos seus vizinhos ao se sentirem parte da sociedade em que vivem: “O retorno que tenho é que este serviço trouxe alegria para cá. A gente entrega esperança”, afirma.

Luciana Alvarez Maria Fernanda Gama
Luciana Alvarez Maria Fernanda Gama