Cidades em gentrificação

15 de setembro de 2023

As cidades de hoje surgiram como vilarejos em algum ponto longínquo da história. Esses vilarejos foram crescendo ao longo do tempo, e a convivência com grupos cada vez mais diversos de pessoas acabaram dando origem às grandes metrópoles que encontramos atualmente em todo o globo.

E

Esses espaços cosmopolitas, contudo, começam a ser palco de pressões para que certos grupos sejam excluídos de seus meios de convívio. O fenômeno passou a ser chamado de “processo de gentrificação” (do inglês gentrification; de gentry, termo que identifica a classe de pessoas abastadas de origem nobre).

O tema foi abordado em reportagem da edição 439 da Problemas Brasileiros e sua publicação no site da revista faz parte das ações em comemoração aos 60 anos da PB.

A gentrificação está presente em praticamente todos os cantos do mundo, mas ocorre de forma arrebatadora em locais onde a desigualdade social é mais intensa. Em São Paulo, essa elitização da cidade vem se intensificando nos últimos anos em suas regiões mais centrais, como observa o arquiteto e engenheiro Gilberto de Carvalho. Ele conta que ainda estudante começou a acompanhar o crescimento da metrópole movido pelo gosto de caminhar. Quando percebeu que a capital paulista poderia melhorar, passou a participar dos debates em torno do Plano Diretor de São Paulo desde a sua primeira versão, em 1972. Hoje, ele ocupa uma cadeira no Conselho Temático da Câmara Municipal de Transporte e Trânsito e é um militante de bandeiras urbanas.

Ordem no caos

Até os anos de 1970, o crescimento de São Paulo era caótico, gerando problemas a seus moradores. Em um ponto eram construídas casas; mais adiante, estabelecimentos comerciais e fábricas ao redor. A única regra era a do Código de Obras, que impunha padrões para as edificações, mas não havia qualquer planejamento urbanístico. Fábricas poluentes funcionavam ao lado de residências, escolas ficavam longe e a vida urbana era muito difícil.

 Embora naquela época os paulistanos tivessem orgulho de uma cidade que “não para de crescer” (o slogan que então a definia), o prefeito Figueiredo Ferraz (1971-1973), deu um alerta: “São Paulo precisa parar”, senão será o caos. Por isso, elaborou o primeiro Plano Diretor da cidade, de 1972, que, por exemplo, delimitava áreas que deveriam ser restritas a usos residencial, comercial, industrial e mistas, entre outras medidas de planejamento urbano. O plano foi revisado em 1986, 2002 e 2014.

A obrigatoriedade de elaboração de um Plano Diretor para todo município brasileiro com mais de 20 mil habitantes advém do Estatuto das Cidades, uma lei federal de 2001. Sua função é a de disciplinar o desenvolvimento urbano e estabelecer diretrizes para o seu planejamento. Esse plano deve ser revisado a cada decênio. E é aí que atores urbanos conflitantes entram em jogo.

Interesses em colisão

“O debate para a elaboração do atual Plano Diretor de São Paulo foi alvo de vários movimentos de pressão”, revela Carvalho. “Como o plano vai influir na Lei de Ocupação e Uso do Solo e no Código de Obras da cidade, há grandes interesses de grupos imobiliários”, afirma. Ele observa que quando um prefeito não quer, “empurra o projeto com a barriga” e o deixa emperrado. Por isso, segundo o arquiteto, a revisão ficou travada durante as gestões Serra e Kassab e só começou a avançar na gestão Haddad.

Para ele, o novo plano trouxe avanços em termos sociais. Mas essas melhorias só serão perceptíveis daqui a duas décadas porque às vésperas da mudança de regras foi aprovado um número recorde de empreendimentos imobiliários na cidade. Esses projetos são estocados pelas grandes incorporadoras, que os colocam em andamento quando lhes convêm.

O arquiteto observa que nas últimas décadas, o desenvolvimento de São Paulo é regido pela outorga onerosa do direito de construir. Esse dispositivo permite ao construtor ultrapassar os parâmetros urbanísticos para edificações desde que ofereça uma contrapartida financeira, que deve ser destinada a um fundo da prefeitura para a implantação de projetos urbanos. Na prática, significa que é possível comprar uma licença para ultrapassar os limites estabelecidos pela lei para a construção.

Hoje, o foco desses empreendimentos está se concentrando na região da Barra Funda e adjacências – desde Perdizes até a Marginal Tietê, e em direção ao centro, passando por Campos Elísios até a região da cracolândia. É uma área de uso misto onde se encontram inúmeros galpões de indústrias que ali funcionavam há quase um século e casinhas simples, com 50 ou 60 anos de idade. Essa região tem uma localização relativamente central e já começa a receber grandes torres residenciais ou condomínios fechados. Um exemplo é o empreendimento Jardim das Perdizes, afirma Carvalho, um conjunto de torres residenciais e de escritórios que deve atrair um fluxo de 40 mil a 50 mil pessoas diariamente ao local.

Espaços cosmopolitas começam a ser palco de pressões para que certos grupos sociais sejam excluídos de seus meios de convívio, fenômeno chamado de “gentrificação”

Expulsão dos moradores

Carvalho opina que os antigos moradores da Barra Funda estão praticamente sendo expulsos da região em razão de um grande empreendimento que visa a atender aos interesses particulares. O projeto, feito com a participação do Estado e da prefeitura em regime de parceria público-privada (PPP), pedia propostas para uma ocupação ordenada do local. O problema maior, na avaliação do arquiteto, é que esses “espigões verticais”, ao contrário do que acontece em metrópoles europeias, não dispõem de mecanismos de reserva social para habitação da população de baixa renda.

“O Estado demarcou a região como de interesse público e lançou edital para que as empresas apresentassem projetos para a área,” explica. Com a pressão dos moradores, que questionaram a quantidade de imóveis desocupados na área (as áreas para PPP deveriam ser de baixa densidade populacional), o governo voltou atrás. Depois tentou novamente, apenas mudando um pouco o perímetro da área a ser desapropriada, e mais uma vez recuou diante das manifestações contrárias.

Mas antes mesmo da publicação dos editais, os moradores foram surpreendidos com o “ataque” implacável de corretores das incorporadoras que lhes incutiam o terror de ter suas casas desapropriadas. Dessa forma, as empresas compraram vários imóveis na região, a preço de banana, em áreas até então desvalorizadas.

Essas empresas mantêm os terrenos sem uso enquanto lhes convém, até o momento de investir. Frequentemente, as incorporadoras nem sequer pagam o imposto por essas propriedades em estoque. Aguardam a intervenção do Poder Público, que constrói estações de metrô, praças e outros equipamentos urbanos, para que a região volte a se valorizar. Então, os terrenos têm seus impostos pagos e toda a situação é regularizada para permitir empreendimentos de peso, explica Carvalho.

Ele revela que hoje boa parte da região da cracolândia é propriedade da corretora Porto Seguro, que tem um grande estoque de terrenos por lá. A grande briga para o avanço dessas empresas na próxima década, avalia, deverá ser a área dos Campos Elíseos, que entrou em processo de degradação com a mudança da sede do governo do Estado para o Palácio dos Bandeirantes, em meados da década de 1960.

Cidadania em risco

A gentrificação é gerada pela substituição de antigas estruturas urbanas por outras novas e mais modernas, explica o urbanista e professor de arquitetura Lessandro Lessa Rodrigues, que já atuou no planejamento urbano dos municípios de Itaúna, Betim e Belo Horizonte, em Minas Gerais. As novas propriedades agregam valor para venda e locação de imóveis e acabam por expulsar os antigos moradores e usuários do local. Assim, a população original da área, que poderia usufruir das melhorias levadas aos locais onde trabalha, empreende e mora, vê-se forçada pela dinâmica do mercado imobiliário a ocupar áreas ainda não valorizadas.

“Este processo é comum às diversas cidades brasileiras, mas é mais intenso em localidades onde a dinâmica imobiliária é maior”, destaca Rodrigues. Ele observa que, embora pareça um avanço em termos urbanos, na verdade significa um retrocesso, pois o conceito de cidadania incorpora o direito de viver com dignidade e participar da vida das cidades. “Ao serem forçados a abandonar os locais que tiveram melhorias em decorrência do avanço do mercado imobiliário, os moradores originais, de certa forma, experimentam perda de cidadania”, afirma. Isso ocorre também em áreas pobres brasileiras, como vilas e favelas, onde “os mais pobres são substituídos pelos menos pobres em uma triste realidade”.

O arquiteto aponta que a gentrificação acaba sendo ativada com a realização de eventos. Como exemplo, cita a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Ambos exigiram investimentos consideráveis em mobilidade urbana, o que acabou por valorizar as áreas que os receberam. “Em breve poderemos ver quais os desdobramentos desse processo para a população originalmente moradora das áreas beneficiadas pelas obras”, prevê.

Contudo, ressalta Lessa Rodrigues, “as cidades nada mais são que o reflexo da sociedade que as constrói”. Talvez por isso que os condomínios fechados, ilhas que excluem da convivência gente economicamente diferenciada de seus moradores, sejam tão comuns no País.

Substituição de antigas estruturas urbanas por outras mais modernas incita moradores, que poderiam usufruir das melhorias levadas aos locais de trabalho e moradia, a ocupar áreas ainda não valorizadas

Condomínios fechados

Os condomínios fechados surgiram como um novo produto imobiliário com diferenciais para atrair classes de maior poder aquisitivo. Um dos pioneiros foi o Ilhas do Sul, um conjunto de prédios no Alto da Lapa, em São Paulo, lançado na década de 1970, que vendia um novo conceito de moradia, com equipamentos de lazer (como piscinas e espaços de convivência) e estrutura de serviços, como segurança (portaria e vigilância). Os imóveis encalharam na época e quase levaram a Construtora Albuquerque Takaoka à falência, mas a empresa foi salva por um novo empreendimento: Alphaville.

Modelo criado para praticamente funcionar como uma cidade com administração privada, Alphaville cresceu, assim como o seu conceito. A partir da década de 1990, condomínios fechados se espalharam por todo o País e mesmo ultrapassaram fronteiras, chegando à Argentina e ao Chile. Hoje é comum encontrá-los em países com grande concentração de renda, como os da América Latina e da África.

“Era um novo produto oferecido pelo mercado imobiliário que vendia a ideia de se viver entre iguais”, explica a urbanista Jupira Gomes Mendonça, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Entretanto, segundo ela, trata-se de loteamentos fechados, e não condomínios, pois eles não têm área condominial, coletiva. Para ela, o que está em jogo é o próprio conceito de cidade, uma vez que a urbe é um espaço de convivência plural e os condomínios se fecham para essa experiência.

 A regulamentação dos condomínios fechados é complicada. Há casos de empreendimentos que fecharam áreas imensas, obrigando pessoas a aumentar seu trajeto diário e contornar os muros condominiais para chegar a seu destino; ou que se apropriam de praças públicas, incluindo-as dentro de seus limites. Jupira observa que alguns municípios resolveram exigir que áreas públicas de lazer sejam construídas fora dos muros dos condomínios, e que estes se responsabilizem por sua manutenção.

Para a arquiteta, os condomínios fechados reproduzem o modelo de exclusão existente na sociedade, na qual se isola uma área para impedir a convivência com os diferentes. Ela cita o exemplo de um grande empreendimento em Belo Horizonte batizado como Reserva Real, com mansões de altíssimo padrão, cada uma com um hangar particular, dispostas ao redor de uma pista de pouso. O local tem uma escola em seu interior e até mesmo uma área de habitação, bem afastada da área social, para os empregados das mansões. Um belo exemplo do modelo de casa grande e senzala.

Silvia Kochen Débora Faria
Silvia Kochen Débora Faria