O resgate do cavalo Caramelo, na última quinta-feira (9), é a cena simbólica mais recente do drama vivido pelos gaúchos há mais de uma semana. Avisos não faltaram. No fim de abril, a Metsul Meteorologia alertou: “Volumes de chuvas excessivos são esperados no Sul do Brasil em condição de perigo parecida com as da enchente do ano passado”. As precipitações intensas que atingem a região provocaram inundações recordes nas bacias dos rios Caí e Taquari e alagaram 425 cidades — cerca de 85% dos municípios do Estado. Os rios desaguam no Guaíba, que tem em sua margem a capital Porto Alegre, tomada, agora, pela água. Por ora, 107 pessoas morreram, 136 estão desaparecidas e mais de 370 ficaram feridas em todo o Rio Grande do Sul. Quase 1,5 milhão de pessoas foram afetadas de alguma forma pelas inundações. Em menos de um ano, os gaúchos passaram quatro vezes por eventos climáticos extremos, e o caos recente traz a pergunta: por que as cidades não se prepararam para as mudanças climáticas?
Segundo José Marengo, coordenador-geral do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o órgão emitiu vários alertas sobre desastres hidrológicos e geológicos. “Aconteceu o pior cenário que poderia acontecer. As comportas (de contenção do Rio Guaíba) se romperam, as bombas de escoamento não estão funcionando. Nada funcionou quando deveria funcionar”, relata. “Isso estava previsto, não nesta proporção, mas era esperado um volume grande de chuva, com alerta de risco de desastres hidrológicos em todo o Rio Grande do Sul.”
A metereologia aponta para uma combinação de fatores. O El Niño — fenômeno que aquece acima da média o oceano, elevando a temperatura e alterando o regime de chuvas — ainda se faz presente no Centro-Oeste, no Sudeste e no norte do Paraná. Enquanto isso, no Sul, uma massa de ar frio chegou e estacionou. A massa quente do Sudeste impede a circulação e a evasão da massa de ar frio, represando, ali, um volume de chuvas que, em condições normais, teria subido no mapa e desaguado de forma mais equilibrada até o centro do Brasil. “Existem mudanças na circulação atmosférica que fazem com que as frente frias vindas do Sul se propaguem mais para o Sudeste. Só que, nessa situação, não conseguiram avançar, ficaram estacionadas no Sul e soltaram toda essa chuva por lá”, explica Marengo. “Ao mesmo tempo, tinha o transporte intenso de umidade da Amazônia e uma onda de calor no Sudeste e no Centro-Oeste. Essa massa de ar quente e seco funcionou com uma bolha que não deixa as frentes frias chegarem, um bloqueio. É um fenômeno meteorológico conhecido, por isso conseguimos prever um volume intenso de chuvas, mas não exatamente nessa quantidade.” Há cerca de dez dias, o Sudeste, áreas do norte da região Sul e parte do Centro-Oeste vivem uma onda de calor inédita para a época do ano. No meio do outono, as temperaturas têm ficado acima dos 30º, com picos próximos dos 40º, raros até mesmo no verão.
Dados da ONG Contas Abertas, especializada em orçamento público, apontam que, em uma década, os gastos federais com prevenção de desastres naturais caíram quase 80% de 2013 até o ano passado — de R$ 6,8 bilhões para R$ 1,47 bilhão. A maior redução foi observada entre 2019 e 2022, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em 2015, Dilma Rousseff, à época na Presidência, encomendou um relatório para prever os impactos das mudanças climáticas sobre o Brasil até 2040. O documento, que custou R$ 3,5 milhões aos cofres públicos, já previa uma quantidade excessiva de chuvas no Sul do País. No entanto, em vez de o relatório ser usado para a criação e adoção de políticas públicas para o enfretamento desses eventos extremos, foi engavetado.
Naquela mesma época, uma equipe de pesquisadores, como Martha Barata — que, então, fazia parte da Rede de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Urbanas da Fiocruz —, mapeou as cidades mais vulneráveis às mudanças climáticas. Eram apenas seis Estados, e o Rio Grande do Sul não estava na lista. Contudo, o mapa já era um modelo para as as adaptações necessárias. “A Secretaria de Clima do Ministério do Meio Ambiente já tinha elaborado um plano para as cidades, faltava apenas a fase de implementação. Mas foi vetado pelo governo Bolsonaro”, lamenta Martha. O planejamento de ações de prevenção para lidar com chuvas intensas e prevenir enchentes não apareceu nos programas de governo de Eduardo Leite (PSDB), reeleito governador do Estado em 2022. Sebastião Melo (MDB) tampouco mencionou o tema quando se candidatou à Prefeitura de Porto Alegre, em 2020. O prefeito da capital gaúcha, inclusive, cortou dos gastos públicos, em 2023, um item orçamentário chamado “Melhoria do sistema de proteção contra cheias”. O investimento desapareceu do relatório entregue ao Portal da Transparência. Tanto Leite quanto Melo reduziram os gastos com a defesa civil no ano passado, uma queda de 8% e 68%, respectivamente, em comparação com o ano anterior. “Precisamos parar de fazer o gasto com recuperação e investir em prevenção. O problema é que isso, infelizmente, não dá voto”, critica Martha. “Primeiro, precisamos aumentar a percepção da população de que isso se repetirá caso não houver prevenção. E, segundo, precisamos ouvir os órgãos competentes, como o Cemaden, que detectam os cenários climáticos e apontam onde e como investir em prevenção.”
De fato, o Brasil investiu bem mais em remediar os efeitos dos eventos climáticos do que em preveni-los. Desde 2018, o País gastou sete vezes mais na recuperação de áreas afetadas por enchentes do que em prevenção de desastres no Rio Grande do Sul. “Os governos agem depois do ocorrido, quando deveriam agir antes. É um investimento mais caro, mas, no longo prazo, poupa-se dinheiro”, complementa Marengo, do Cemaden. Além das perdas irreparáveis de vidas, reconstruir as áreas do Rio Grande do Sul atingidas nesta última cheia deve custar R$ 19 bilhões, segundo cálculos do próprio o governo estadual. O orçamento aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul para 2024 prevê um déficit de R$ 2,7 bilhões, com receitas totais de R$ 80,3 bilhões e despesas totais de R$ 83 bilhões. A arrecadação estimada é de R$ 63,1 bilhões.
Dentre as ações de planejamento necessárias que, segundo Marengo, já deveriam ter sido tomados, destaca-se o realocamento de pessoas de áreas de risco, com a análise de novas construções em zonas semelhantes. Além disso, a reconstrução de estruturas hidráulicas. “Muitas cidades foram construídas nas décadas de 1960 e 1970, quando o volume de chuva era outro. As estruturas não suportam o aumento que temos”, explica o coordenador. “Porto Alegre é um exemplo, com o rompimento da comporta. São Paulo também: toda vez que chove, as ruas inundam. As galerias pluviais não foram preparadas para esse volume de chuva que está caindo — e isso só aumenta. É difícil dizer o que precisa ser feito, porque já apresentamos todas as evidências científicas de que o padrão do clima mudou”, completa. Segundo a pesquisadora Martha, cada cidade precisa ser analisada e planejada individualmente. “É necessário ver o tamanho das áreas verdes, por exemplo. No caso do Rio Grande do Sul, há uma série de diques de contenção. Eles são suficientes? E esse planejamento precisa estar em sincronia com os centros de monitoramento de clima, que sabem a quais fenômenos aquela região está exposta. É preciso um plano diretor eficiente.”
Além de reestruturar as cidades, é importante também estimular a criação de novos centros urbanos. “Só 1% do território brasileiro é ocupado por pessoas. A maioria é ocupada por pasto. Enquanto a média dos países fica em cerca de 50% da população em área urbana, o Brasil tem 86%. Precisamos desenvolver outros pólos urbanos, temos informação circulante, podemos trabalhar em outros locais”, defende Marcos Freitas, professor no Programa de Planejamento Energético do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Brasília é um exemplo importante: mudou o nosso eixo de ocupação, saiu da beira do litoral e puxou a população para dentro. Precisamos de mais estímulos para esse tipo de ocupação para diminuir moradias em locais de risco e evitar mortes”, conclui o especialista.
Os eventos climáticos extremos recentes estão interligados. Afinal, a precipitação em excesso no Sul tem tudo a ver com a onda de calor no Sudeste, em um fenômeno que pode parecer local, mas é global. O alerta dos cientistas sobre as alterações do clima já é captado nas pesquisas de opinião. Sondagem Quaest, divulgada em 9 de maio, aponta que, para 64% dos entrevistados, as mudanças climáticas têm “ligação total” com eventos do Rio Grande do Sul. Agora, resta saber se a tragédia se materializará em ações efetivas para que não se repita ou se será apenas um capítulo a ser superado.