Como será o amanhã?

27 de julho de 2020

A pandemia do covid-19 trouxe novos hábitos que tendem a perdurar, e o trabalho de reconstrução da terra arrasada deve ser longo. “Será um período de reflexão para se avaliar a importância dos governos, já que veio em meio a uma onda de crescimento do liberalismo, com menores presença do Estado e de regulação do mercado”, analisa o diretor-executivo da Organização Não Governamental (ONG) República, Eloy Oliveira. “É fundamental valorizar os profissionais do setor público, em especial na saúde e na educação, bem como repensar a distribuição de verbas para Estados e municípios”, afirma Oliveira, cuja ONG trata de gestão pública.

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Quando os impactos da pandemia forem reduzidos, pelo menos três vetores serão influenciados, afirma o economista e CEO da consultoria Ideia Big Data e professor visitante na George Washington University, Maurício Moura: “Haverá intensificação da telemedicina, do ensino a distância e do home office. As pessoas tendem a deixar as grandes cidades e buscarem as médias, com mais qualidade de vida.” Já as externalidades negativas virão no esfacelamento da economia informal e na queda brutal no nível de renda dos mais pobres em regiões menos desenvolvidas, como África, Índia e Brasil. Em curto prazo, haverá necessidade de reposicionar as cadeias de produção de itens essenciais, como respiradores, máscaras e luvas, por exemplo, para diminuir a dependência em relação à China.

Segundo o acadêmico, as pequenas e médias empresas deverão ser assediadas pelas grandes corporações, cujas incorporações vão moldar o perfil predominante em diversas áreas.

Tanto a telemedicina como o ensino a distância devem ganhar fôlego a partir de 2021, após o leilão da banda 5G [nova geração da internet móvel, que permitirá velocidade cem vezes maior do que a oferecida pela atual 4G], previsto para dezembro. “É a agenda do futuro, que pode movimentar no Brasil cerca de 150 mil empresas nacionais de tecnologia da informação”, aponta o sociólogo e copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política da FecomercioSP, Paulo Delgado, com base nos dados do Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel). A expectativa é que as principais corporações mundiais, como Ericsson, Nokia e Huawei, participem do leilão. Segundo Delgado, a chegada do 5G vai oferecer grandes oportunidades nas áreas de automação, robótica e internet das coisas, além da maior velocidade na transmissão dos dados de serviços médicos a distância e na educação. Portanto, a retomada está condicionada aos avanços das empresas de tecnologia e aos esforços dos governantes em estimular a economia sem abandonar aqueles que forem mais prejudicados na crise.

Manoel Fernandes, sócio da consultoria BITES, acredita que o setor privado será obrigado a promover cortes, mas haverá um sentimento de solidariedade entre os colaboradores com os objetivos das empresas em se reerguerem. “O nível de ansiedade aumentou, mesmo em um ambiente de home office. As empresas que souberem lidar com o momento sem priorizarem o lucro rápido tendem a manter vínculo mais forte com os clientes.”

Novos rumos da medicina

Regulamentada desde 1996 nos Estados Unidos, a telemedicina só foi permitida provisoriamente no Brasil, em razão da pandemia, nos casos de atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, em consultas de monitoramento e diagnóstico a distância. “Sua regulamentação é fundamental. Ainda não houve por causa da visão corporativista dos médicos, que querem defender seus empregos”, opina Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ex-superintendente corporativo do Hospital Sírio-Libanês. “A medicina precisa de dados para tomar as decisões com mais precisão e agilidade. Quando consolidada [a telemedicina], a relação entre médico e paciente será diferente, e o hospital deixará de ser o principal vetor de acesso, o que reduzirá as aglomerações e riscos de contágios”, diz Claudio Lottenberg, presidente do Conselho do Hospital Israelita Albert Einstein.

Mas, para Vecina Neto, apenas a tecnologia não será suficiente. “É preciso que haja investimentos em pesquisa e na produção de insumos básicos, como luvas e máscaras. Os laboratórios nacionais conseguiram decodificar o coronavírus em 48 horas, mas como será em caso de uma nova pandemia?”

As perspectivas de mudanças são mínimas. “As condições precárias de moradia colaboram para que haja aglomerações, e a atividade das pessoas inviabiliza o isolamento social, já que a maioria desempenha trabalhos braçais e de contato com o público”, afirma o epidemiologista Antônio Augusto Moura da Silva, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Haverá ainda transformação no perfil dos futuros médicos, acredita o psiquiatra Mauro Aranha, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina-SP. “A grade curricular das faculdades deverá estar em sintonia com as novas demandas. Especialistas são necessários, mas a graduação deverá ser generalista para cumprir requisitos mínimos voltados para a realidade epidemiológica e sanitária.”

Mobilidade

A ação do Poder Público será decisiva para definir os novos padrões de mobilidade nos grandes centros urbanos. “No Brasil, os carros devem pagar por suas externalidades, já que são emissores de CO2. As medidas passam por ampliação do estacionamento pago e cobrança de taxa em determinadas áreas”, afirma o diretor do programa de cidades da ONG WRI, Luis Antonio Lindau.  

Para o físico, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Conselho de Sustentabilidade da FecomercioSP, José Goldemberg, a redução da poluição nas metrópoles estimula novas saídas. “A área de transportes representa entre 25% e 30% da energia consumida no mundo. Cidades, como Nova Délhi, apresentaram significativa melhoria nos níveis de qualidade do ar e estas condições precisam ser mantidas.” O arquiteto e urbanista Nabil Bonduki vê o alto custo fixo de manutenção como um impeditivo para o crescimento no uso dos carros, já que as pessoas estarão com o orçamento mais curto: “O transporte compartilhado, dentro das normas de higiene, será uma opção.”

Geopolítica global

“O coronavírus registra o fim de um ciclo na História desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Agora, foi disparado um gatilho de transformações que já estavam ocorrendo e que serão aceleradas”, avalia o diplomata Marcos de Azambuja, ex-secretário-geral do Itamaraty e ex-embaixador do Brasil em Paris e Buenos Aires.

Em seus 85 anos, Azambuja presenciou tanto a crise de quatro décadas entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética como os diversos confrontos no Oriente Médio, mas nada se compara ao quadro atual. Se antes, os conflitos ocorriam por questões ideológicas, o cenário futuro prevê um acirramento que tem como pano de fundo a soberania das nações. Para o diplomata, como o planeta é marcado pela globalização e abertura de fronteiras, é necessário que haja cooperação internacional, uma vez que fatos que acontecem em um país repercutem nos demais. “Ocorre que nenhuma nação está disposta a abrir mão de sua soberania. O exemplo maior foi o Reino Unido e o movimento Brexit, por não aceitar certas condições da União Europeia. E, há ainda o risco advindo da globalização de que o processo liberatório saia do controle e altere tradicionais configurações étnicas e demográficas dos países. Nem mesmo organizações como a ONU e a OMS são acatadas passivamente em suas orientações.”  

Em relação ao Brasil, o diplomata é crítico à atual postura do Ministério das Relações Exteriores, especialmente no que diz respeito à pandemia. “O  negacionismo é uma forma de cegueira perigosa. O Brasil sempre foi um País que agiu para o consenso internacional e agora está em más companhias, como a Hungria e a Nicarágua. Temos uma história de respeito aos direitos humanos e fortalecimento da democracia. Não podemos nos associar a contraventores.”

Apesar dos contratempos, Azambuja acredita que a crise deixará uma lição aos governantes. “Antes, tivemos advertências como o Ebola, o H1N1 e o Sars, mas os governos se preocuparam mais com suas agendas nacionais e não atentaram para a dimensão da doença. É preciso ficar atento, e o aprendizado só vem por meio de muito susto.”

Consumo

Um consumidor mais exigente com o preço, a qualidade e a higienização dos produtos convivendo com um varejo digitalizado, que entenda e responda com agilidade às demandas. “O cenário já vinha se delineando antes da pandemia e agora vai se acelerar vertiginosamente, com o redesenho dos espaços físicos e o crescimento do e-commerce”, afirma o economista Antonio Lanzana, professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política da FecomercioSP. Para ele, as mudanças devem ocorrer no ramo da alimentação, pela maior adesão ao home office e diminuição do fluxo no transporte coletivo, o que afetará os restaurantes que operam por quilo. “São estabelecimentos que ganham na escala e tendem a servir menos clientes.” A saída está em estratégias com ênfase na higienização e nas normas de segurança e prevenção, a exemplo do que já vem sendo feito na Itália.

Espera-se ainda retração no mercado imobiliário corporativo, com devolução de pontos comerciais, nos shoppings e no comércio de rua. Em se confirmando, será um movimento negativo para os investidores em fundos imobiliários, em especial os alocados em lajes corporativas.

O setor de turismo também será duramente impactado, principalmente os destinos internacionais, em razão das disparadas do dólar e do euro. Nas viagens domésticas, diz Lanzana, deverá haver preferência por destinos ao ar livre, em viagens rodoviárias. “Ninguém pode esperar que vá faturar o mesmo que antes da crise.”   

Desigualdade

Antes de pensar no pós-pandemia, o morador da comunidade está preocupado em como será o seu dia. “Nas favelas, não houve quarentena. É lá que moram o motorista, o cozinheiro, a balconista e o motoqueiro entregador de comida. A favela se expõe ao risco e trabalha para a quarentena da classe média do asfalto”, observa o empreendedor social Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa) – que promove ações de empreendedorismo nas comunidades do País. Ele teme pelo futuro e vê o momento atual como um possível “início de caos.”

Segundo ele, “cerca de 50% dos moradores estão em atividades informais ou autônomas. Quem não quebrou, está agonizando. “A maior crise que uma sociedade pode ter não é o coronavírus, mas é a crise de perspectivas. Se isso ocorrer, será uma convulsão, ninguém irá respeitar as regras. A favela só aceitou ser represada até hoje por acreditar que a vida vai melhorar. Quando você dá a cesta básica e a favela aceita, é porque ainda acredita que há esperança.”

Há um consenso quanto às dificuldades, e muitos sairão com “feridas na alma”, conforme define a poetisa, filósofa e psicanalista Viviane Mosé.  “Os mais pobres irão sofrer mais. Haverá aqueles que tentarão recuperar logo o que perderam, esfolando os que estão embaixo. Mas, ao final, uma boa parte da sociedade sairá melhor. Vivíamos na exaustão da virtualidade, presos às redes sociais e sem vida afetiva. Isolados, chegaremos ao extremo. A restrição nos fará sentir o gesto de um abraço, de ir a um show e de valorizar os artistas, que são aqueles que lidam com as emoções das pessoas. É com a arte que nos salvamos.”

“É hora de apreciar a vida e acalentar a esperança de que este vírus possa nos servir como ensinamento para desenvolvermos o respeito, a amorosidade, o cuidado e o bem-estar de todos.” Monja Coen, fundadora da Comunidade Zen Budista

Monja Coen fala à PB

É possível transformar este período de isolamento social em descoberta interior?

Este momento pode facilitar as práticas de autoconhecimento. Conhecer a si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser iluminada por tudo o que existe. São frases do Mestre Eihei Dogen, fundador da Ordem Soto Shu, no século 18. Ensinamentos que permanecem verdadeiros assim como Sócrates que dizia: “Conhece-te a ti mesmo”. Eis uma oportunidade que o isolamento social pode nos proporcionar. Ao invés de querer se ocupar o tempo todo com múltiplas atividades, fiquem alguns momentos sem fazer nada. Olhem para o céu e deixem seus olhos descansarem no infinito. É hora de apreciar a vida e acalentar a esperança de que este vírus possa nos servir como ensinamento para desenvolvermos o respeito, a amorosidade, o cuidado e o bem-estar de todos. Sabedoria e compaixão são os dois alicerces de uma vida plena, em qualquer circunstância.

Após o isolamento, quais os valores devem ser priorizados na vida das pessoas?

Não sei. Posso esperançar pelo despertar da humanidade. Humanidade no sentido da bondade, do cuidado, do respeito à vida em sua pluralidade. O vírus tem nos apresentado pessoas solidárias, entregando cestas básicas, fazendo máscaras, criando proteção para o pessoal da saúde, ficando em casa, cuidando. Quando cuidamos de todos estamos cuidando de nós.

O mundo será melhor após o final da pandemia?

Que os seres despertem, que haja uma expansão de consciência tal que saibamos cooperar e colaborar uns com os outros, deixando de lado o egoísmo, a cobiça, a ganância, a raiva e a ignorância. Alguns irão despertar. Alguns já despertaram. Outros, talvez demorem mais.

Buda comparava os seres humanos a quatro tipos de cavalos. O primeiro, ao ver a sombra do chicote, galopa. O segundo precisa levar uma chicotada no lombo. O terceiro só galopa se o chicote rasgar sua carne. O quarto só quando a chicotada chegar até o osso do cavalo.

Ou seja, alguns, percebendo a transitoriedade e a interdependência, são capazes de, ao ver a sombra do chicote, apreciar a vida em cada um de seus múltiplos momentos e a cuidar com respeito e dignidade de tudo e de todos. O segundo, só quando uma pessoa conhecida, embora não próxima, esteja contaminada ou morra. O terceiro só apreciará a vida e só fará o bem se morrer alguém muito querido e próximo. E o quarto é aquele que só será capaz de apreciar a vida e fazer o bem quando seu fim estiver próximo.

Comece a galopar com a sombra do chicote. Só que muitos já estamos no terceiro cavalo, enterrando e nos lamentando por pessoas queridas que estão partindo.

Não sei prever o futuro. Nós, seres humanos, também esquecemos com facilidade. Mas, para alguns, será inesquecível e talvez passemos a respeitar mais os elementos básicos da vida. Para outros, será um tempo monótono e estarão se entretendo e dormindo, para passar rápido e voltar a fazer o que antes faziam. Mas a vida não tem volta. O planeta Terra nunca gira para trás, para ontem. Só podemos ir adiante. Que esse ir adiante seja mais gentil, sábio e compassivo. Mãos em prece!

Conteúdo publicado na edição 458 da revista PB. Clique aqui.

Guilherme Meirelles Joélson Buggilla
Guilherme Meirelles Joélson Buggilla