A bola parou de rolar

07 de julho de 2020

A paralisação do mercado do futebol em função do coronavírus deve provocar uma perda de receita entre R$ 1,8 bilhão e R$ 2,5 bilhões para os clubes, representando queda entre 29% e 37%, respectivamente, em relação ao recorde obtido em 2019, que atingiu volume de R$ 6,8 bilhões. Anunciada em junho, a estimativa é da consultoria Sports Value, após analisar os balanços dos cem principais clubes de futebol do País.

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Para Amir Somoggi, CEO da Sports Value, o que vai determinar a extensão da queda será o volume de transações de jogadores para a Europa. “Em 2019, as vendas de atletas representaram R$ 1,6 bilhão, e as projeções atuais indicam que fiquem entre R$ 800 milhões e R$530 milhões, em razão das medidas de contenção do mercado europeu, que está mais seletivo nas contratações. Em 2019, apenas o Flamengo obteve R$ 300 milhões na venda de jogadores.”

Embora o montante em 2019 tenha sido de R$ 6,8 bilhões, os 20 maiores clubes da série A responderam por R$ 6,1 bilhões.

Segundo estimativa da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o esporte movimenta 150 mil empregos diretos, que incluem atletas, funcionários e prestadores de serviços (vans, hotéis, entre outros). As receitas do esporte dependem de sete fontes: direitos de TV (R$ 1,9 bilhão, em 2019), transferências (R$ 1,6 bilhão), patrocínios (R$ 540 milhões), sócio-torcedor (R$ 475 milhões), premiações (420 milhões), bilheteria (R$ 480 milhões) e clube social (R$ 257 milhões). As perdas com patrocínios devem ficar entre R$ 215 milhões e R$ 135 milhões.

“Perdas nas receitas podem chegar até R$ 2,5 bilhões, queda de até 37% em relação a 2019″, revela pesquisa da consultoria Sports Value

 No final de maio, o banco digital BS2 rompeu o contrato de patrocínio master com o Flamengo, que rendia R$ 15 milhões anuais ao clube. A multa contratual foi alta, mas mesmo assim foi mais compensatória para o banco”, diz Somoggi. No final de junho, o clube carioca anunciou o fechamento de patrocínio master com o Banco de Brasília (BRB), por R$ 32 milhões, em um contrato de três anos.

O Flamengo pode ser considerado um ponto fora da curva, fato que se manifestou após a chegada do engenheiro Rodolfo Landim à presidência, em janeiro do ano passado. Com passagens pela presidência da Petrobras Distribuidora e das empresas MXM, OGX e OSX, Landim impôs um modelo de gestão nos moldes de uma grande corporação. Seu estilo gerou resultados em curto prazo. Com base em contratações certeiras – como a do técnico português, Jorge Jesus, e atletas de peso, casos de Arrascaeta (R$ 63,7 milhões), Gerson (R$ 49,7 milhões), Bruno Henrique (R$ 23 milhões) e Rodrigo Caio (R$ 21 milhões) – o clube montou uma equipe sem precedentes, desde os tempos de Zico, nos anos 1980.

Levou com facilidade o Campeonato Brasileiro, ganhou a Libertadores e ficou em segundo lugar no Mundial de Clubes. O resultado financeiro foi recorde histórico – R$ 939 milhões em receitas, sendo R$ 337 milhões de direitos de transmissões e R$ 299 milhões em transmissões de TV. No início deste ano vendeu a jovem revelação Reinier por R$ 125 milhões ao Real Madrid e, em junho, o zagueiro espanhol Pablo Mari ao Arsenal, transação fechada por R$ 40 milhões.

As receitas do futebol nacional dependem de sete fontes: direitos de TV (R$ 1,9 bilhão, em 2019), transferências (R$ 1,6 bilhão), patrocínios (R$ 540 milhões), sócio-torcedor (R$ 475 milhões), premiações (420 milhões), bilheteria (R$ 480 milhões) e clube social (R$ 257 milhões).

Os números do Flamengo impressionam, mas não chegam a fazer cócegas se comparados aos clubes europeus. Segundo levantamento da consultoria Deloitte, o Barcelona fechou 2019 com receita equivalente a quase R$ 4 bilhões, seguido pelo Real Madrid, com R$ 3,6 bilhões, e pelo inglês Manchester United, com R$ 3,4 bilhões. Apenas em patrocínios, o Barcelona faturou R$ 834 milhões.

Entre alguns grandes nomes do futebol brasileiro, a diferença é ainda mais gritante. Em 2019, o Corinthians registrou prejuízo de R$ 177 milhões (para uma receita de R$ 470 milhões) e o São Paulo fechou no negativo, com R$ 156 milhões (receita de R$ 425 milhões). O pior desempenho foi o do rebaixado Cruzeiro, com perdas de R$ 394 milhões, em função da desastrosa administração do presidente, Wagner Pires de Sá.

“No cenário atual, nenhum investidor vai chegar com R$ 500 milhões para saldar as dívidas e começar um trabalho.” Cesar Grafietti, economista e analista do BBA

Para, Cesar Grafietti, economista e analista do BBA, banco de investimentos do Itaú Unibanco e especialista em gestão do esporte, a crise financeira dos clubes é anterior à chegada do coronavírus e tem origem na má gestão da maioria dos clubes. “Vários grandes clubes não possuem um patrocinador master na camisa, são marcas de ocasião. As grandes marcas deixaram o futebol nos últimos anos. As exceções são o Banrisul, com o Grêmio e o Inter, e a Crefisa, com o Palmeiras. Nem mesmo o Itaquerão, construído para a Copa, conseguiu um naming right [direito do patrocinador de colocar sua marca como nome do empreendimento, como é o caso do Palmeiras, cujo estádio passou a se chamar Allianz por conta da seguradora homônima]. Foi um projeto desproporcional e fora da realidade”, afirma.

Segundo Grafietti, o alto endividamento dos clubes dificulta a entrada de um investidor estrangeiro disposto a implementar o modelo de um clube-empresa [agremiação que funciona em modelo corporativo, com gestão profissional, governança corporativa e ouvidoria, entre outros requisitos, comuns em clubes europeus como o Manchester United, Juventus e o Bayern de Munique].

Segundo estudo de Grafietti, concluído no final de 2019, o endividamento líquido dos clubes brasileiros é de R$ 8 bilhões. Os únicos clubes com saldo positivo na relação Receita Bruta x Endividamento Líquido são o Flamengo, Palmeiras, Grêmio, Atlético-PR, Goiás, Ceará e Fortaleza. “O endividamento é consequência da má gestão histórica dos clubes, que gastam mais do que podem e acabam atrasando pagamentos a outros clubes, salários, encargos trabalhistas e impostos. No cenário atual, nenhum investidor vai chegar com R$ 500 milhões para saldar as dívidas e começar um trabalho”, afirma Grafietti.

Em 2015, o governo federal aprovou o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, versão do Refis para o futebol. A iniciativa prevê o refinanciamento das dívidas dos clubes (estimadas em R$ 1,8 bilhão, apenas entre 18 clubes da série A, com exceção do Palmeiras e do Red Bull Bragantino, que não aderiram) em até 20 anos, com desconto de 70% das multas e 40% dos juros. Porém, segundo comunicado do Conselho Nacional de Clubes, a pandemia trouxe o risco de nem sequer essas parcelas serem cumpridas por alguns clubes.

“Na crise, muitos dirigentes demitem funcionários e reduzem custos nas categorias de base.” José Carlos Brunoro, coordenador das categorias de base do Fortaleza (CE)

Pesa ainda a pecha de corrupção, diz Somoggi, da Sports Value. “Em meu canal no YouTube, entrevistei um executivo brasileiro da Coca-Cola, que vive nos Estados Unidos, e perguntei sobre a possibilidade de patrocinar algum clube brasileiro. Ele disse que, em razão da falta de uma cultura de boas práticas e compliance, não há como agregar a marca da bebida com nenhum clube, ao contrário do que acontece na liga de basquete NBA, que conta com patrocinadores que são grandes marcas globais.”

Há mais de 50 anos atuando no mundo do esporte, o atual coordenador das categorias de base do Fortaleza (CE), José Carlos Brunoro, teme pelo futuro das categorias inferiores, exatamente as responsáveis pela revelação de jovens vendidos a peso de ouro para o mercado europeu. “Na crise, muitos dirigentes demitem funcionários e reduzem custos nas categorias de base, temendo problemas trabalhistas com os jogadores profissionais, que tiveram seus altos salários reduzidos. O dirigente não pensa duas vezes, infelizmente.”

Brunoro não tem expectativa da volta do público aos estádios em 2020, mas acredita que a retomada pode acontecer com segurança, desde que sejam adotadas as mesmas medidas preventivas tomadas na Alemanha, como responsabilidade do atleta em higienizar em casa o seu uniforme, testagem de febre antes do jogador sair do hotel, distanciamento mínimo dos jogadores reservas e uso de máscaras.

Em junho, o governo federal enviou ao Congresso a MP 984, que altera a atual regulamentação sobre os direitos de TV, principal fonte de receitas. Pela MP, caberá ao clube mandante negociar a transmissão da partida, ao contrário da lei atual (conhecida como Lei Pelé) pela qual é obrigatório haver anuência do mandante e do visitante.

Segundo Somoggi, o espírito da MP é positivo, mas o texto é muito mal elaborado e beneficia apenas os clubes com maior capacidade financeira. “O ideal é que os clubes pudessem ter seu canal de streaming, como o Barcelona, e poder estruturar o seu negócio próprio. Um bom modelo é da Premier League inglesa, que formata pacotes que incluem tanto clássicos como jogos entre clubes pequenos, em uma negociação coletiva. A proposta do governo visa beneficiar clubes como o Flamengo e atingir a Rede Globo, por questão pessoal do presidente”, afirma.

O teste inicial com base na MP 984 foi dado pelo Flamengo (que não assinou contrato com a Rede Globo para o campeonato estadual do Rio de Janeiro), no início de julho, em partida de portões fechados contra o Boavista. Por meio do canal interno Fla TV, a partida foi exibida em quatro plataformas (YouTube, Facebook, Twitter e MyCujoo) e teve audiência de 2,2 milhões de espectadores, recorde nacional em streaming. Segundo estimativa do clube, a arrecadação espontânea, via código QR na tela, foi de aproximadamente R$ 900 mil. A MP 984 tem 120 dias para ser votada; caso contrário, perderá a validade.

Guilherme Meirelles Paula Seco
Guilherme Meirelles Paula Seco