Na política, o ato de omitir a verdade, tão antigo quanto a humanidade, faz parte da prática e foi considerado por Platão (427-347 a.C.) ferramenta indispensável para se governar. Com o avanço da tecnologia e da globalização, a ação foi sendo refinada e ganhou enorme poder de escala, influenciando preferências, formação de opinião, resultado de eleições, entre outras áreas sensíveis.
As fake news [em inglês ‘notícias falsas’] desafiam a capacidade crítica das pessoas e sobrevivem graças às convicções das chamadas “bolhas”, que são grupos nas redes sociais criados pelo alinhamento de pensamentos, ideologia, religião, gênero ou raça, que compartilham em massa informações que reafirmam suas crenças.
Antes de serem usadas como estratégia militante na política nacional, foram amplamente utilizadas em 2016, durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos, nas quais Donald Trump foi eleito. O então candidato se valeu da divulgação de histórias difamatórias de seus adversários, em um trabalho orquestrado pelo assessor político, Steve Bannon.
No Brasil, as eleições de 2018 marcaram seu uso coordenado para promover ideologias, denegrir adversários políticos e provocar medo nos eleitores. A diferença entre a mentira descrita por Platão e a atual “fábrica de fake news” é a profissionalização. Atualmente, profissionais e empresas especializadas, em criar e disseminar histórias falsas, são contratados.
Entre as notícias falsas mais compartilhadas durante o pleito de 2018 estava uma teoria conspiratória, que revelava possíveis intenções do alto escalão do Exército brasileiro de realizar novo golpe militar. Na mesma época, outra notícia foi o chamado “kit gay”: cartilha que teria sido distribuída na rede pública de ensino, pelo Ministério da Educação, durante o mandato de Fernando Haddad à frente da Pasta, para disseminação ideológica de gênero.
O caso brasileiro motivou a criação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news no Senado, que investiga a presença de redes clandestinas de divulgação de desinformação. A comissão, até o fechamento desta edição, em maio, já havia comprovado a contratação de empresas de disparo em massa de notícias falsas por partidos políticos, durante a campanha para as eleições de 2018.
“Fake news é uma falsificação de uma forma específica e histórica de relato. É de distribuição rápida, em escala enorme, a partir do advento do jornalismo”, aponta o jornalista e professor doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Eugênio Bucci. Segundo ele, é errado dizer que existia fake news na Grécia Antiga, pois não se tinha registro de imprensa: “Havia mentira, mas não notícia. Fake news não é a tradução de mentira, mas um instrumento da mentira. A melhor tradução é notícia fraudulenta, que não é produzida por jornalista.”
Para o professor, “o problema que a fake news traz para a democracia é o mesmo dano que um vírus causa ao organismo vivo, pois tapeia o sistema imunológico e se aproveita da circulação interna deste organismo para se propagar. A fake news pode levar à democracia a um colapso grave, e fazê-la produzir o oposto da própria democracia.”
Para alcançar o maior número possível de pessoas, a preferência dos propagadores desse tipo de notícia é o WhatsApp, aplicativo com mais de 5 bilhões de usuários, ou 65% da população mundial que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), soma 7,7 bilhões de pessoas.
O problema é que a plataformase tornou fonte de informação no Brasil e muitas vezes não se sabe a origem e o propósito dos conteúdos compartilhados. A pesquisa Redes Sociais, Notícias Falsas e Privacidade na Internet, realizada em 2019 pelo DataSenado, apontou que o WhatsApp é a principal fonte de informação para 79% dos brasileiros e 83% dos entrevistados consideram que as redes sociais influenciam muito a opinião pública.
Com posse de apenas o número de telefone, o aplicativo impacta rapidamente milhares de cidadãos e conta com uma barreira difícil de romper: geralmente as pessoas recebem informações dos denominados influenciadores horizontais ( parentes, amigos ou grupos de confiança) que tornam os dados, automaticamente, incontestáveis.
No dia 7 de abril, o aplicativo limitou ainda mais os usuários que encaminham mensagens altamente replicadas, que são aquelas compartilhadas mais de cinco vezes e que têm maior chance de serem falsas. Atingido esse limite, o usuário pode compartilhar a mensagem apenas para uma pessoa, grupo ou lista de transmissão. Em 2019, o limite havia sido fixado em cinco encaminhamentos por vez.
“Essas novas tecnologias parecem que destamparam o processo de difusão de mentiras e fomentam o descrédito das redações profissionais e de tudo aquilo que seja visto como ‘sistema’. Existem campanhas contra a credibilidade da imprensa, como existem campanhas contra o Poder Judiciário. É uma crise de negação daquilo que é visto como ‘sistema’”, afirma Bucci. Segundo ele, “parece que as ‘bolhas’ só valorizam aqueles relatos que mesmo sendo mentirosos, confirmam os preconceitos já existentes.”
Outro aspecto importante é a diminuição massiva de veículos de imprensa no Brasil. A terceira edição do Atlas da Notícia – base de dados criada para mapear as empresas produtoras de jornalismo no País – mostra que 331 veículos jornalísticos foram extintos, de 2014 a 2019, dos quais 195 (60%) eram da mídia impressa. O estudo revelou ainda que 62,6% dos municípios brasileiros não têm imprensa local.
Neste deserto de informação, a fake news surge como uma miragem e muitos – principalmente aqueles grupos ligados a segmentos políticos – utilizam deste mecanismo para enfraquecer a prática jornalística. Segundo Bucci, esse movimento sempre existiu no Brasil e a imprensa local nunca foi forte, mas a ausência de redações próprias deixa as pessoas mais vulneráveis à propagação da mentira, em especial na política: “O que é necessário neste momento, para combater notícias fraudulentas, é que o jornalismo de qualidade cumpra seu papel social.”
Para a cientista política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenadora do curso de pós-graduação de Mídia, Política e Sociedade da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Rosemary Segurado, o declínio das mídias tradicionais tem relação com o crescimento das notícias falsas. “Há por parte de alguns setores políticos a intenção de minar os grandes veículos de imprensa e aumentar seu descrédito, para que as fake news tomem seus lugares”, aponta a pesquisadora. Tanto Bucci como Rosemary opinam que a postura ofensiva do presidente Jair Bolsonaro, em relação à imprensa, como um grande indutor de fake news.
Desde o início de seu mandato, o presidente acumula ataques diretos à imprensa, utilizando sua conta no Twitter para questionar a cobertura dos veículos jornalísticos e, até mesmo, compartilhar fake news. Segundo levantamento da agência Aos Fatos, de janeiro de 2019 a abril de 2020, Bolsonaro deu 912 declarações falsas ou distorcidas.
“A imprensa não deveria ouvir passivamente esse tipo de provocação. É preciso contestar e explicar por que é mentira. A imprensa deveria abraçar esse tipo de campanha”, diz Bucci.
“Por mais contestável que seja a atuação da grande mídia, muitas vezes, enviesada, ainda há checagem dos fatos antes da publicação das notícias”, explica Rosemary. Além disso, se houver erro de apuração, o jornalismo prevê o direito de resposta e o leitor será informado, por intermédio de errata, caso uma notícia falsa seja veiculada.
A Lei n.º 13.834, de junho de 2019, alterou o Código Eleitoral (Lei n.º 4.737, de 1965) e qualificou como criminoso o disparo de informações caluniosas com finalidade eleitoral. O art. 326-A prevê prisão de 2 a 8 anos para quem produzir e/ou divulgar informação falsa para denigrir a imagem de alguém, com fins políticos e eleitorais. A pena aumenta caso o agressor se valha do anonimato, com apelido ou nome falso.
A lei só vale para períodos de campanhas eleitorais. “Fora da época eleitoral, a prática deve ser denunciada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e será enquadrada como propaganda eleitoral fora do período permitido”, afirma o juiz auxiliar da presidência do TSE, Ricardo Fioreze.
Além disso, mesmo que uma pessoa seja denunciada durante a campanha eleitoral, não há garantias que seja punida rapidamente – pois o processo de investigação, julgamento, com direito de defesa assegurado e a sentença – tende a ser moroso. Segundo Fioreze, a preocupação do TSE é agilizar esse rito para reduzir os índices de impunidade: “Se conseguirmos envolver todos os atores nesse processo, como a polícia, esses casos podem ser enquadrados em flagrante e serem passíveis de punição imediata”. O flagrante pode ser facilitado caso a identificação do acusado esteja disponível no veículo de propagação da fake news, como redes sociais, grupo de WhatsApp, entre outros.
No caso de denúncias durante períodos eleitorais, é preciso abrir boletim de ocorrência físico ou digital. O acusador deve apresentar todas as provas do crime aos policiais e aguardar a investigação. Após essa primeira etapa, o caso passa para julgamento no Tribunal Regional Eleitoral na área onde ocorreu e, uma vez provado o crime, o réu será punido.
A legislação eleitoral, porém, não prevê sanção aos partidos políticos ou candidatos que se beneficiarem de alguma forma com as fake news. Eles só serão punidos pela lei, caso fique provada sua participação direta no processo.
Fora do período eleitoral, se alguma pessoa ou instituição for vítima de notícias falsas na internet que difamem sua honra ou as acusem de algum crime inverídico, o Código Penal brasileiro pode enquadrar os criminosos pelos delitos de ameaça (art. 147), calúnia (art. 138), difamação (art. 139), injúria (art. 140) ou falsa identidade (art. 307). No caso de vazamento de informações pessoais via dispositivos de informática (celular, computador, entre outros), a Lei n.º 12.737/2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, prevê multa e detenção do criminoso por 6 meses a 1 ano.