CPMI das fake news investiga a presença de redes clandestinas de divulgação de desinformação

Mentira como estratégia de poder

08 de julho de 2020

As fake news [em inglês "notícias falsas"] desafiam a capacidade crítica das pessoas e sobrevivem graças às convicções das chamadas “bolhas” (grupos nas redes sociais criados pelo alinhamento de pensamentos, ideologia, religião, gênero ou raça), que compartilham em massa informações que reafirmam suas crenças.

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No Brasil, as eleições de 2018 marcaram seu uso coordenado para promover ideologias, difamar adversários políticos e provocar medo nos eleitores. Entre as notícias falsas mais compartilhadas durante aquele pleito, estava uma teoria conspiratória, que revelava possíveis intenções do alto escalão do Exército brasileiro de realizar novo golpe militar. Na mesma época, outra notícia foi o chamado “kit gay”: cartilha que teria sido distribuída na rede pública de ensino, pelo Ministério da Educação, durante o mandato de Fernando Haddad à frente da Pasta, para disseminação ideológica de gênero.

O caso motivou a criação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news no Senado, que investiga a presença de redes clandestinas de divulgação de desinformação. A comissão, já comprovou a contratação de empresas de disparo em massa de notícias falsas por partidos políticos, durante a campanha de 2018.

“O problema que as fake news trazem para a democracia é o mesmo dano que um vírus causa ao organismo vivo, pois tapeia o sistema imunológico e se aproveita da circulação interna para se propagar. As fake news podem levar à democracia a um colapso grave, e fazê-la produzir o oposto da própria democracia”, aponta o jornalista e professor doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Eugênio Bucci.

Influenciadores horizontais

O aplicativo WhatsApp, com mais de 5 bilhões de usuários, é o mais utilizado pelos criminosos no Brasil. Cerca de 79% da população usam a plataforma como principal fonte de informação, segundo a pesquisa Redes Sociais, Notícias Falsas e Privacidade na Internet, realizada em 2019 pelo DataSenado. Segundo a sondagem TIC Domicílios, edição 2018 do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, 70% dos brasileiros têm acesso à internet fixa ou móvel; em 2008, eram 34%.  

O aplicativo impacta rapidamente milhares de cidadãos e conta com uma barreira difícil de romper: geralmente as pessoas recebem informações dos chamados “influenciadores horizontais” (parentes, amigos ou grupos de confiança), que tornam os dados, automaticamente, incontestáveis.

“Essas novas tecnologias parecem que destamparam o processo de difusão de mentiras e fomentam o descrédito das redações profissionais, e de tudo aquilo que seja visto como ‘sistema’. É uma crise de negação daquilo que é visto como ‘sistema’ ”, afirma Bucci.

Para a cientista política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Rosemary Segurado, o declínio das mídias tradicionais tem relação com o crescimento das notícias falsas:  “Há por parte de alguns setores políticos a intenção de minar os grandes veículos de imprensa e aumentar seu descrédito, para que as fake news tomem seus lugares”. Tanto Bucci como Rosemary opinam que a postura ofensiva do presidente Jair Bolsonaro, em relação à imprensa, funciona como um grande indutor de fake news.

Desde o início de seu mandato, o presidente acumula ataques diretos à imprensa. Segundo levantamento da agência Aos Fatos, de janeiro de 2019 a abril de 2020, Bolsonaro deu 912 declarações falsas ou distorcidas.

Muitas plataformas surgiram, de 2018 para cá, com o propósito de checar notícias falsas e indicar fontes seguras. A plataforma Boatos.org, criada pelo jornalista, Edgard Matsuki, checa um dado assim que é compartilhado nas redes sociais: “Por incrível que pareça, muitos compartilham informações sem lerem o conteúdo com atenção. Pela minha experiência, 70% das notícias falsas não resistiriam a uma busca simples pela internet, pois muitas informações já foram desmentidas pelas próprias vítimas ou por veículos de comunicação confiáveis.”

A Lei n.º 13.834/2019, alterou o Código Eleitoral (Lei n.º 4.737/65) e qualificou como criminoso o disparo de informações caluniosas com finalidade eleitoral. Porém, a lei só vale para períodos de campanhas eleitorais. “Fora da época eleitoral, a prática deve ser denunciada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e será enquadrada como propaganda eleitoral fora do período permitido”, afirma o juiz auxiliar da presidência do TSE, Ricardo Fioreze.

Solução permanente

Há um consenso entre os especialistas: a educação é o único caminho concreto para minimizar os impactos das fake news na sociedade. A educação midiática ou alfabetização midiática, ainda pouco conhecida no Brasil, foi inserida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2008, dentro do caderno “Padrões de Competência em TICs [Tecnologias da Informação e Comunicação] para Professores”, que trazia diretrizes sobre como abordar o tema para desenvolver o senso crítico dos alunos no ambiente digital.

No Brasil, a reformulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino fundamental, em 2018, inseriu o jornalismo como conteúdo de Língua Portuguesa. As práticas jornalísticas e os impactos da mídia digital devem preencher 25% da disciplina.  A inclusão abriu oportunidades para se discutir o papel dos jovens no mundo digital, para que usufruam da tecnologia de forma participativa.

“A polarização atrapalha a democracia como um todo.” Patrícia Blanco, presidente-executiva do Instituto Palavra Aberta

Patrícia Blanco fala à PB

Presidente-executiva do Instituto Palavra Aberta (entidade sem fins lucrativos, ligada a organizações que representam empresas de comunicação, e que defende a plena liberdade de ideias, pensamentos e opiniões)  

Como surgiu a ideia do projeto de educação midiática?

O EducaMídia surge, em junho de 2019, da percepção de que, para garantirmos o direito às liberdades de expressão e de imprensa, precisamos que a sociedade entenda e se comprometa com o combate à desinformação. Ser midiaticamente educado é fundamental para lidarmos com o excesso de fontes de informação e de dados que recebemos todos os dias, e quanto mais cedo começarmos, melhor. Pensando nisso e levando em conta a oportunidade proporcionada pela BNCC, o EducaMídia nasceu com foco nas crianças e adolescentes. Para atingir esse público, atuamos especificamente na formação de professores e costuramos as parcerias com governos e outros atores de acordo com os objetivos estratégicos do programa.

Como é feita a formação desses professores?

Temos feito formações de professores em diversas cidades do País. Formamos uma turma de facilitadores em São Paulo para nos auxiliar nessa missão, e já estivemos em cidades como Recife, Rio de Janeiro e Goiânia, por exemplo, e para 2020 devemos ampliar ainda mais, sempre contando com a ajuda de parceiros nacionais ou locais. Também temos curso EAD gratuito sobre educação midiática e a BNCC, em parceria com a Fundação Vanzolini, voltado para professores da educação básica, com mais de 4 mil inscritos.

Algum governo já qualifica seus professores pelo programa?

Sim, o governo estadual de São Paulo por meio do Inova Educação, programa que está reformulando o currículo do ensino fundamental II e do ensino médio, atingindo 2 milhões de estudantes. Uma das disciplinas que poderão ser escolhidas pelos alunos é Educação Midiática.

A polarização política atual atrapalha a promoção da educação midiática no Brasil?

Sim. Na verdade, a polarização atrapalha a democracia como um todo. A partir do momento em que as pessoas ficam enclausuradas em bolhas de informação, consumindo conteúdos que apenas confirmam suas crenças, ideologias e opiniões, a chance de se radicalizarem aumenta consideravelmente. Percebemos também uma descrença coletiva, fruto de campanhas de desinformação, em instituições importantes para sustentar quaisquer regimes democráticos, como a imprensa, o sistema judiciário e o sistema eleitoral.

Como vocês lidam com essa onda contra o pensamento crítico?

Somos a favor do pensamento crítico e da liberdade de expressão e de pensamento. A frase que acompanha o Palavra Aberta desde a sua fundação é: “Quanto mais você sabe, melhor você decide”. Acreditamos que o cidadão deve ser empoderado com informação de qualidade para tomar as melhores decisões para si e para os seus. E o que seria informação de qualidade? Aquela que vem do jornalismo profissional e da imprensa que respeita os valores fundamentais é um exemplo. O conteúdo produzido por universidades, institutos e entidades também deve ser lembrado. Cidadãos educados midiaticamente conhecem diferentes fontes de informação e tiram o melhor proveito delas, para assim criarem suas próprias ideias e assumirem suas próprias posições.

Conteúdo publicado na edição 458 da revista PB. Clique aqui.

Filipe Lopes Alberto Lins
Filipe Lopes Alberto Lins