Moïse e a cultura do linchamento

09 de fevereiro de 2022

O assassinato brutal de um refugiado congolês, no último dia 24, em um quiosque do Rio de Janeiro, vem provocando manifestações por todo o País. Vítima de espancamento, a história do jovem Moïse Mugenyi Kabagambe é mais um capítulo de racismo, xenofobia e precariedades impostas a imigrantes vindos de países africanos, e pressiona o Brasil a repensar suas políticas públicas de acolhimento.

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O Brasil é o campeão mundial em linchamentos, segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Os linchamentos ou castigos, praticados pela população nas ruas, nas favelas e comunidades por tribunais do tráfico e da milícia, expõem a omissão do Estado, a falta de políticas públicas e o sectarismo dos justiceiros de todos os tecidos sociais. Entre os anos de 1980 e 2006, o País registrou 1.179 casos de linchamentos, sendo os Estados de São Paulo (568), Rio de Janeiro (204) e Bahia (180) os que apresentaram os maiores números. Ampliando a pesquisa até 2010, o Estado de São Paulo somou 662 casos de linchamentos, tendo 839 vítimas, enquanto no Rio de Janeiro foram 215 casos e 273 vítimas.

Os ecos do assassinato brutal do refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe foram ouvidos em mais de uma dezena de cidades brasileiras. Os gritos contra o racismo e a xenofobia escancarados após a morte do jovem de 24 anos em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, cobram respostas do Estado para além da punição dos envolvidos. Ao chorar a morte do filho, Ivana Lay ressaltou que Moïse deixou a República Democrática do Congo, país assolado há anos por uma guerra civil, para viver no Brasil na condição de refugiado. Mas, ao chegar aqui, se deparou com a mesma violência: ele foi espancado por cinco homens com cerca de 30 pauladas durante 15 minutos ao cobrar o salário atrasado no local onde trabalhava.

“A migração africana sempre foi alvo de racismo e xenofobia ou do ‘xenorracismo’, com violências físicas e simbólicas”, diz Alex André Vargem, sociólogo e doutorando em Ciências Sociais da Unicamp e pesquisador de imigrações africanas há 20 anos. “Diversos imigrantes perdem suas vidas no Brasil e voltam para seus países de origem em caixões. Então, qual a efetividade das políticas criadas? Não vemos europeus linchados ou baleados nas ruas.”

A morte de Moïse teve uma ampla repercussão política entre organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, pesquisadores que analisam fluxos migratórios, advogados e ativistas dos movimentos negros e africanos. “É um refugiado que chegou ao Brasil em busca de proteção, e o nosso ordenamento jurídico estabelece proteção e dignidade aos imigrantes”, explica Waleska Miguel Batista, professora da Unifesp e especialista em questões raciais. “O Brasil, porém, tem esse mito de ser receptivo por causa do racismo estruturado em nossa sociedade. É um país acolhedor somente com um grupo de imigrantes composto por pessoas brancas.” O corpo negro, destaca ela, é inferiorizado. “É um corpo ‘matável’, com todos os estereótipos relacionados às africanidades.” Nesse sentido, a comoção e a mobilização geradas em decorrência do assassinato de Moïse se explicam, sobretudo, pelo acúmulo de opressões sofridas por ele.

“Muitas pessoas em situação irregular não se sentem confortáveis em relatar as violações sofridas. Assim, as violências ocorrem por muito tempo nas esferas privadas.” Sheila de Carvalho, advogada especializada em Direitos Humanos, integrante da Coalização Negra Por Direitos e da Uneafro Brasil

O congolês é um dos 58.835 cidadãos estrangeiros que tiveram reconhecida sua condição de refugiado no Brasil, entre os anos de 2011 e 2020, segundo dados do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados). “Ele chega em um país estruturado pelo racismo, em que sua inserção ocorre de forma precária. Ele é atravessado por uma violência econômica que impõe aos negros uma renda inferior, pela falta de acesso ao emprego e à educação.” Waleska lembra ainda que mesmo diante da visibilidade que o caso ganhou, as investigações avançaram somente após as primeiras manifestações de familiares e de movimentos congoleses em frente ao quiosque em que Moïse trabalhava.

“Se fosse uma pessoa branca, no mesmo dia haveria mobilização. Nesse caso, os responsáveis foram presos quase uma semana depois, porque houve um coletivo pedindo por justiça.” A professora da Unifesp ressalta que é necessária uma política conjunta para combater o racismo estrutural. “É preciso pensar na educação, em ações afirmativas, em como investigar os estabelecimentos comerciais que expõem refugiados a precarizações.”

As mobilizações após a morte de Moïse denunciaram ainda a violência com que o Brasil historicamente recebe imigrantes de países de maioria negra. Segundo a advogada especializada em Direitos Humanos, integrante da Coalização Negra Por Direitos e da Uneafro Brasil, Sheila de Carvalho, faltam políticas públicas para acolher refugiados. “Dentro da prática do racismo, essas pessoas não são vistas como cidadãs, tampouco dignas de ingressar em nossa sociedade”, diz ela. “Não podemos dizer que é um caso isolado, porque são experiências cotidianas que essa população tem vivido no País. Também não dá para afirmar que esse caso romperá com práticas violentas, porque muitos ainda as perpetuam.” O legado das manifestações, segundo Sheila, é dar visibilidade a um cenário nem sempre visível. “Ele foi cobrar direitos e sofreu uma abordagem extremamente violenta. A vida negra vale menos do que um bem material.”

No caso de Moïse, as câmeras de segurança do quiosque conseguiram registrar o espancamento, com imagens em que ele aparece no chão sem possibilidade de defesa. Existem situações, pontua Sheila, em que não existem denúncias ou provas. “Muitas pessoas em situação irregular não se sentem confortáveis em relatar as violações sofridas. Assim, as violências ocorrem por muito tempo nas esferas privadas”, afirma a advogada. Não raro, diz Sheila, quando decidem fazer a denúncia, enfrentam tratamentos hostis nas delegacias de polícia. Um avanço, segundo ela, passaria pelo aprimoramento da legislação de migração e pela melhora das abordagens de instituições do sistema de justiça a imigrantes e refugiados.

“A migração africana sempre foi alvo de racismo e xenofobia ou do ‘xenorracismo’, com violências físicas e simbólicas.” Alex André Vargem, sociólogo e doutorando em Ciências Sociais da Unicamp e pesquisador de imigrações africanas há 20 anos

Perspectiva histórica

O Brasil tem hoje a 2ª maior população negra do mundo, perdendo apenas para a Nigéria. Apesar disso, o sociólogo da Unicamp, Alex Vargem, destaca que esse grupo populacional é sub-representado nos círculos de poder e postos de chefia. Essa desigualdade social está diretamente relacionada ao período da escravidão no País. “De cada dez anos da história do Brasil, sete foram sob regime de escravidão. Os resquícios estão presentes até hoje”, diz. Depois, explica o pesquisador, no período republicano, políticas eugenistas foram pensadas para embranquecer a população, com a presença de imigrantes europeus e asiáticos.

No início dos anos 1960, Vargem afirma que a política externa brasileira passou a estabelecer laços com os países africanos. “Começaram a vir estudantes, advogados, engenheiros africanos para o Brasil, para as universidades brasileiras. Não eram apenas imigrantes em situação de vulnerabilidade.” Em 1997, com o Estatuto do Refugiado, o País passa a conceder refúgio para pessoas que apresentem o “fundado temor de perseguição, raça, religião, grupo social, opiniões políticas e violações de direitos humanos.”

Mesmo assim, a saída do país de origem e a vinda para o Brasil são processos repletos de entraves. Vargem explica que muitos pagam taxas elevadas para obter vistos de turistas e fazer o pedido de refúgio aqui. “Os que chegam pelo aeroporto de Guarulhos passam pelas salas de impedimento e são mandados de volta aos países de origem. Outros acabam nem chegando, quando vêm em navios de carga”, afirma.

A partir dos anos 2000, este cenário passou a sofrer mudanças. “A pauta racial e as africanidades tomaram outra dimensão com o Black Lives Matter e a organização dos movimentos em torno das pautas africanas.” Apesar disso, o sociólogo ressalta que, nos últimos anos, muitos refugiados de países africanos têm deixado o Brasil. Para se ter ideia, entre 2014 e 2015, o Disque Denúncia registrou um aumento de 633% nos casos de xenofobia. Hoje, a tipificação deixou de existir. “Aqueles que não foram reconhecidos vivem num limbo jurídico e chegam a enfrentar doenças físicas e mentais.”

Neste sentido, o imigrante deve ser tratado como protagonista no País. “A contratação de africanos por empresas do setor privado, o fomento de empregos, a criação de ações afirmativas em faculdades são fundamentais para a sua autonomia”, ressalta Vargem. “Enquanto a pessoa bate tambor ela é aceita, mas a partir do momento que transcende limites sociais e territoriais, ela sofre impedimentos. Sem esse entendimento, teremos sempre a subalternização de determinados grupos.” E a constante repetição de barbáries escancaradas – tal como a morte de Moïse.

Fabíola Perez Paula Seco
Fabíola Perez Paula Seco