Após dois cancelamentos, a exoneração da presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir sua realização, o Censo segue em compasso de espera e corre o risco de sofrer um novo revés
Um dos muitos impactos da pandemia do coronavírus foi o adiamento do Censo Demográfico, programado para acontecer em agosto de 2020. Em tempos de isolamento social – e ainda sem vacinas disponíveis –, fazer com que 180 mil recenseadores visitassem 71 milhões de domicílios pelo País não era uma opção. À época, o orçamento foi realocado para pasta da Saúde, e a recontagem, postergada para o próximo ano.
Entretanto, o Orçamento de 2021 não considerou a realização de um novo estudo estatístico. Foram R$ 53 milhões de custeio no texto aprovado pelo Congresso, um valor muito aquém dos R$ 2 bilhões previstos para a sua realização e insuficiente até para garantir os seus preparativos básicos.
A questão orçamentária afetou também a forma como o Censo seria realizado. Foram excluídas perguntas sobre rendimentos e valores pagos em aluguel, o que gera implicações que vão de rompimento da série histórica a prejuízos no cálculo do déficit habitacional.
A sequência de reveses seguiu com o pedido de exoneração da presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, em abril, e a intervenção por parte do STF, em maio, determinando que o governo tomasse medidas para realização da pesquisa em 2022.
Este apagão estatístico afeta políticas de saneamento básico, educação, distribuição do Bolsa Família, o Fundo de Participação dos Municípios e, até mesmo, a quantidade de doses de vacinas distribuídas a cada unidade da Federação, para citar apenas alguns exemplos.
“Na escala municipal, este impacto é mais patente, pois boa parte das nossas políticas é desenvolvida em nível municipal. Podemos trabalhar com projeções, mas, ao longo do tempo, estas ficam cada vez mais desatualizadas. O Censo é o instrumento para o Brasil se conhecer, sem ele, estamos navegando no escuro”, afirma o estatístico José Marcos Pinto da Cunha, do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Embora se chame ‘Denso Demográfico’, é muito mais amplo. As informações são utilizadas por órgãos públicos, ONGs, universidades e a própria iniciativa privada, que procura entender características da população para balizar ações. Qualquer negócio demanda uma prospecção dos consumidores e suas características”, defende o pesquisador.
Exemplos recentes mundo afora apontam para a importância do estudo. Mediante uma recontagem, mostrou-se que a população chinesa está crescendo no menor nível desde a fundação da China comunista, além de estar se tornando mais velha e mais urbana. O fenômeno fez com que o governo revisasse mais uma vez a política do filho único, adotada em 1979, permitindo até três filhos por casal.
Nos Estados Unidos, os primeiros dados do Censo indicam uma transição demográfica e geracional da força de trabalho e servirão de base para a redistribuição dos 435 assentos na Câmara dos Deputados, de forma proporcional à população de cada Estado.
Enquanto o Censo brasileiro segue em compasso de espera, a PB ouviu três ex-presidentes do IBGE, todos funcionários de carreira da instituição, a fim de discutir a alocação de recursos, a importância dos questionários e a agenda estatística no País. Acompanhe.
Não existe Censo possível; existe Censo necessário. E o Censo necessário não é inviabilizado por uma questão orçamentária. A proposta do IBGE, em 2019, era de R$ 3,4 bilhões, caindo para R$ 2 bilhões, em 2020. Parece caro? O Censo norte-americano custou U$ 15,6 bilhões (R$ 80 bilhões, ao câmbio de R$ 5,12).
À época da realização do Censo de 2010, foram gastos cerca de R$ 1,5 bilhão. Hoje, seria preciso considerar a inflação e aumentos populacional na ordem de 20 milhões, e de domicílios, de 10 milhões – consequentemente, um maior volume de recursos humanos e tecnológicos.
Não se pode alegar que este custo seja inviável, ainda mais considerando as políticas orientadas desta base. O preço de conduzir um país da dimensão do Brasil no escuro é muito mais alto.
A decisão nem é mais política, pois se judicializou esta questão. Na verdade, constitucionalizou-se, já que o Censo está previsto na Constituição.
Não. As famílias estão progressivamente diminuindo de tamanho. Cerca de um terço dos domicílios é ocupado por uma ou duas pessoas; isso diminui a quantidade de informações coletadas, além do que, por se tratar de um questionário eletrônico, a dinâmica é muito ágil.
Além disso, o questionário simplificado, que cobria 90% dos domicílios, era respondido em até 5 minutos, enquanto o completo era preenchido em 15 minutos. O custo do Censo não está no tamanho do questionário; está no tamanho do Brasil e da população brasileira.
É um equívoco acreditar que a redução das perguntas irá reduzir os custos. Ademais, as perguntas retiradas causam um prejuízo colossal para compreensão de determinados aspectos da nossa realidade.
O custo com pagamento de aluguel, por exemplo, entra em um critério de cálculo de déficit habitacional, que em 2010 indicava 10 milhões de residências. Não se trata apenas de famílias sem casa para morar, mas de habitações que excedem a capacidade razoável ou mesmo questões envolvendo a coabitação.
Se a despesa com aluguel representa 30% ou mais da renda, isso já indica uma precariedade do ponto de vista habitacional, um comprometimento alto da renda.
Outro prejuízo é retirar a informação sobre renda de todos os moradores [atualmente, a pergunta se concentra apenas no responsável pelo domicílio]. É notório que há famílias que contam com uma composição de renda distribuída entre os vários moradores. Esta renda domiciliar vai posicionar a família em condições de nível de renda miserável, baixa, média ou alta.
Em 2010, notamos uma transformação demográfica, uma sociedade com taxas de fecundidade e mortalidade mais baixas. Com isso, tivemos um aumento na expectativa de vida e uma população mais envelhecida. O processo demográfico culminou na Reforma da Previdência, o que mostra a importância do Censo. Somente essa pesquisa pode dizer se este processo continua em curso ou está concluído. Sem estatística, não se faz política pública.
O Brasil não encolhe para fazer o Censo. O orçamento pode até encolher, mas o País, não. Estes R$ 2 bilhões estão, inclusive, muito aquém da necessidade real. Além do que, não é possível eliminar processos.
Fazer o Censo pela internet, por exemplo, não depende apenas do domínio da tecnologia por parte do IBGE. Quando se fala de autopreenchimento, existem problemas como omissão de dados e falta de entendimento das perguntas, além da deficiente inclusão digital brasileira. É preciso levar em conta questões culturais e de infraestrutura.
Existe toda uma complexidade em recensear, ao mesmo tempo, os moradores do Copan [edifício-símbolo de São Paulo, com cerca de 5 mil moradores] e os ianomâmis, que não estão fixados em um ponto geográfico. Quando chega este momento, não pode faltar dinheiro, não pode faltar gente, não pode haver mudanças de orientação.
“Enxugar” o questionário não é tão central do ponto de vista de reduções orçamentárias quando se leva em conta que o principal custo de operações deste tipo é colocar o entrevistador treinado e equipado na porta dos domicílios. Entre 60% e 70% do custo do Censo são compostos por isso.
Além do que, não se trata de questionário que o IBGE queira fazer, mas aquele que a sociedade brasileira demanda e que as limitações e potencialidades do Censo permitem que se construa.
Um dos problemas que precisam ser superados, nas próximas décadas, diz respeito à padronização e à harmonização das nomenclaturas e classificações.
O Brasil não dispõe de um sistema centralizado que aponte o número de nascimentos, divórcios e mortes, por exemplo. É preciso que o IBGE colete e sistematize as informações em cada um dos cartórios.
Da mesma forma, os endereços não são padronizados, cada instituição usa uma formatação diferente. Isso é um complicador na produção de informações estatísticas e geocientíficas.
Seria preciso investir na estrutura de informação do País, mas, para isso, é necessário adotar regras unificadas, mobilizar aparatos jurídico e interinstitucional. Seria uma ferramenta para, inclusive, reduzir custos – mas, antes, é preciso que haja investimento.
Os escandinavos iniciaram a transição para um modelo de estatística baseado em registros administrativos na década de 1960. É um processo longo.
É preciso uma política de recomposição da equipe técnica. Faltam pessoas, técnicos sobretudo. Estamos passando por um momento de transição na gestão da informação, com inteligência artificial, Big Data. Estas novas competências precisam ser incorporadas de forma interdisciplinar.
Para que haja Censo em 2022, é emergencial que haja uma liberação de R$ 250 milhões a R$ 300 milhões ainda neste ano. É preciso realizar contratações, licitar material, atualizar cadastro de endereços. Se este orçamento não for recomposto, a operação em 2022 será inviabilizada.
É preciso haver uma estratégia política com base em projeto claro para execução do Censo em agosto de 2022. Isso envolve um trabalho permanente de assessoria parlamentar dentro do Congresso Nacional, mostrando a importância do trabalho do IBGE a deputados e senadores.
Não existe, como não existiu no passado, aprovação de orçamento sem uma participação política. Este trabalho foi esquecido, não existe uma frente parlamentar cuidando deste assunto, além do que não é possível fazer articulação política do dia para a noite.
A redução do questionário devia ser resolvida de forma menos autoritária ou menos centralizada. As decisões mais prementes não estão sendo colocadas em fóruns técnicos.
Todos os países estão revisando os questionários para incorporar dados da pandemia; este é o beabá da estatística, tais impactos precisam ser medidos. Enquanto isso, estamos indo na direção contrária, reduzindo o nosso questionário.
A instituição está abandonada, não há recomposição do quadro. Com isso, não se avança na agenda e, pior, se perde conhecimento e credibilidade internacional. Não é um problema atual, já se arrasta por mais de uma década, mas, atualmente, a equação é mais complexa, pois envolve faltas de pessoal e de orçamento, perda da credibilidade e judicialização.
O censo deveria ser um momento de inclusão, pertencimento, em que se consegue unificar um país sob uma discussão. O que vemos é o contrário.