Órfãos da covid-19: uma tragédia social

08 de outubro de 2021

A orfandade no País decorrente da pandemia gerou um trauma coletivo, segundo especialistas. Enquanto o Poder Público não se mobiliza para aprovar projetos de assistência a crianças e adolescentes que perderam os pais para o novo coronavírus, o terceiro setor luta contra a falta de recursos para ajudar estas famílias.

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A dona de casa Maria Alice de Souza Gentil, de 65 anos, cuida de quatro netos desde o dia 9 de maio deste ano. A estudante Ester Moraes Soares, de 17 anos, mora com os tios desde janeiro. Ambas foram duramente atingidas pela pandemia sem terem sido contaminadas pelo coronavírus. As amazonenses vivem até hoje a dor do luto de terem perdido filha, pai e avó para a doença que vitimou cerca de 600 mil pessoas em todo o País. A rotina de Maria Alice se transformou desde que a filha de 45 anos foi internada no Hospital Universitário Getúlio Vargas, em Manaus. “Na hora, eu não acreditei. Aliás, para mim, até hoje ela não está morta”, diz a dona de casa. Já Ester, que havia perdido a mãe aos dois anos, não imaginava o futuro sem ter por perto o pai e a avó, mortos após ficarem dias internados com falta de ar pela covid-19. “Fiquei perdida. Não sabia o que aconteceria dali para a frente.”

Ester e os netos de Maria Alice fazem parte de um contingente de 113 mil pessoas que perderam pai, mãe ou ambos para o coronavírus entre março de 2020 e abril de 2021. Se consideradas as crianças e os adolescentes que tinham como principais cuidadores avôs e avós, o número salta para 130 mil em todo o País, de acordo com um estudo científico publicado pela revista Lancet. Em todo o mundo, são mais de 1,5 milhão de órfãos. “É uma tragédia que cria um efeito cascata, com aumentos do trabalho infantil, da exploração sexual infanto-juvenil e, até mesmo, da participação em atos infracionais em razão das crises humanitária, social e econômica”, afirma Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos humanos e segurança pública pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para ele, que também é membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Indica), as famílias que perdem membros para o vírus deixam de ter sustentabilidade. “Muitos desses avós que morreram sustentavam filhos e netos. Com isso, mais pessoas desta faixa etária ficaram em situação de vulnerabilidade social.”

Crianças e adolescentes foram duramente afetados. Confinados em casa, tiveram dificuldades para assistir a aulas, passaram a conviver mais tempo com adultos e tiveram restrições em seus espaços de lazer. “Faltam cômodos para as crianças se concentrarem, houve uma grande perda da convivência comunitária, além do aumento nos índices de violência doméstica”, diz Alves. Números do Disque 100, programa do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), mostram que, em 2019, foram registradas 87 mil denúncias de violência contra essa faixa etária. Em 2020, o número saltou para 95 mil. “Ainda assim, é preciso considerar a subnotificação, uma vez que creches, professores e coordenadores são fundamentais para diagnosticar agressões e maus-tratos.” Além disso, segundo o advogado, aumentaram os casos de exploração do trabalho infanto-juvenil. “Muitos irmãos mais velhos passaram a cuidar dos mais novos.”

“É uma tragédia dentro da pandemia que cria um efeito cascata, com aumentos do trabalho infantil, da exploração sexual infanto-juvenil e, até mesmo, da participação em atos infracionais em razão das crises humanitária, social e econômica.” Ariel de Castro Alves, advogado

Extrema vulnerabilidade

Na pequena comunidade de Purupuru, município de Careiro Castanho, a 102 quilômetros de Manaus, a família de Maria Alice sentiu todos estes impactos. Ao receber a notícia da morte da filha, que ficou três meses intubada em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), ela teve que deixar a capital amazonense para morar no interior por falta de dinheiro para o aluguel. Com a responsabilidade de cuidar de sete netos, a dona de casa vendeu bens pessoais para construir mais quatros a fim de abrigar toda a família. “Não temos recursos, meu marido ganha um salário”, diz. Dentre os netos, a mais velha, de 25 anos, não trabalha nem estuda para ajudar a avó a cuidar do bebê de seis meses. “Eles procuram não demonstrar a tristeza, mas quando perderam a mãe, não queriam mais estudar. Aos poucos, começaram a ter vontade de novo, mas aqui tudo é muito difícil.”

A família de Maria Alice é uma das que recebe apoio do projeto Eu Amo Meu Próximo, do Instituto de Pesquisa e Ensino para o Desenvolvimento Sustentável (Ipeds). A iniciativa arrecada cestas básicas, fraldas descartáveis e produtos de higiene para bebês, crianças e adolescentes órfãos em decorrência da disseminação do vírus. O projeto nasceu em janeiro, durante o estopim do surto em Manaus (AM), para dar assistência a bebês que ficaram sem leite materno, e, hoje, assiste 186 pessoas com menos de 18 anos que vivem com familiares. “Essas crianças estão em extrema vulnerabilidade. Algumas só tinham a mãe como mantenedora da família e ficaram sem nada”, afirma Glauce Galucio, diretora do Ipeds e responsável pelo projeto. Segundo ela, no início do ano, eram os hospitais que entravam em contato com o instituto para informar a orfandade. Atualmente, com a diminuição no número de casos, quem pede ajuda são os conselhos tutelares. “A diferença é que, antes, as pessoas ficavam muito sensibilizadas, mas, com o passar do tempo, elas se esquecem.”

Crianças e jovens que perdem os pais em decorrência da infecção passam a viver com familiares com os quais possuem algum vínculo afetivo. “Isso é necessário para que elas não sejam ainda mais revitimizadas. São as chamadas ‘famílias estendidas’, que devem pedir a guarda, somente em casos excepcionais devem ir para serviços de acolhimento”, afirma Alves. Para os novos núcleos familiares, as necessidades vão desde demandas alimentares até assistências jurídica e psicológica. “Muitas vezes, os familiares não têm condições para sustentar mais uma pessoa em casa. Por isso, precisamos de guardas subsidiadas por programas de acolhimento familiar e institucional.” O advogado defende ainda que haja uma extensão do auxílio emergencial ou a implementação de um programa de renda para priorizar os órfãos da crise sanitária.

Passados mais de seis meses do surgimento das primeiras iniciativas de acolhimento, as necessidades das famílias começam a se sobrepor. “São demandas alimentares, jurídicas, psicológicas e de saúde, e não sabemos até quando conseguiremos ajudar”, diz Glauce. Ester, que também recebe apoio do projeto, perdeu o pai no dia 13 de janeiro. Quinze dias depois, soube que a avó não resistira às complicações ocasionadas pela contaminação. “Foi muito difícil. Meu tio estava desempregado, minha tia se viu perdida, eu me vi sem mãe, nem pai e avó. Mas, depois, veio a ajuda do projeto, e agora tudo está se acertando.” Além dos gastos cotidianos, Alves alerta para a importância da assistência jurídica nestes casos. “Estas pessoas precisam ter acesso à Justiça e às defensorias para que consigam entrar com ações de guarda rapidamente nas varas da infância e juventude.”

A advogada Renata Paschoalini Arkchimor, vice-presidente da Associação Mães que Acolhem, que ajuda órfãos de Jundiaí, no interior de São Paulo, concorda que as demandas persistem. “Eles vão perdendo roupas, itens de higiene e renda”, afirma. “Percebemos que a nossa contribuição é dar um conforto a estas famílias para que consigam viver o luto com dignidade, sem terem de ficar desesperadas para pagar uma conta, sem dinheiro ou alimentos.” O Mães que Acolhem nasceu da ideia de três mães que decidiram ajudar um jovem de 20 anos que havia ficado órfão. Atualmente, é coordenado por oito pessoas e tem mais de 400 profissionais cadastrados para atender 69 crianças e suas famílias. “O foco é oferecer assistências material e psicológica com tudo o que a família precisa e fazer uma reavaliação a cada seis meses”, explica Renata. A vice-presidente explica que, mesmo sem condições de ampliar o atendimento para outros Estados em razão da necessidade de acompanhamento das famílias, as iniciativas ajudam a compor uma importante rede de apoio aos órfãos.

“Percebemos que a nossa contribuição é dar um conforto a estas famílias para que consigam viver o luto com dignidade, sem terem de ficar desesperadas para pagar uma conta, sem dinheiro ou alimentos.” Renata Paschoalini Arkchimor, vice-presidente da Associação Mães que Acolhem

Onde entra o Poder Público?

Embora existam projetos do terceiro setor que reúnem esforços para dar assistência a crianças e jovens que perderam familiares para a covid-19, o Poder Público ainda não se mobilizou para garantir auxílio a esta geração afetada pela doença. “Reconhecer a existência desses órfãos não tem sido uma preocupação de prefeituras, governos estaduais e federal”, diz Alves. Para o advogado, o governo federal deveria ter mapeado a orfandade por meio de dados contidos em certidões de óbitos. “Há uma completa omissão e negligência.” O ex-ministro da saúde e deputado federal Alexandre Padilha (PT/SP) é autor de dois projetos para dar assistências às vítimas. Um deles é um Projeto de Lei (PL) que prevê uma política de atenção integral a vítimas e familiares de vítimas da pandemia, e o outro prevê uma indenização paga pelo Estado às crianças que perderam os pais. “Estamos propondo ações de acolhimento e uma bolsa a este público como forma de reduzir os impactos causados”, disse.

Padilha, que classifica o cenário como gravíssimo, acredita que só será possível vislumbrar a dimensão do impacto da calamidade sanitária sobre crianças e jovens nos próximos anos. Por isso, os projetos buscam minimizar o gargalo. “É necessário vontade do governo para serem implementados, mas este tem se mostrado insensível à situação”, afirma. “O principal exemplo é o projeto de um consórcio formado pelos governadores do Nordeste para criar uma bolsa de apoio aos órfãos da pandemia. O Brasil vai precisar de um grande programa de reconstrução do País.”

Em São Paulo, o PL 588, de autoria da deputada estadual Marian Helou (Rede), cria o Plano de Políticas Compensatórias destinado a crianças e adolescentes de até 18 anos em situação de orfandade. “Ele tem como um dos grandes pilares a constituição de um cadastro unificado e atualizado sobre a situação de crianças e adolescentes que tenham perdido pais, mães ou responsáveis para a enfermidade. Trata da questão como uma política pública estruturada e conectada com os dados que o Estado já tem”, ressalta a deputada. Em junho, o governo estadual paulista anunciou a criação de um programa que oferece R$ 300 às famílias vulneráveis que perderam ao menos um integrante. “Nosso PL  tem uma visão de longo prazo, com enfoque nas crianças e nos adolescentes até que estes atinjam a idade adulta.”

A mortalidade afetou ainda mais crianças negras e periféricas. “Essas questões vão perdurar por gerações, e o Poder Público deve assumir esta responsabilidade”, afirma Maria Carolina Schlittler, assessora da parlamentar. “Pensamos em políticas compensatórias em vários setores, mas, sobretudo, para reduzir a evasão escolar. Temos visto muitas crianças mais velhas assumindo responsabilidades centrais em núcleos familiares. Neste sentido, as crianças pobres e negras que já eram excluídas das políticas públicas devem ter prioridade neste momento.” Segundo Glauce, do Eu Amo Meu Próximo, a orfandade pandêmica deve ser uma preocupação nacional. “Não se trata de casos isolados, como um acidente aéreo ou terrestre; gerou-se um trauma coletivo que atinge o País como um todo.”

Fabíola Perez Paula Seco
Fabíola Perez Paula Seco