Nascido em 1925, o pensador polonês Zygmunt Bauman foi pioneiro ao criar o conceito de “modernidade líquida”, detectando o sentimento de fluidez das relações humanas e o medo iminente do amanhã, comportamentos típicos da geração Z, em meados da década de 1990. Com mais de 30 obras abordando temas como “relações líquidas”, “medo líquido” e a pressão do consumo exacerbado e seus efeitos na sociedade, Bauman acompanhou o surgimento do mundo digital e das redes sociais, alertando acerca do risco da ansiedade e da busca do prazer imediato, que acabam conduzindo a pessoa a um isolamento social.
Paula, de 26 anos, é formada em Design Industrial pela Universidade de São Paulo (USP), mora sozinha, já passou de forma fugaz por mais de meia dúzia de empregos e há dois anos atua em projetos digitais em uma grande rede farmacêutica. Já Pedro, aos 22, ingressou e abandonou quatro cursos, vive com a mãe e passa horas enclausurado no quarto, grudado em games no smartphone com amigos virtuais. João, por sua vez, com 23, trabalha como pedreiro, tem uma filha de um ano e sonha se formar em Educação Física no próximo ano.
Com nomes fictícios, as personagens descritas são pessoas conhecidas do repórter da Problemas Brasileiros, nunca se viram pessoalmente, mas têm um ponto em comum: nasceram a partir de 1º de janeiro de 1995, fato que as enquadrada na sociedade como geração Z, que sucede a Y (ou millennials, nascidos entre 1981 e 1994). São jovens, ainda mais comparados com quem veio antes, como a geração X (nascidos entre 1965 e 1980) e os baby boomers (entre 1946 e 1964), mas correm o risco e o medo de se tornarem velhos quando os pertencentes à geração Alpha (nascidos a partir de 2010) ascenderem ao mercado. Por serem nativos digitais, a geração Z tem consciência do poder da tecnologia nas transformações globais e no mercado de trabalho. Acompanham as novidades, estão permanentemente conectados, preocupam-se com questões identitárias e de qualidade de vida, mas convivem no mundo real com dramas sobre os quais não conseguem controlar, como o desemprego, a conjuntura econômica e a violência. Em meio ao volume de informações, a sensação é de ansiedade e insegurança, como já revelam as pesquisas no pós-pandemia. Se para o baby boomer Cazuza o futuro era duvidoso, mas ainda havia opções para “grana e dor”, para os zennials se trata de uma certeza carregada de múltiplas incertezas. Uma questão de sobrevivência.
Entender a geração Z não é uma tarefa fácil, nem mesmo para as megacompanhias de tecnologia e pelos profissionais que lidam diariamente com o meio digital. “É a pergunta que as Big Techs e o Vale do Silício estão fazendo, e não há uma resposta. Cada jovem tem o seu mundo específico na tela do smartphone. As marcas e agências estão perdidas, não sabem como se comunicar com a geração Z, precisam esperar o que vem deles para agir e lançar campanhas”, afirma o estrategista digital Pedro Cortella, dono da agência Sophya e fundador do podcast A grande fúria do mundo, em conjunto com o pai, o filósofo Mario Sergio Cortella. “Há, historicamente, um preconceito contra os jovens que vem desde os baby boomers. Quando comecei o podcast com o meu pai, o produtor do programa perguntou se eu tinha um irmão mais jovem para gerar um clima de conflito de gerações”, conta Cortella, de 39 anos. “Na minha agência, tenho cinco funcionários da geração Z que nem cogitam fazer faculdade. Eles apostam no que já estão desenvolvendo, não querem investir em um curso caro correndo o sério risco de não serem absorvidos pelo mercado de trabalho lá na frente”, diz.
Essa sensação de insegurança dessa geração provoca distintas interpretações na mídia, algumas até mesmo jocosas, como é o caso do filósofo e psicanalista Luiz Felipe Pondé, que em seus artigos e palestras costuma se referir a uma “sociedade infantilizada”, marcada por jovens que se recusam a sair da casa dos pais e que priorizam supostos hábitos alimentares (dietas veganas) e posturas identitárias como subterfúgios, em vez de assumir responsabilidades financeiras e emocionais. Procurado pela reportagem, Pondé não retornou o contato. Cortella não se sente alinhado a esse pensamento. “Se os jovens enfrentam quadros de depressão e ansiedade, é por causa da velocidade das informações em um mundo hiperconectado. É natural que surjam conflitos, ainda mais em ambientes de trabalho historicamente hierarquizados”, ressalta. Ele conta o episódio presenciado em um grande hospital privado em uma palestra. Na ocasião, diz ele, conversou com um médico residente que praticamente não teve contato com livros impressos na faculdade, ao contrário de seu superior, que recebeu uma educação nos moldes formais. “O residente tinha acesso imediato às mais recentes pesquisas e aos estudos clínicos globais e já se sentia obrigado a pôr em prática os próprios conhecimentos. Já o médico-chefe nem sequer sabia desses estudos”, afirma.
Segundo estudo da consultoria HSR — Specialist Researches, divulgado no fim de 2022, 49% dos jovens da geração Z disseram ter sido diagnosticados com alguma espécie de ansiedade e 24% com sintomas de depressão. Realizada no fim da pandemia, com mil pessoas divididas entre as classes A, B e C das principais capitais do Brasil, a pesquisa revelou que a ansiedade foi o fator mais citado pelos jovens, seguido pelo medo de falar em público, causa que se justifica pelo isolamento social da crise sanitária.
Para o psicólogo Hélio Deliberador, da faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e responsável pela clínica da instituição, é latente a existência de um quadro geral de ansiedade, acentuado no período pandêmico, mas que não pode ser considerado um sintoma de infantilização. “Há o impacto das mídias sociais, que os tornam mais imediatistas e com dificuldade para lidar com o tempo cronológico e a frustração, sonhando com uma solução mágica que torne mais fácil o acesso aos bens. Contudo, o Poder Público poderia tomar medidas de longo prazo que buscassem saídas para os jovens de baixa renda”, diz. Uma solução, ressalta o professor, seria ampliar a oferta de ensino técnico em todo o País para atingir esse público a fim de evitar a evasão do ensino médio. No âmbito acadêmico da PUC, foi implantada uma disciplina, no primeiro ano de todos os cursos, que desenvolve reflexões a respeito da passagem da adolescência para a vida adulta. “Na clínica, enfatizamos a cada paciente que foque em seu plano de carreira e de vida, com base nas teorias de Freud, Jung e autores contemporâneos.”
No primeiro semestre, a consultoria Deloitte divulgou a pesquisa global Gen Z e Millennial Survey, com resultados específicos do Brasil quando comparados a outros países, que destoam do senso comum que a geração Z se resume à bolha contida em bairros de elite, como Vila Madalena (SP) e Leblon (RJ). A pesquisa ouviu 500 representantes dos zennials, de distintas classes sociais, e 300 representantes dos millennials.
A maior preocupação da geração Z é o desemprego (32%), seguido por custo de vida (31%), discriminação e preconceito (30%), criminalidade e violência (24%) e educação (21%). No estudo global, o maior receio é o custo de vida (35%), enquanto a violência cai para 17%.
“É preciso cuidado para não cairmos no discurso reducionista da infantilização. É uma geração preocupada com desemprego, crise econômica e diversidade. A ansiedade é decorrência da insegurança quanto ao futuro”, afirma Dani Plesnik, diretora da Deloitte Brasil.
E completa: “no Brasil, é mais fácil dizer ao chefe que se machucou no futebol do que assumir que está com síndrome do pânico. É algo muito novo que exige uma transformação cultural”.
O lado positivo do estudo é o otimismo do brasileiro referente ao futuro, o que inclui tanto os cenários político e econômico e a situação financeira pessoal como o meio ambiente e as relações de trabalho e o papel das empresas. São 65% dos jovens que projetam um futuro mais azul ante 38% dos colegas de outros países, fato explicado por Dani que se deve ao espírito latino do brasileiro, marcado pelas relações afetivas mais calorosas e facilidade para trabalhar em equipe. O comparativo em relação aos millennials apresentou números semelhantes. Pensando nas gerações que ainda estão para chegar, o futuro do mercado de trabalho é promissor para os jovens nas próximas décadas, de acordo com o economista Marcelo Neri, professor na Fundação Getulio Vargas (FGV), diretor do FGV Social e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Vai faltar jovem no futuro, e quem tiver uma boa formação com conhecimento digital poderá aproveitar as oportunidades”, afirma. De acordo com estudos da FGV, há, hoje, cerca de 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, e a expectativa é que esse contingente caia para 25 milhões até o fim do século, com crescimento contínuo da faixa de idosos acima de 60 anos.
A pandemia castigou os jovens pelo desemprego e pela falta de oportunidades, gerando o chamado “efeito canguru” (volta para a casa dos pais) e o fenômeno “nem-nem” (nem estuda nem trabalha), que atingiu 30% dos jovens, mas já apresenta sinais de reversão e hoje está na casa de 22%. Segundo Neri, as classes menos favorecidas foram mais atingidas, em especial as mulheres (28%) e pretos e pardos, com 22% e 24%, respectivamente. “A pesquisa mostra que 59% de jovens com ensino fundamental enquadram-se no ‘nem, nem’, enquanto o índice cai para 12% para quem tem superior completo.
“No Brasil, os jovens carentes acabam entrando em um círculo vicioso, no pior sentido. Entram em trabalhos precários, não conseguem sair, não ganham experiência e não conseguem ascender profissionalmente”, explica Neri. O drama se agrava quando o jovem trabalha em empresas de tecnologia que sejam monopolistas e tenham poder de mercado, inibindo a concorrência, o que limita o leque de opções. Como professor, Neri observa a passagem da adolescência para a vida adulta como um período de inquietações e mudanças não apenas no mercado de trabalho. Por ter atuado na esfera pública federal, ele defende um modelo de ensino mais flexível, principalmente na eventual mudança de carreira por meio do Sisu e do Enem. “Deveria haver um modelo mais flexível, reduzindo os atalhos, sem que o estudante tenha de voltar à estaca zero.” O economista frisa que há, ainda, a dificuldade de se elaborarem políticas públicas integradas à juventude em decorrência da autonomia do governo federal, dos Estados e dos municípios. “Os temas ligados à educação e à segurança estão com os governos estaduais, enquanto as ações voltadas à infância cabem aos municípios”, explica.