Para além da previdência, o etarismo

07 de fevereiro de 2024

   

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Como uma profecia que se autorrealiza, a visão que uma sociedade tem sobre a terceira idade acaba influenciando a vivência real da velhice. A ideia de que o envelhecimento é altamente limitador se traduz em atitudes que limitam e isolam as pessoas mais velhas do restante da sociedade. E frente à porcentagem de idosos crescendo em todo o mundo, não faz sentido que uma parcela tão grande seja excluída, tratada como cidadãos de menor valor.

Muito além de rever os sistemas previdenciários, o aumento do número de idosos tem descortinado a necessidade de mitigar o antigo problema do etarismo, preconceito em relação à idade das pessoas. O conceito também pode se aplicar aos jovens, mas o grande desafio atual tem sido, de fato, em relação aos que já passaram dos 60 anos.

No ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) criou um índice de etarismo, no qual o Brasil se posicionou em nível moderado, semelhante ao de países como México e Colômbia, mas pior que outros latino-americanos, como Chile e Argentina, cujas taxas apresentadas de preconceito contra essa população foram consideradas “leves”. A pesquisa, realizada com amostras representativas de 57 países, se baseia em um questionário com nove perguntas sobre atitudes em relação à idade.

No caso do Brasil, a adaptação cultural para aceitar e incluir a população mais velha exige pressa, por causa da velocidade da transformação do perfil populacional. Em países como a França, o porcentual de idosos levou 150 anos para subir de 10% para 20% da população, ao passo que, no território nacional, a mudança de patamar vai levar pouco mais de 20 anos, segundo o estudo da OMS. “Imagine um país envelhecido e cheio de preconceito contra os idosos?”, questiona a médica Alessandra Tieppo, secretária-geral da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). “Por isso, é importante educar desde as crianças que o idoso faz parte da sociedade, da família. Ele não é um peso”, afirma. Segundo a geriatra, a discriminação pela idade está tão arraigada culturalmente que os próprios idosos acabam se limitando. “De tanto ouvir ao longo da vida, até a própria pessoa idosa fala: ‘Não tenho mais idade para viajar, ou para começar a aprender algo novo, ou para sair para comer uma comida diferente”, cita.

Dentre uma série de ideias comuns entre os brasileiros, que Alessandra chama de “mitos”, um dos mais graves e excludentes diz respeito à perda de memória. Trata-se de uma mentira que se revela até em momentos entre jovens, quando alguém esquece qualquer coisa e já ouve que “está ficando velho”. “Falar da falta de memória dos idosos é muito comum, mas uma inverdade. A idade nos torna menos multitarefas, prestando atenção em só uma coisa por vez. É difícil cozinhar e assistir à novela ao mesmo tempo, por exemplo. Digo que 99% dos supostos problemas de memória são questões de atenção. O idoso pode fazer tudo, pode aprender, mas de maneira diferente”, explica Alessandra.

Atitudes baseadas nos mitos sobre o envelhecimento acabam piorando a qualidade de vida do indivíduo. “A pessoa começa a sofrer de incontinência urinária, mas não procura ajuda médica porque acha que é normal da idade — porém não é”, cita a geriatra.

Nem sempre os preconceitos são mal-intencionados, mas quase sempre acarretam prejuízos. “Às vezes, por superproteção, muitas famílias não querem que os mais velhos saiam de casa. Sem andar, essas pessoas acabam perdendo o tônus muscular, e, de fato, vai se tornando mais perigoso sair de casa”, ressalta a médica.

Para aplacar a tendência cultural de estabelecer um limite etário como parâmetro para aceitar certos comportamentos nos outros, Alessandra recomenda reflexão e cautela. “Cada um tem de reconhecer os méritos da própria idade, além dos próprios valores. E se manter ativo na sociedade. Não ter restrições de saúde estimula a agir melhor também com o outro.”

CULTURA JOVEM

O etarismo tem uma relação profunda com a supervalorização e, até mesmo, com a idealização da juventude, explica Gisela Castro, especialista em etarismo e professora de mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Esse fenômeno prejudica a todos. “As grandes cidades brasileiras têm um ambiente onde tudo se passa como se um certo ideal de juventude, atlética e perfeitamente saudável, fosse a norma. Coisas como o tempo do sinal para atravessar a rua, os ônibus com degraus altíssimos para subir, não foram pensados para todos”, afirma a professora. Gisela lembra que esse modelo exclui não apenas idosos, mas também crianças, mulheres grávidas e pessoas com alguma deficiência ou mobilidade reduzida. “É como se esses indívíduos estivessem atrapalhando o ritmo, em vez de se respeitar o ritmo de todos, incluindo pessoas que fujam do imaginário que é da pessoa plenamente capaz do ponto de vista físico”, afirma. A eleição do jovem como modelo para se desenhar a cidade acaba, na verdade, dificultando o dia a dia de muita gente.

Felizmente, diante da velocidade do envelhecimento populacional nacional se mostrar acentuada, há países e cidades que já passaram por esse processo e podem mostrar saídas factíveis — como os ônibus com degraus na altura da calçada de Londres. As dificuldades práticas não se limitam aos serviços oferecidos pelo setor público. O sistema bancário é outro exemplo de como os mais velhos foram desconsiderados na hora de se desenhar a oferta. “Os bancos se digitalizaram da noite para o dia, sem preocupação em treinar o público. Se você não faz as ações com velocidade, os caixas automáticos param a operação. E, mais uma vez, não só os mais velhos enfrentam dificuldades: pessoas pouco escolarizadas também”, alerta Gisela. Muitas das inovações tecnológicas seguem na mesma linha, lembra a professora. Um exemplo clássico são controles remotos de TV com botões muito pequenos, sem nada escrito. “Colocam o idoso num lugar vexatório de depender de alguém. Não é por serem bobinhos que não conseguem. Muitas vezes, é porque a mão fica trêmula mesmo”, ressalta.

Já quando se trata do setor produtivo e de serviços, a negligência em relação aos mais velhos pode custar caro. “Há muita gente mais velha que até já se aposentou e ainda trabalha, que conseguiu juntar capital ao longo da vida e tem dinheiro para investir. Existem pessoas mais velhas que, agora, têm tempo para viajar. Mas as empresas continuam obcecadas pela juventude — só olham para esse público na hora de falar sobre produtos de saúde. O mercado continua relapso”, afirma Gisela.

Para mudar o panorama, a pauta da diversidade, que já chegou à grande parte das empresas, precisa ser abrangente para incluir também os mais velhos, recomenda a professora da ESPM. “Diversidades geracional e etária seguem sendo ignoradas. Como desenvolver um produto que só uma parte ínfima da população sabe usar? Temos de nos preocupar em treinar os trabalhadores para essa diversidade.” Uma sociedade “jovencêntrica”, como define Gisela, é também influenciada pela lógica consumista. Existe a percepção de que tudo o que é novo é melhor: um produto, mesmo bom, precisa ser substituído pelo mais novo. Esse modelo — que traz repercussões terríveis para o meio ambiente —reduz a empregabilidade de pessoas que ainda nem estão perto da idade de se aposentar. “É uma tirania do mercado alguém na faixa dos 40 anos se sentir velho, como se estivesse obsoleto, pronto para ser substituído pelo modelo mais novo”, afirma. Por experiência própria, Gisela garante que a população mais velha pode continuar produzindo. “Sou professora e pesquisadora, obrigada a estar sempre estudando, melhorando pela natureza da minha profissão. O fato de eu ter mais idade é um patrimônio, é ter passado por mais experiência, ter lido mais coisas — fatores que já me ajudam”, conta.

Mórris Litvak, CEO e fundador da Maturi, agência de emprego especializada em pessoas com 50 anos ou mais, também vê como um desperdício o menosprezo pela experiência desse público no mundo corporativo. “Montei a agência inspirado na minha avó, que trabalhou até os 82 anos por vontade própria, estava superbem”, relata. O foco da empresa, contudo, é mesmo com trabalhadores a partir de 50 anos, porque eles já sofrem preconceito etário. “É mais difícil para serem empregados e, na hora de fazer cortes, são os primeiros. As empresas costumam alegar a questão do custo, mas é uma visão míope, porque têm muito a perder ao dispensar os mais experientes”, afirma Litvak. “São vários os mitos: de que vão ficar mais doentes; que, pela idade, o plano de saúde da empresa será mais caro; que não sabem mexer com tecnologias; que não estão abertos a mudanças etc.”, diz o CEO, enfatizando que as pesquisas mais recentes indicam, na verdade, que equipes multigeracionais melhoram a criatividade e diminuem a rotatividade geral dos funcionários. 

Embora considere que a mudança esteja lenta face à urgência do perfil populacional brasileiro, o empresário conta que já tem muito mais abertura ao falar sobre o tema do que quando começou na área, há oito anos. “À medida que surgem mais casos, mais experiências de sucesso, estas acabam ajudando outras empresas a se interessarem”, garante. Fato é que a necessidade de uma força de trabalho mais madura é incontornável. “Além de viver mais, estamos tendo menos filhos. A força de trabalho vai envelhecer, e as empresas não terão outro jeito senão se adaptarem.”

Como ainda é difícil o caminho do emprego a partir dos 50, muitos acabam optando pela trilha do empreendedorismo para se manterem ativos. Por mais de duas décadas, Maria Luiza Silva foi executiva da área de Finanças — até se “divorciar” do mundo corporativo, há sete anos. “Foi uma separação de comum acordo. Não queria mais aquela vida, e sabia que o mundo corporativo também não me queria mais, porque já estava na casa dos 50 anos. Mas também não poderia ficar sem trabalhar”, recorda-se. Ela e o marido acabaram se tornando sócios de uma franquia de construção. Atualmente, o casal gere duas lojas da Casa do Construtor, em São Paulo. “Sempre tive vontade de empreender, e deu certo para mim. Mas sei que não é o caminho para todo mundo. Até porque há mais tempo para errar e acertar quando se tem 20 ou 30. Quando mais velho, não se pode errar”, expõe.

Ela acredita que os anos acumulados lhe tornaram uma pessoa mais equilibrada na hora de trabalhar. “Eu tenho maturidade para não entrar em todas as batalhas”, afirma. Também avalia que trabalhar é um aspecto essencial para a sua vida. “Tem sido muito motivador. Aprender coisas novas é estimulante, assim como a convivência com gente jovem”, conta. E Maria Luiza não pretender parar por aqui: agora, tem planos pessoais de aprender uma nova língua e tocar um instrumento musical.

Muita pesquisa e avanços tecnológicos permitiram à humanidade o aumento da expectativa de vida. A longevidade é uma conquista que precisa ser celebrada. Aceitar bem o envelhecimento traz benefícios para os mais velhos — e para todos os demais.

A ÍNTEGRA DESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #479 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Luciana Alvarez JOÉLSON BUGGILLA
Luciana Alvarez JOÉLSON BUGGILLA