Nos últimos dois anos, o número de mulheres que se tornaram chefes de família por meio do empreendedorismo cresceu 7%. O dado, retirado do relatório especial “Empreendedorismo Feminino no Brasil” feita pelo Sebrae, em 2019, demonstra que cada vez mais as mulheres buscam aumentar sua renda, independência financeira e autonomia
Com os avanços no setor, a pesquisa também aponta que 9,3 milhões de mulheres administram pelo menos uma empresa no Brasil, representando 34% de proprietários de negócios no País. Capaz de ultrapassar os campos da economia e da independência financeira, o empreendedorismo feminino pode ser visto como a ferramenta principal para controlar as desigualdades de gênero e social.
“Hoje, o empreendedorismo feminino é uma forma de atuação em que a mulher se posiciona na sociedade com um lugar e uma perspectiva de liderança. Quando ela se coloca como uma mulher empreendedora, automaticamente vira protagonista de sua própria vida, do seu negócio, e se torna responsável por suas decisões”, afirma a empreendedora Marcele Porto da Silva, autora do livro A alma feminina no negócio (Editora: e-galáxia; 1ª edição; 15 julho 2019), que traz orientações a partir da sua experiência no mundo dos negócios.
Ainda que o cenário tenha melhorado, as mulheres continuam sofrendo com a falta de investimento do governo e de linhas de créditos específicas para conseguirem tirar suas ideias do papel. Na visão de Marcele, isso só ocorre porque falta a percepção de que essas empresas trazem impacto econômico relevante. É justamente aí que programas de incentivo ao empreendedorismo feminino encontram razão de existir. “O grande objetivo é virar a chave para que os negócios criados, gerenciados e liderados por mulheres atinjam potencial de estruturação e crescimento, gerando empregabilidade”, conclui.
Problemas Brasileiros conversou com três mulheres representantes de projetos sociais que promovem a equidade de gênero e a participação feminina não só nos negócios como também na economia inclusiva. Leia abaixo.
Em 2010, a publicitária Ana Lúcia Fontes participou do programa 10 mil Mulheres, criado em parceria entre a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o grupo Goldman Sachs. A iniciativa oferecia gestão de negócios para o empreendedorismo feminino. Ela foi uma das 35 selecionadas, mas mil inscritas não tiveram a mesma chance. Ao saber dessa informação, Ana refletiu sobre aquelas mulheres que ainda precisariam de ajuda e informação para entrar no mercado empreendedor. Assim surgiu a iniciativa de criar a Rede Mulher Empreendedora (RME).
Ana Fontes, fundadora da Rede Mulher Empreendedora
“A Rede Mulher Empreendedora começou como um blog, não era um negócio em si. Eu comecei escrevendo o que aprendia dentro da sala de aula, com uma linguagem mais simples e direta, para que essas mulheres pudessem ter acesso”, relata Ana, que em 2019 foi considerada uma das mulheres mais poderosas no Brasil pela revista Forbes, e viu no empreendedorismo uma forma de ficar mais próxima da família e de se engajar em novos projetos.
Atualmente, a RME é conhecido como a maior plataforma de apoio ao empreendedorismo feminino no Brasil, oferecendo cursos de capacitação, palestras e eventos para a mulher que quer empreender. Além disso, o projeto possui um grupo no Facebook com mais de 750 mil mulheres que trocam experiências e ideias. Em 2017, o programa criou uma iniciativa social conhecida como Instituto RME, que tem como foco a capacitação e o empoderamento de mulheres que vivem às margens da sociedade.
Uma das inovações trazidas foi um marketplace, uma vitrine virtual para as mulheres empreendedoras divulgarem seus negócios. A plataforma disponibiliza um cadastro gratuito e funciona como uma loja virtual, em que qualquer pessoa que entrar e se interessar pelo produto pode comprar. A ferramenta ainda disponibiliza uma área premium, que traz um destaque maior para o produto, com uma assinatura mensal de R$9,90. “Sabemos que não é algo gigantesco, porque os grandes players de marketplace de hoje são a Magazine Luiza, o Mercado Livre e a Amazon. O nosso objetivo é dar espaço para essas mulheres. Quanto mais espaço elas tiverem, melhores serão as chances de venda”, afirma Ana.
Mesmo com a pandemia, as inciativas da Rede Mulher Empreendedora não pararam. Os eventos promovidos pelo projeto até março de 2020 eram todos presenciais, mas com o isolamento social, o projeto se reinventou e migrou seus cursos para as plataformas online. Um exemplo foi o Potência Feminina, criado em parceria com o Google.org. O programa estreou em janeiro deste ano, com o objetivo de treinar mulheres em temáticas sobre empreendedorismo, empregabilidade e tecnologia, gerando apoio em capacitação, mentoria, aceleração de negócios e capital semente.
Para Ana, a falta de políticas públicas de Estado prejudica a entrada da mulher no mercado empreendedor. “Precisamos entender a importância das mulheres em ambientes de negócio. Tem muita mulher criando e fazendo coisas incríveis, mas são pouquíssimo reconhecidas, pois não temos políticas e nem apoio para ajudá-las”, reforça a publicitária.
Com o objetivo de capacitar mulheres no bordado com técnicas de arte-educação e arte-terapia nas comunidades do Rio de Janeiro, o Projeto Fio leva aulas semanais ao Complexo da Maré e da Tijuquinha. Ali as alunas desenvolvem técnicas de bordados, conquistam sua independência e se fortalecem como um grupo de artesãs.
As sócias Olivia Silveira, Ana Luiza Nigri e Marina Bittencourt ao lado das mulheres que fazem parte do Projeto Fio
Criado em 2017 pelas sócias Olivia Silveira, Ana Luiza Nigri, Marina Bittencourt e Letícia Ozório, o Projeto Fio já atingiu cerca de 40 mulheres, que viram na agulha e na linha uma forma de transformar suas vidas. “Entendemos a moda e a arte como ferramentas de transformação social e empoderamento feminino. E enxergamos no artesanato tanto uma maneira de proteger nossa herança cultural como de gerar renda digna, segura para mulheres marginalizadas, e desenvolver o empreendedorismo feminino”, explica a empreendedora e designer, Olivia.
A iniciativa funciona em parceria com outros projetos sociais. No Complexo da Maré, as aulas são feitas na Casa das Mulheres do Redes da Maré, enquanto na Tijuquinha acontecem no projeto Eu Sou Arte e Transborda Rio.
“Nossas peças são feitas uma a uma, de acordo com o tempo da mão e da vida de cada uma das bordadeiras. Acreditamos no poder terapêutico do feito à mão, e nossas roupas transmitem isso. Além disso, são desenvolvidas em tecidos e materiais naturais e biodegradáveis, buscando sempre os melhores resultados”, detalha Olivia. Integram o Projeto Fio quatro designers, quinze bordadeiras, duas arte-terapeutas, dois costureiros e mais de trinta alunas. Juntas, elas já produziram mais de duas mil peças, que foram vendidas para todo o Brasil e por multimarcas na Europa.
Na pandemia, o projeto, criado com o intuito de fugir das amarras exploratórias das indústrias da moda e da produção fast fashion (produção rápida e de larga escala de roupas), também sofre com as consequências do isolamento social. O período desafiador fez com que as sócias parassem as aulas de capacitação e produção nos primeiros meses. A solução para manter a renda das mulheres foi montar um financiamento coletivo e disponibilizar as peças em estoque pela metade do preço. Olivia conta que outra alternativa foi migrar as ações para o ambiente digital. “Antigamente nossas principais vendas eram em feiras e eventos, hoje temos um e-commerce abastecido com distribuição para todo o País.”
Em 2015, depois de dez anos trabalhando como economista no Banco Mundial, Mariel Reyes Milk deixou o emprego para se dedicar a projetos de impacto social. Nessa época, a peruana namorava seu atual marido, que começava uma startup aqui no Brasil. Ele reclamava sobre o desafio enorme que tinha para contratar programadores no País.
Mariel Reyes Milk, CEO e fundadora do projeto {reprograma}
A chave da ideia virou para Mariel quando seu marido comentou que de cem currículos que ele recebia apenas um era de mulher. “Isso me incomodava muito, pois sempre trabalhei em temas sobre gênero e áreas muito dominadas por homens. Foi assim que a ideia do {reprograma} surgiu. Eu comecei a falar com as pessoas no Brasil, nem falava português nessa época e nem conhecia ninguém do setor, mas criamos um time de voluntários, começando com o primeiro piloto do programa em 2016”, relata.
Com o intuito de reduzir as diferenças de gênero no setor de tecnologia por meio da educação, o {reprograma} é um projeto que ensina programação de forma gratuita para mulheres cis e trans, que não possuem recursos. Além disso, a iniciativa ainda se preocupa em inserir as alunas no mercado de trabalho, promovendo feiras de contratação em que as formadas são entrevistadas pelas empresas parceiras. “Sempre tivemos a missão de resolver uma falha de mercado por causa da falta de mulheres programadoras, e isso tinha de ser resolvido com o que já existia. Havia muitas mulheres interessadas em tecnologia e querendo voltar para o mercado, muitas mães que queriam a oportunidade de aprender a programar, mas não tinham recursos e nem acesso.”
As inscrições são feitas de forma gratuita pelo site. Logo depois, 240 mulheres são selecionadas para seis workshops que acontecem em um único dia. Após esse processo são escolhidas as 40 alunas para o curso. Para aquelas que não possuem acesso à internet ou computador, o {reprograma} disponibiliza uma bolsa-auxílio.
Mesmo com o isolamento social e o fechamento do comércio, escolas e cursos, o {reprograma} se adaptou facilmente ao ambiente digital. Desde 2019, o programa atende altas demandas no Brasil todo, por isso migrar os cursos para a modalidade online foi uma alternativa, e a implementação foi apenas aprimorada.
Mas o {reprograma} ainda passa por um outro desafio: conseguir atingir as mulheres trans. Segundo Mariel, a iniciativa trabalha bastante para chegar até elas, dar o suporte e acompanhar todo o processo de inscrição. O intuito é conseguir com que elas se enxerguem como programadoras e entrem em empresas que as valorizem como são. “O {reprograma} mostra que elas são capazes, podem crescer e contribuir para este setor que é a tecnologia”, pontua a economista.
Para Mariel, que conta com uma equipe de 12 mulheres, além desses programas com incentivo social, é necessário combater as deficiências estruturais da sociedade, da educação e, até mesmo, das empresas, que precisam enxergar a importância de promover diversidade em seus times. “A educação precisa mudar essa mentalidade em relação à mulher, acreditar no potencial delas e contribuir para que possam trabalhar em empresas de tecnologia, seja remota ou presencialmente.”