Subproduto do colonialismo

18 de março de 2021

Interesses particulares precedem interesses públicos no Brasil desde o século 16, quando a coroa portuguesa delegou poderes aos colonos, que mais tarde se tornariam em senhores de extensos domínios. Como mostra Lilia Moritz Schwarcz, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), em Sobre o autoritarismo brasileiro (Companhia das Letras, 2019), tinha início ali o fundamento base da colonização do País: grandes latifúndios sob o controle de poucos homens, em larga parte monocultores. Estes homens inauguraram um esquema social marcado pela autoridade do senhor, e paulatinamente foram naturalizando seus domínios, lançando mão de capital, autoridade, posse de escravizados, atuação política, liderança por meio de vasta rede familiar, controle populacional, e postos na Igreja e administração pública.

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Em pleno século 21, é estarrecedor constatar que as iniciativas de reforma, no processo de redemocratização, ainda não lograram êxito em acabar com a ditadura das oligarquias locais, acirrando a desigualdade econômica, social, cultural e política. Conhecida por “mandonismo”, “familismo” e outras nomenclaturas afeitas, como “coronelismo”, trata-se de uma prática remanescente dos esquemas sociopolíticos arcaicos que seguem a legitimar movimentações escusas na gestão pública. Há tempos essas representações vêm colaborando para a neutralização de leis e ações de órgãos de controle e fiscalização. Assim, alimentam e perpetuam uma teia de poder que privilegia interesses privados em detrimento do coletivo. Esse emaranhado de significados tecido por caciques políticos, arcaicos e modernos, se propaga no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. E segundo especialistas com quem Problemas Brasileiros conversou, só a supremacia da lei e das instituições democráticas poderá livrar o País dessa cilada subproduto do colonialismo.

“Na minha compreensão, ‘familismo’ e ‘mandonismo’ são expressões de um mesmo fenômeno social, cujas bases vêm desde o tempo colonial, quando a colonização foi realizada na base de muita terra para pouco mando. Como havia poucos mandões, eles adquiriram um poder muito grande, social, político e até mesmo religioso e cultural”, pontua Lilia Moritz Schwarcz. Protagonizados pelos coronéis, no Império e na Primeira República, o mandonismo e o familismo atravessaram o meio rural e chegaram na cidade, na pós-modernidade. Tanto é assim que as eleições de 2018 consagraram uma das mais expressivas bancadas de parentes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, segundo Lilia.

“Compra de votos, voto de cabresto e dependência de serviços básicos, como o fornecimento de água, estão entre as formas usadas por esses grupos para coagir o eleitor.” Márcio Coimbra, coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, cientista político e diretor-executivo do Interlegis

“O familismo, o mandonismo, o patrimonialismo e o nepotismo representam gramáticas políticas que informam o modo de agir na estrutura estatal. O modelo se expressa por meio de redes ou teias que são elaboradas desde o município até o Planalto Central”, detalha Ricardo Costa de Oliveira, cientista político e professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Em 2018, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) identificou 138 deputados e senadores com vínculos familiares entre os 567 novos eleitos, representando um acréscimo de 22% em comparação ao pleito de 2014.

A entrada do bolsonarismo na cena política nacional “é um ótimo exemplo do familismo”, acrescenta Lilia. Ela ressalta como o fenômeno cria raízes também no Executivo. “Podemos ver o presidente Jair Bolsonaro jogando todas as suas fichas no familismo, ao indicar ministros, fazer alianças e promover costuras com o Congresso, sempre em função dos interesses da própria família. Ele vem de uma trajetória de 28 anos como deputado federal, tem um dos filhos no Senado, outro na Câmara Federal e um terceiro na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. É um projeto de poder ancorado no familismo, o qual implica no mandonismo”, sintetiza a antropóloga.

Heranças

“Rodrigo Maia, que presidiu a Câmara dos Deputados por mais de quatro anos, está no sexto mandato de deputado federal, e é filho do ex-prefeito Cesar Maia, do Rio de Janeiro, este, primo de José Agripino Maia, descende da tradicional família Maia da Paraíba”, acrescenta José Marciano Monteiro, professor adjunto da Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina Grande e autor de A política como negócio de família: para uma sociologia política das elites e do poder político familiar. “Em décadas recentes, esta família teve em mãos o controle do orçamento público dos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte.” Ainda no Rio de Janeiro, sublinha ele, registrou-se um caso emblemático de nepotismo: o prefeito de Magé, Renato Cozzolino, nomeou sete familiares para cargos importantes. Com isso, reforçou a hipótese sustentada por pesquisadores, segundo a qual em vários municípios brasileiros a administração pública é quase um puxadinho da casa, sem falar nas prefeituras controladas, há mais de cinco décadas, por uma mesma “dinastia”.

Não por acaso, em 2020, Rafael Greca de Macedo se reelegeu prefeito de Curitiba (PR), em parte beneficiado por vínculos de parentesco. Macedo é herdeiro político da mesma família de José Borges de Macedo, primeiro mandatário da capital paranaense, em 1835, com ramificações no judiciário e no meio empresarial. No Recife, lembra Monteiro, a disputa pela prefeitura, nas últimas eleições, colocou frente a frente dois primos da família Arraes, ambos signatários de genealogias antigas no Nordeste. Bruno Cunha Lima, o prefeito eleito de Campina Grande (PB), por sua vez, advém da tradicional família Cunha Lima, é neto do ex-senador Ivandro Cunha Lima e sobrinho neto do ex-senador Ronaldo Cunha Lima, além de primo do ex-senador Cássio Cunha Lima. Já Lucas Ribeiro, o vice-prefeito, é neto do ex-prefeito e ex-deputado federal Enivaldo Ribeiro, cuja filha, Daniella Ribeiro é senadora e o filho, Aguinaldo Ribeiro, deputado federal.

Nilda Gondim e Veneziano Vital do Rêgo Segundo Neto – mãe e filho – são senadores pela Paraíba. O outro filho, Vital do Rêgo Filho – mais conhecido por Vitalzinho – é conselheiro do Tribunal de Contas da União –, lista Monteiro. No Sudeste, Monteiro cita o governador de São Paulo, João Agripino da Costa Doria Junior, bisneto de João Agripino da Costa Doria, que exerceu os cargos de vereador, em Salvador, de 1891 a 1895, e de prefeito interino da capital baiana, de outubro a novembro de 1895. Na juventude, o pai do governador trabalhou como auxiliar de gabinete do governo de Landulfo Alves, também na Bahia, entre 1940 e 1942. Em 1962, elegeu-se deputado federal, assumiu o mandato em 1963, mas foi cassado em 1964 pelo regime militar. Já o prefeito paulistano Bruno Covas Lopes, eleito como vice de Joao Doria em 2016, é neto do ex-governador Mário Covas, cuja família tem base em Santos.

“‘Familismo’ e ‘mandonismo’ são expressões de um mesmo fenômeno social, cujas bases vêm desde a colonização realizada na base de muita terra para pouco mando.” Lilia Moritz Schwarcz, professora titular do Departamento de Antropologia da USP, autora de Sobre o autoritarismo brasileiro

Domínio territorial e econômico

Para o cientista político Márcio Coimbra, coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, a presença dessas linhagens político-familiares, inclusive na área de comunicação, significa que “o poder político é ponto de partida para um domínio em outras frentes da sociedade, influenciadas por suas ramificações e controlando também legendas políticas estaduais”. Compra de votos, voto de cabresto, e dependência de serviços básicos, como fornecimento de água, estão entre as formas usadas por esses grupos para coagir o eleitor, especialmente em regiões mais pobres, pontua Coimbra.

O capital político-familiar e o capital econômico são peças-chave nesse processo de dominação política, concorda Oliveira, mas aponta que as famílias controlam mais recursos por meio de cargos, emendas e financiamento advindo do Fundo Partidário. Soma-se a esses ativos o que ele denomina “patrimonialização” de bens e equipamentos públicos, como logradouros, ruas, avenidas, praças, rodovias, hospitais, escolas, aeroportos e equipamentos coletivos, “batizados” pelos nomes e sobrenomes de figuras carimbadas da política há várias gerações. Na prática, a perpetuação simbólica desses ancestrais políticos funciona como “se estes equipamentos fossem extensões do seu poder pessoal e não recursos do Estado”.

Democracia fragilizada

Fatos como esses sinalizam que a formação da estrutura social brasileira ocorreu pelo topo da pirâmide, evitando as mobilidades social e política, avalia Coimbra, e dá como exemplo que, na sociedade norte-americana, os efeitos negativos deste fenômeno foram mais brandos: “Temos um Estado provedor que se apropria da riqueza da população para redistribuir benesses. O liberalismo nunca chegou ao Brasil, logo somos reféns de um sistema que se retroalimenta e cria suas próprias regras, deixando brechas para neutralizar entraves burocráticos e legais”.

A sociedade civil estadunidense foi iluminada pelas ideias de Alexis de Tocqueville, defensor da liberdade individual e da igualdade na política, observa o advogado Fernando de Oliveira Marques, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “São os grandes pensadores que inspiram o empoderamento e como aqui não tivemos essa mesma influência, constituímos uma sociedade civil muito conformada, incapaz de se mobilizar pelos seus direitos”, justifica Marques. Em sua análise, além da Constituição Cidadã, assim batizada por Ulysses Guimaraes, o Brasil dispõe de um grande aparato legal, fiscalizatório e de controle social. “Temos a imprensa, o Ministério Público, os Tribunais de Conta, municipal, estadual e da União, além da Controladoria Geral da União. Mas a força do poder econômico consegue capturar todos estes órgãos. A questão é que os órgãos de controle são geridos financeiramente pelo Executivo. Então, quem paga a conta, escolhe o vinho”, afirma.

O que mantém esse status quo na política brasileira? Coimbra pensa que as relações entre as famílias e seus prepostos são avalizadas pelo paternalismo, clientelismo e o assistencialismo, operando como moeda de troca. Transações que “podem ser ilegais, especialmente em cidades menores, mas também legais, como forma de fornecer instrumentos de transferência de renda perenes, sem porta de saída, que acaba tornando a população dependente do benefício político. O mecanismo central desse processo é a falta de mobilidade social, caracterizando um movimento que não apresenta sinais de enfraquecimento”. Chances de mudança começariam pela implementação de um processo de recrutamento de novos quadros, que contemple jovens sem vínculo de parentesco com linhagens políticas tradicionais, defende Oliveira. Ele justifica que “a renovação geracional influenciada pelo poder econômico distorce a representação política, o que é um dos motivos da crise de representação política atual, ou seja, tem-se a representação política, mas esta não condiz com os anseios e os desejos dos representados socialmente falando”.

A quebra de paradigma, nesse caso, depende de variáveis estratégicas, argumenta Marques. De um lado, a conquista da igualdade e mobilidade social, a fim de que as pessoas se libertem das amarras do populismo; de outro, a implementação de educação de qualidade, para que elas exerçam a cidadania com autonomia, inteligência e assertividade, principalmente via redes sociais, que, em sua opinião, representam a janela para ampliar a democracia formal.

Lilia Schwarcz também acredita no que ela classifica de “combate aos grandes inimigos da república e da democracia”. A solução, na perspectiva da antropóloga, “é o fortalecimento das instituições democráticas, revitalizando-se os mecanismos democráticos consolidados pela Constituição de 1988. Com isso, é possível quebrar o patrimonialismo, essas políticas que tentam usar o Estado para projeto próprio”.

Maroni João da Silva Paula Seco
Maroni João da Silva Paula Seco