“Belíndia”, expressão criada, há 50 anos, pelo economista carioca Edmar Bacha, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tentava traduzir as disparidades de um Brasil que convivia com uma minoria vivendo em condições semelhantes à rica Bélgica e uma imensa maioria em situação de penúria, como na Índia dos anos de 1970, ainda longe de ser uma potência emergente em tecnologia. Salvas as devidas proporções socioeconômicas, pouca coisa deste conceito mudou.
Basta olhar os dados do estudo O Abismo Digital no Brasil, desenvolvido em conjunto pela consultoria PwC Brasil e pelo Instituto Locomotiva. A ausência histórica de políticas públicas direcionadas à inclusão digital e à baixa conectividade em regiões afastadas dos grandes centros urbanos provocam um cenário que já impacta negativamente a formação educacional dos jovens. As classes de baixa renda são as que mais sofrem, uma vez que costumam usar planos de celular com acesso restrito e inadequado para o ensino.
O levantamento coloca em perspectiva a desigualdade de conectividade entre as classes mais favorecidas (A e B, sobretudo brancos) e dos cidadãos pertencentes às classes C, D e E, em especial, os negros. O problema se agrava num momento em que o País está prestes a ingressar na tecnologia 5G: são 33,9 milhões de desconectados, ou seja, pessoas que desconhecem o que se passa nas redes sociais e que jamais tiveram contato com aplicativos de mensagens.
Neste universo, prevalecem pessoas do sexo masculino, idosos, das classes C, D e E. O estudo aponta que 41,8 milhões estão classificados como subconectados (com conexão média de 19 dias/mês); 44,8 milhões estão parcialmente conectados (25 dias/mês); e 43,4 milhões se encontram totalmente conectados, com concentração majoritária nas regiões Sul e Sudeste, nas classes A e B.
Dentre as principais consequências desta desigualdade digital, destacam-se o aumento do trabalho informal, a redução da produtividade, o déficit de profissionais preparados para atuar no mercado de trabalho digitalizado, o atraso na proficiência educacional entre os jovens e a formação digital precária em funções como programação e atividades relacionadas às inovações tecnológicas. Uma conta que pode sair cara para o Brasil, caso não haja políticas públicas estruturais comprometidas em reduzir este abismo.
Em determinadas áreas, como no caso das profissões ligadas à tecnologia, já é possível projetar o impacto para os próximos anos. Segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom), entidade que reúne 87 associados do setor, existe uma demanda por parte das empresas por 797 mil talentos, até 2025, em Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), ao passo que o mercado registra um déficit anual de 106 mil profissionais.
As áreas mais promissoras, diz o estudo, estão em Inteligência Artificial (IA), Internet das Coisas (IdC) e Blockchain. Segundo Sergio Paulo Galindo, presidente-executivo da Brasscom, a carência na formação de bons profissionais é um reflexo do contraste socioeconômico brasileiro. “Enquanto as classes A e B contam com conectividade de primeiro mundo, a cobertura nas classes menos favorecidas é mais precária. Defendemos uma Reforma Tributária que elimine a maior parte dos tributos em energia e conectividade, insumos essenciais na base da cadeia produtiva.”
Segundo Marcos Ferrari, presidente da Conexis Digital Brasil, entidade que representa as operadoras de telecom no País, os reflexos da desigualdade digital passam mais pela ausência de medidas do que pela ineficiência do sistema de telecomunicações. “As operadoras estão fazendo a sua parte. Investimos R$ 3,8 bilhões, em 2021, e estamos em 5,5 mil municípios com 3G e 5G. O que faltam são políticas públicas integradas que tragam resultados estruturantes condizentes com o potencial de aprendizado e de desenvolvimento cognitivo disponibilizado pelo acesso à internet”, pontua.
Os dados da Conexis quanto à expansão do acesso estão corretos, mas uma pesquisa realizada pelo Centro de Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Cetic.br|NIC.br), em parceria com o Programa de Acesso Digital (DAP) da Embaixada Britânica no Brasil e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), reforça a percepção da desigualdade digital. Segundo Alexandre Barbosa, gerente do Cetic.br|NIC.br., na última década, houve um crescimento expressivo no acesso à internet, impulsionado pela ampliação das conexões por fibra óptica. No entanto, isso aconteceu de maneira desigual. Os municípios com até 20 mil pessoas, que concentram 31,6 milhões de habitantes, apresentam um porcentual de usuários de internet menor do que o verificado em grandes centros urbanos.
As operadoras investem em regiões com viabilidade econômica e densidade populacional que justifique os aportes, acrescenta Ferrari, o que explica, em tese, a falta de sinal de internet em rodovias e áreas pouco povoadas. Segundo ele, o instrumento para os investimentos públicos é por meio do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicaçoes (Fust), criado em 2000 com a finalidade de proporcionar serviços de universalização dos serviços de telecom. “O Fust nunca foi usado para a sua função”, lamenta o presidente da Conexis. Hoje, os recursos do Fust estão em torno de R$ 25 bilhões, e o governo promete que sejam direcionados em sintonia com os investimentos das operadoras na instalação do 5G. O Ministério das Comunicações informa que cerca de R$ 700 milhões do Fust estão previstos para a conectividade das escolas públicas, ainda em 2022.
Em um ponto, pode se dizer que há consenso: tanto a desigualdade digital como o mau uso da tecnologia não estão relacionados à falta de oferta de equipamentos. Segundo estudo, divulgado em maio, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o Brasil conta com 352 milhões de dispositivos portáteis (smartphones, notebooks e tablets) para uma população de 214 milhões de pessoas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se incluirmos os computadores de mesa, a conta sobe para 447 milhões de dispositivos, o que representa uma proporção de dois equipamentos por pessoa. Os campeões de venda são os smartphones – três aparelhos a cada televisão vendida no comércio.
Confirmando uma tendência desde meados da década passada, os planos pós-pagos avançaram em relação aos pré-pagos e, hoje, respondem por mais de 50% das linhas – anos atrás, os pré-pagos chegaram a representar mais de 80% do mercado. De acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a mudança de comportamento no perfil do usuário tem ocorrido por três razões: concorrência mais acirradas entre as operadoras na oferta de pacotes de banda larga (4G); possibilidades de chamadas ilimitadas a todas as operadoras e de o usuário ter mais de um chip de cada prestadora; e a crise econômica entre 2014 e 2015, além da perda de poder aquisitivo na pandemia, gerando redução na capacidade de consumo nas classes de baixa renda – e pesando na conta do celular pré-pago.
O crescimento dos planos pós-pagos trouxe em paralelo uma estratégia comercial condenada por educadores: a prática do zero rating, isca de vendas oferecida pelas operadoras em parceria com algumas big techs. No modelo, o tráfego de dados de alguns aplicativos não conta para o consumo mensal da franquia, o que significa um estímulo ao usuário para ficar mais horas em plataformas sociais e de mensagens.
No entender de Marcelo Saldanha, diretor da Coalizão Direitos na Rede, o zero rating é ilegal por ferir o conceito de neutralidade da rede, previsto no Marco Civil da Internet, de 2014. “Este comportamento gera bolhas de desinformação e impede o usuário de ter o acesso amplo à web, em especial na banda larga 4G, o que o obriga a consumir o seu pacote de dados. Muitas pessoas ainda pensam que internet e Facebook são sinônimos”, comenta. Saldanha acredita que os planos oferecidos pelas operadoras pecam pela falta de transparência. “De nada adianta falar em velocidade de dados e não mexer na sua política de franquia. Boa parte do pacote é consumida nos anúncios pagos dos sites, e o consumidor acaba sendo lesado, principalmente estudantes que queiram usar o celular para o aprendizado.”
Por sua vez, Ferrari, da Conexis Brasil Digital, se esquiva da polêmica. “A entidade não se envolve em aspectos comerciais das associadas”, argumenta. Enquanto no Brasil não há um posicionamento legal quanto à prática comercial das operadoras, em junho, o zero rating foi banido nos países da União Europeia (UE), tanto para operadoras móveis como provedores de internet fixa. A decisão partiu de um documento aprovado pelo Body of European Regulators for Electronic Communications (Berec), órgão regulador da UE que estabelece as regras a serem seguidas pelas entidades reguladoras de telecomunicações de cada integrante do bloco.
Além das questões comerciais, o avanço da conectividade depende da rede de antenas e postes a ser instalada em todo o território. Sancionada em 2015, a Lei Geral de Antenas (Lei 13.116/15) estabelece normas e padrões à instalação e ao compartilhamento de antenas de telecomunicações para expandir a rede de telefonia e celular, mas a regulamentação veio apenas em 2020, estipulando a autonomia dos municípios para fixação das regras. “Em muitos municípios, as legislações são da década de 1990 e não compatíveis para o 4G e muito menos para o 5G”, lamenta Ferrari.
O diretor da Conexis enxerga que a restrição de altura de quatro metros, na maioria dos municípios, é insuficiente para garantir a conectividade do 5G, que necessita de torres maiores e mais próximas entre si. “Em uma capital, uma antena cobre um raio de 600 metros. Com o 5G, será entre 200 e 300 metros de alcance, dependendo dos edifícios e da densidade populacional”, diz. A previsão inicial é de uma antena a cada 100 mil habitantes. De acordo com a Anatel, o cronograma inclui, até julho de 2025, todas as cidades com mais de 500 mil habitantes. Até o momento, a regulação está definida apenas em 12 capitais: Brasília, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Natal, Palmas, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Aracaju e Boa Vista.
Os obstáculos, lembra Ferrari, passam por certames regulatórios relativos ao compartilhamento de postes para o cabeamento aéreo das operadoras, problema mais latente nas grandes capitais, onde há o compartilhamento com as companhias de energia elétrica. “Sem uma regulamentação sobre o uso dos postes, não será possível oferecer uma rede satisfatória no 5G”, avalia o executivo.
A entidade sugere a criação de um operador neutro para a administração dos postes, ressaltando que o custo final não pode recair nem para o consumidor de telecom, tampouco para o de energia elétrica. Há ainda a incidência de furtos e roubos de fios. A Conexis apura que, só em 2021, foram registrados casos de perdas de mais de 4 milhões de fios no setor de telecom. Para refrear a ação dos criminosos, está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei que aumenta para reclusão de até 8 anos, em casos de furto, e até 10 anos, em casos de roubo.
Esta somatória de contextos traz consigo constatações desafiadoras: com desigualdade de acesso à internet, infraestrutura inadequada e educação deficitária, nossas opções para o futuro permanecem limitadas.