Já se passaram mais de dois séculos desde que Antônio José da Silva Paulet, engenheiro português, aproveitou um convite do governador do Ceará, que lhe requisitara um projeto urbano para a cidade de Fortaleza, para viajar pelos confins da então capitania. Até o século anterior, ali fora uma das regiões mais produtivas economicamente do Brasil colônia, tornando suas viagens mais interessantes em termos político-econômicos. No entanto, assim que adentrou o sertão, Silva Paulet encontrou outra realidade: a fome.
Ao longo dos anos anteriores, o Ceará tinha convivido com secas frequentes, alastrando miséria. “Em tal extremo, os habitantes do sertão morrem à míngua por falta total de mantimentos, (…) e em tais apertos, tem se visto sustentar esses povos de couros secos que ficam de outros anos; na falta de farinha, ralam quantas raízes encontram, a maior parte venenosas, algumas que os levam à morte em breves dias”, escreveu ele em seus relatos. O ano era 1816.
Mais de 200 anos depois, nos bairros pobres da capital, a situação ainda se repete. Para garantir ao menos uma refeição a milhares de pessoas que vivem no Grande Bom Jardim, região periférica de Fortaleza, cozinhas comunitárias recolhem restos de ossos bovinos do mercado central e aproveitam cabeças de peixes já quase estragados, doados pelos restaurantes à beira-mar. Tudo é usado para fazer sopas, levadas aos baldes pelos moradores – uma pequena amostra do universo de aproximadamente 33 milhões de brasileiros que, de acordo com o 2º Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) e o Instituto Vox Populi, estão passando fome, hoje, no País.
Rodrigo Kiko Afonso, diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania, que atua no combate à fome, aponta para um aspecto ainda pior destes dados: a velocidade com que eles crescem. “Saímos de 2014 com 4 milhões de pessoas famintas no País. Embora fosse o nosso menor nível histórico, ainda era um número muito alto. Então, entramos em 2018 com mais do que o dobro disso, e depois chegamos a 19 milhões em 2020, na pandemia – ou seja, em um intervalo de dois anos”, diz. Na opinião de Afonso, a não ser que haja uma ação muito estruturada no ambiente político, nada poderá ser feito, neste ano, para mudar o panorama.
Criada há três décadas para encampar ações da sociedade civil em torno dos famintos brasileiros, a Ação da Cidadania é fruto de um fenômeno que o Brasil pensava ter superado. Em 1993, cerca de 32 milhões de brasileiros não tinham o que comer – sobretudo em bolsões de miséria do Norte e do Nordeste –, posto que a população, à época, fosse quase um terço menor.
Embora a fome de agora atinja ainda mais gente do que em meados dos anos de 1990, as características da mazela se adaptaram ao contexto. “Os cenários econômicos são parecidos, já que tanto naquele período como agora temos muitas pessoas abaixo da linha da pobreza. Entretanto, ali se tratava de um problema social mais concentrado nas periferias e em alguns bolsões nas regiões mais pobres, ao passo que, agora, está bem mais espalhado”, alerta Rosana Salles, professora titular do Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A franja de pessoas que passam fome no entorno dos centros urbanos ficou maior de um tempo para cá. A própria classe média passou a sofrer com esta crise”, afirma.
Para o diretor da Ação da Cidadania, a diferença mais significativa entre os dois momentos está na reação social à crise alimentar. “Na década de 1990, os brasileiros faziam campanha para a fome na África, mas não sabiam que havia a mesma situação aqui. Foi quando a sociedade civil conseguiu assustar (e mobilizar) a população em torno do tema. Virou o assunto central do País por alguns anos. Hoje, ao contrário, há muito mais gente faminta, mas são tantas tragédias acumuladas que as pessoas, cansadas, se tornaram indiferentes.”